30 dezembro 2011

Cansa-se, mas continua a pedalar, segue, levanta a cabeça e vê o nublado da tarde. A volta para casa sem dinheiro torna-se longa, não havia vendido senão uns poucos doces, nada, a festa logo se dissipou depois da missa por causa da chuva, afetou-se de uma tristeza, sem querer, mas não se entregou, recolheu o pouco dinheiro contado mais de uma vez, daria ao pai. A cada vez que somava as poucas notas queria diminuir no peito a distância que o oprimia. Agora, nos pedais da bicicleta, cansava-se de viver, mas não, não desistia, esgotado fazia ainda mais fortes as pernas para pedalar e subir a ladeira na curva da estrada sem descer da bicicleta. Para chegar em casa tinha uns oito quilômetros pela frente. Queria comprar novos sapatos, já se ia em tempo de namoros, estava de olho naquela menina, Mirian. Casaria-se com ela, sabia. Tão linda, mais doce do que linda, tranqüila e tímida. Linda afinal, pois que lindeza é a soma disso tudo e outras coisas, o olhar, o olhar com a cabeça levemente inclinada para frente, as mãos grossas do trabalho na lavoura e brancas como leite, a voz de segredos e de modinhas de amor. Mas ainda não tinha o dinheiro dos sapatos, nem pediria ao pai, tão pouco conseguira na festa, tinha que dar um jeito no único par que possuía, reforçar a sola, engrossar as trincas e rugas com cera preta e então polir, polir, polir com a velha flanela. Chegou ao topo da ladeira, olhou sem muita demora para a estrada triste e solitária que se espichava para trás, mirou adiante e pensou, 1954 vai ser um ano melhor.

6 comentários:

Dauri Batisti disse...

Como o conto situa-se no final de 1953, na palavra "sabia" no meio do texto, coloquei um link para uma famosa e antiga música na voz - MAGNÍFICA - de Dolores Duran. Vale a pena ouvir.

lula eurico disse...

Puxa, que maravilha. Tua enarrativa parece água corrente.
Bem, quem não desejaria um par de sapatos em 1954, não é mesmo. Mas esse "afetou-se de uma tristeza", bem espinozano, me inseriu no fluxo.

Abraçamigo.

sonia regina disse...

Os seus contos são cheios de ternura.Esse ano é marcante pra mim,foi meu nascimento.Sobre a música valeu muito a pena ouvir,você escolhe muito bem as músicas para seus contos.


Abraço

Leandro Jardim disse...

Ótimo conto! Também tenho me aventurado por essa seara do conto, esse ano lanço um livro do gênero!

grande abraço
jardineiro

Paula Barros disse...

Será que tem continuação, é o que fico me perguntando. Muita história se desenrolaria deste conto. Um romance, uma novela, uma vida. Ou melhor, várias vidas poderiam vir ...muitos anos, muitas músicas, muitas outras histórias entrelaçadas...

É assim, tudo que você escreve, sinto vida, muita vida.

abraço, e um bom ano, um melhor ano.

vieira calado disse...

Andei por aqui a ler as suas belas prosas.

Um forte abraço!