Proclamações do apocalipse do fim do dia
Ali, sentada, na tristeza da tarde, quase noite, quando não importam as lamparinas, apenas as estrelas importam, importam como uma espécie frágil de consolo, ou de companhia, ou nada disso, ali à porta da larga cozinha, sentada nos ladrilhos gastos do último degrau ela descansava das lutas do dia, de ter vivido de trabalho, ela descansava batendo na mesma tigela de tantos sabores uma meia dúzia de ovos com gemas vazantes de forte amarelo. Depois acrescentaria outras cores, verdes e sabores. Vinha-lhe a velha gata enrolar-se nas pernas, ela nem percebia. Ela, a gata, a cozinha, os cheiros, as chamas no fogão, o fim da tarde, a tristeza, a felicidade, tudo era uma coisa só. Olhava tudo, sem prestar atenção em nada, olhava porque olhava, porque tinha olhos, porque era costume ver aquelas paisagens, com amizade, com intimidade e indiferença ao mesmo tempo, olhava o pomar como uma longa faixa escura recortando as montanhas acima, olhava as montanhas e seus parentes que lá moravam mais altos, agora em suas casas abocanhadas pela escuridão, escuridão ainda maior pelos avisos dos pássaros em suas proclamações do apocalipse do fim do dia. Enchia-se o olhar no amarelo nublado pela noite nos ovos batidos, enchia-se daquela felicidade, daquela mornidão de viver, viver, viver. Haveria de levantar-se do chão com cuidado, a gata já acostumada com os empurrões iria por ali numa curta meia volta, e depois retornaria, amaciava-se ainda mais a gata em suas pernas, apesar dos empurrões, nunca teve nenhum arranhão das unhas do felino, depois se dobraria com cuidado para pegar a tigela, tinha a coluna ainda maravilhosamente flexível, naquele dia doia-lhe mais o joelho esquerdo.