Mas havia uma certa luz vinda de não sei onde
É um pretexto, eu sei, algo que se inventa para uma conversa que parou. Tem uma cena clichê, mas apesar, é certo, este início exige um olhar caolho. Quereis se ter em vesguices por um minutinho? Foi assim, chovia, o dia frio se findava nas luzes já acesas e nas cozinhas quentinhas das casas lá fora, tu vinhas andando com pressa entre os canteiros, mas como também eu seguia com a mesma pressa, e em sentido contrário, nos esbarramos, nos desequilibramos, caímos sentados, caíram as flores que carregávamos. Mas havia uma certa luz vinda de não sei onde. Tu tinhas colhido rosas, e exatamente as amarelas, que para mim são as mais bonitas; e eu margaridas, uma braçada de margaridas, e ainda no embornal atravessado no peito muitos morangos bem firmes e densos de vermelhidão. Teu pai sempre nos espiava. Tua pressa e a minha tinha o dia seguinte - mais uma feira livre - como motivo. Ainda tínhamos que organizar muitas flores e verduras em maços, muitos morangos em caixas, inhames, vagens, muitos pensamentos em folhas. Mas rimos muito, lembras? Éramos tão felizes. Tu recolhias minhas margaridas e eu tuas rosas. A chuva era mais forte. Pelo jeito engraçado que dançávamos recolhendo as flores, os pés afundando nos canteiros fofos e molhados, quem nos visse pensaria que aquilo era cena de um filme japonês. Mas o que aconteceu mesmo foi que nosso olhar caiu sobre nossas mãos, ansiosas, calejadas, molhadas, marcadas de terra e flores, que se tocaram no impulso de apanhar a mesma flor. Foi o tempinho só de um olhar... pronto... Lembras?