Inesperado sol
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O que faria, foi pensando, se o gerente ao modo de ver de uma supervisora de escola com muitos olhos em cada corredor a saber da menor fumacinha de cigarro que se pensou diluída já nas altas atmosferas, se lhe percebesse o que em curvas suaves e leves de nuvens em paisagens de verão se articulava em seus mundos de sonhos e desejos? O que fazer se ele percebesse?, certo é que até seria bom se ele enxergasse, não perceberia, era homem ao que deixava transparecer muito preocupado e dado a vastos pensamentos a deixá-lo assim por detrás de uma cortina diáfana que o protegia e o cegava ao mesmo tempo da lucidez de ver exato as coisas, as que se dão no viés dos dias. Mas se o gerente percebesse esse inesperado sentimento que agora se expandia pelos vários cômodos da sua vida recém saída da adolescência, inesperado sentimento que se alargava pelo corpo e pelas fontes de onde surgem os pensamentos, as alegrias, os sonhos, talvez lhe oferecesse um sorriso compreensivo, ou, mais provável, lhe mandasse pra puta que o pariu sem meias nem peias. Mataram aquele negro nos Estados Unidos estes dias, lembrou; por quais cargas d'água lembrou exatamente agora esta morte triste e distante da qual sentia ainda um estranho luto e que fora notícia na tevê?, articulou-se em fundos de si mesmo procurando outra resposta, talvez porque lera na biblioteca numa revista uma reportagem sobre a sua trajetória, seus anseios, a morte, ficara impressionado com a força das palavras daquele negro, I still have a dream, um mesmo sonho talvez fosse o ponto, o nó dos encontros, do que se enlaça no coração das pessoas, a despeito do tamanho e da nobreza daquele e da fragilidade e incipiência do seu, ganhar a vida, ser respeitado, amar sem se esconder, I have a dream, sentiu um aperto na garganta, largou a caneca de esmalte onde tomara o café sobre a pia. Sabia que não podia se apiedar de si mesmo, o que apenas lhe acrescentaria ao precário patrimônio lamentações e lamentações, nunca o fizera, nem no tempo de criança quando com a cabeça recostada ao colo da avó recebia dela seu cafuné e amolecia-se todo, como se naquelas mãos cálidas houvesse um segundo propósito, desaguar-lhe as enxurradas de lamentos para que então pudessem ser com mais eficácia portadoras da unção de carinhos terapêuticos. Quando percebia o efeito daquela indução amolecendo cimentos e barras de ferro, levantava-se de imediato e se ia.