30 janeiro 2011

Inesperado sol

46

O que faria, foi pensando, se o gerente ao modo de ver de uma supervisora de escola com muitos olhos em cada corredor a saber da menor fumacinha de cigarro que se pensou diluída já nas altas atmosferas, se lhe percebesse o que em curvas suaves e leves de nuvens em paisagens de verão se articulava em seus mundos de sonhos e desejos? O que fazer se ele percebesse?, certo é que até seria bom se ele enxergasse, não perceberia, era homem ao que deixava transparecer muito preocupado e dado a vastos pensamentos a deixá-lo assim por detrás de uma cortina diáfana que o protegia e o cegava ao mesmo tempo da lucidez de ver exato as coisas, as que se dão no viés dos dias.  Mas se o gerente percebesse esse inesperado sentimento que agora se expandia pelos vários cômodos da sua vida recém saída da adolescência, inesperado sentimento que se alargava pelo corpo e pelas fontes de onde surgem os pensamentos, as alegrias, os sonhos, talvez lhe oferecesse um sorriso compreensivo, ou, mais provável, lhe mandasse pra puta que o pariu sem meias nem peias. Mataram aquele negro nos Estados Unidos estes dias, lembrou; por quais cargas d'água lembrou exatamente agora esta morte triste e distante da qual sentia ainda um estranho luto e que fora notícia na tevê?, articulou-se em fundos de si mesmo procurando outra resposta, talvez porque lera na biblioteca numa revista uma reportagem sobre a sua trajetória, seus anseios, a morte, ficara impressionado com a força das palavras daquele negro, I still have a dream, um mesmo sonho talvez fosse o ponto, o nó dos encontros, do que se enlaça no coração das pessoas, a despeito do tamanho e da nobreza daquele e da fragilidade e incipiência do seu, ganhar a vida, ser respeitado, amar sem se esconder, I have a dream, sentiu um aperto na garganta, largou a caneca de esmalte onde tomara o café sobre a pia. Sabia que não podia se apiedar de si mesmo, o que apenas lhe acrescentaria ao precário patrimônio lamentações e lamentações, nunca o fizera, nem no tempo de criança quando com a cabeça recostada ao colo da avó  recebia dela seu cafuné e amolecia-se todo, como se naquelas mãos cálidas houvesse um segundo propósito, desaguar-lhe as enxurradas de lamentos para que então pudessem ser com mais eficácia portadoras da unção de carinhos terapêuticos. Quando percebia o efeito daquela indução amolecendo cimentos e barras de ferro, levantava-se de imediato e se ia.

28 janeiro 2011

Inesperado sol

45

Foi então para os escritórios gerais onde estaria com certeza o gerente a despeito de ser domingo, não sabia exatamente o que dizer quando lá chegasse, mas se arranjaria, como se arranjou com a ave depenando-a toda, fez depois uma pequena fogueira com folhas de jornal e queimou-a, como já tinha presenciado tal ato da avó, os últimos pelinhos, segurando-a pelos pés pela cabeça pelas asas, o corpo pendendo como um coração magoado, e assim adiante, tudo muito rápido, com cuidados sem se queimar, dava na verdade um banho de fogo na ave sem chamuscar a pele apenas os pelos, nem expo-la à fumaça excessiva, um cheiro de pelos tostados subiu, não gostou, correu com ela até a pia, lavou-a com bastante água corrente esfregando com sabão todas as suas partes como se fosse um bebê, não sabia se isso seria necessário, mas o fez, a seguir veio os cortes, desajeitado, a faca afiada exigia cuidados, fez o melhor, a aula de inglês e bons conselhos, lição de sucesso ao estilo americano, do your best, sorriu com o canto da boca, os cortes se sucedendo, a faca engasturando-se com os ossos ao errar as juntas, vida de esbarros, aborrecimentos, má sorte, desprazer e debaixo da torneira sempre aberta, economia de água agora a avó que o perdoasse, retalhada em partes numa tigela parecia outra coisa, superfície rosea em vários tons encraterada, flocos amarelos de gordura em profusão nas carnes, derramou sal, faltava limão, empolvilhou ainda mais sal sobre a ave, a avó que a temperasse adequadamente depois, e preparou-se para ir até os escritórios gerais, lavou bem as mãos, cheirou-as, lavou-as de novo e ainda sentia um almiscar, um cheiro de carne, de visceras, esfregou sal e enxaguou-as afinal, preocupou-se nessa hora com o estivador, ele o haveria de cercar em algum canto mais cedo ou mais tarde, que se dane, disse procurando um café pra tomar, ali o bule sobre a chapa do fogão, viro-me bem, desvencilho-me dele mais uma vez.

27 janeiro 2011

Inesperado sol

44


Já sei, já sei o que se anda passando ai nessa sua cabecinha, quando você para e fica assim olhando as coisas sei da sua derrota, vence a imaginação, voa sabe-se lá pra que mundo, já serviu o exército mas continua um menino, dizia a avó, e completava, venha cá meu filho, venha cá, a vovó quer um beijo, vamos conversar, sim, é isso?, já sei. Não entendia por que ela o chamava de filho e não permitia ser chamada de mãe. Os dias passam e o meu Dia não vem, demora que só, brincava como o nome dele tirando a letra esse. Ao estalinho do beijo no rosto a avó se virou na direção da frente da casa, se antecipava, estavam nos fundos e logo se ouviu o barulho de uma carroça, uma charrete, movido pelo zoar das patas de cavalos e guincho de rodas em eixos envelhecidos, sem que a avó o pedisse lá se foi Dias como dono da casa receber quem chegava, não chegava, apenas vinha pedir ajuda, havia pressa, alguém morria, voltou rápido e topou com a avó no corredor da casa andando ligeiro apesar dos passos curtos, indo sem que lho contassem do que se tratava para a porta da frente e dizendo que Dias se arranjasse com a galinha, o fim do trabalho, voltaria logo que pudesse. Pendia-se a ave na trave, desvencilhava-se e caía das amarras frágeis da avó, imaginava, se assim caindo resgatar a vida fosse possível, seria bom cair, como quando se nasce em parto dentro d'água, era, mas não, não era, nunca mais viveria, ali pendida, cumpria um destino, pêndulo de um estranho equilíbrio, a morte. E se há algo assim junto da carne, outra coisa, o mistério, a vida, isso não cai, isso sobe, diz-se que, mas a cena da galinha caindo pesada como chumbo se lhe prendia na mente, seria grotesco, mas se valorizasse o bico entreaberto e colocasse ao fundo um trecho de Mahler, mas que coisa, de onde vinha essa idéia, Mahler?, aprendera a ouvir Mahler com o sargento no exército, o cara gostava, mas a expressão o cara gostava parece ter sentido duplo, deixa pra lá, a tomada seria estranha e bela, banal e especial ao mesmo tempo, estes bichos domésticos ganham jeitos humanos, traduzem-nos, a inquietude da alma humana nas galinhas, o olhar de engano dos cachorros mais humano que o olhar de santo na igreja, santo mal feito, de gesso, que ângulo escolheria?, a parte penada ou a parte depenada; cães velhos por perto desenhavam olhares de palavras saliventas e sem gramática.

26 janeiro 2011

Inesperado sol

43

Acordou mais cedo do que imaginava, um pouco depois das dez, a manhã que escorria pela fresta na estrutura metálica daquela espécie de sótão era, ou mostrava-se, como uma manhã de pensamentos bons, preguiças e sossego; iria para a casa da avó, não se negava uma certa verdade, diga-se, queria saber da avó impressões, previsões, noticias sobre o tal gerente, mas conciliaria os dois interesses, frutas filipes que não se desperdiçam. Quando chegou uma galinha dependurada numa trave era depenada, trave que, agora se dava conta, nunca tivera outra serventia, muitas galinhas ali perderam sua plumagem, a cabeça estranha reta para baixo puxada pela gravidade, o bico entreaberto, pesava, pesava mais do que se possa imaginar que pese uma insignificante cabeça de galinha, toda a leveza teria se esvaído dos ossos, das asas por aquele bico entreaberto, sentiu-se diferente, não se importava com estas cenas, mas em ocasião nenhuma se dera conta do peso da morte, se dava agora, a morte pesa, até mesmo num pequeno e leve animal plumado, é o que lhe vinha, o que subia para os mapas dos pensamentos, para as superfícies de sua mente, aquela idéia, espinha que não se quer ter no rosto mas que ao se olhar no espelho uma segunda vez, lá se revela e se escancara a indesejada, monte eriçado de vermelhidão e cume amarelento, vinha-lhe ao pensamento enquanto chegava sem que a avó se desse pela sua presença querida, sempre querida, sentia-se sempre seguro do amor da avó, se fazia ela de distraída, seus ouvidos eram olhos, seus olhos ouvidos, mas quieta, mansa, retirava as penas da ave que previamente tinha tomado um mergulho em água escaldante, ainda mais próximo olhou, Dias olhou entre admirado e espantado, duvidava da própria sinceridade neste momento, a cena do filme voltava, imaginava-se no filme espantado com a galinha dependurada na pequena trave, assim , atuando, ator e diretor, uma câmera aqui seguindo logo acima do seu ombro, na perspectiva dos seus olhos, a lente mostrava como era delicada a avó na extração de cada suave pena daquela pele sem sangue, arrepiada como se sentisse um frio horrível. Dizia o diretor, veja, veja como são delicadas suas mãos, siga filmando, é uma menina, uma menina que brinca, filme isso, uma menina romântica que colheu ali nos campos ajardinados da velha mansão uma flor, e brinca de bem-me-quer mal-me-quer.

25 janeiro 2011

Inesperado sol

42

Nem mesmo tinha terminado de estender um cobertor que lhe serviria de cama, depois de escolher o lugar certo, um barulho se fez ouvir lá debaixo, passos, de quem pisa leve sem conseguir, desnecessário disfarce, Dias olhou pela fresta do lugar no alto do prédio ao lado de onde morava e viu o estivador bater à porta, sabia que ele haveria de vir e se preveniu. Era certo, ali em cima ele não o encontraria, a escada que usara, recolhera, deitou-se, pensou nos passarinhos, tinha gosto por aqueles cantinhos escondidos, aquele usara muitas vezes para ler, ali ainda estava um livro, um pequeno livro, juventude, de Joseph Conrad, ali o mundo era só seu, comodamente deitado, podia observar as ações daquele homem, dormiria longas horas depois, até por volta do meio-dia. Como poderia ter tido por um tempo tão longo, da adolescência ao ano no exército, olhos para localizar um rumo, o cruzeiro do sul da sua vida naquele homem; recebia dele carinhos e agrados, diferentes dos da avó Luzia e viu crescer sentimentos por ele, nunca fora capaz de dizer te amo, mas muitas vezes perguntou-se se não seria a hora, se o que sentia não seria amor, não, não disse, nunca disse, chegou a tentar em certos momentos, algo o impedia. Agora se dava com os entendimentos, agora percebia, não havia flores naqueles ramos crescidos em canteiros sem sol. Presente sempre o mar, por todos o lados, os navios, o porto, o mar, o cais, o estaleiro faziam-no acreditar mais nas promessas do estivador do que nos conselhos da avó Luzia. O estivador prometia que se mudariam para Nova Iorque, que tudo estava sendo providenciado com uns gringos conhecidos. Mas como a demora se alongava ano após ano uma pergunta tornou-se refrão nos seus encontros furtivos, vamos mesmo para Nova Iorque?, quando vamos para Nova Iorque?, lembra, olhando o outro lá embaixo forçando a porta enraivecido, vamos mesmo para Nova Iorque?, fazia questão de dizer o nome Nova Iorque, poderia perguntar vamos mesmo?, vamos mesmo pra os Estados Unidos? Não, era preciso acrescentar Nova Iorque, quis até aprender inglês, esforçou-se na escola, aprendeu algumas boas frases, e a resposta vinha com tantos detalhes, Justino era tão detalhista na exposição dos planos, falava com sentimentos, era exímio nas explicações, que a não realização daquilo seria impossivel, acreditava. Agora tinha que elaborar para si mesmo outras perguntas. O novo gerente, o novo gerente... adormeceu.

24 janeiro 2011

Inesperado sol

41

Fugiu-se dali o mais rápido possível depois de toda a trabalheira, não deixou contudo de ajudar também naqueles serviços finais quando todos se vão embora, inclusive o tal Justino Barroso, melhor mesmo que já se tivesse ido, quando todos se vão e é preciso ficar, recolher garrafas, juntar engradados, arrumar as mesas e cadeiras, passar uma vasoura no chão, enquanto a amiga dona do bar fechava suas contas, recolhia o dinheiro que a muito não via em um único dia. Havia muitas despesas a pagar, mas, decerto sobraria um bom dinheirinho; Dias, amanhã acerto com você, gritou de lá, não tem problema, respondeu, fechando as janelas, janelas antigas, tão bonitas, altas como uma porta, de duas bandas, uns vidros quebrados, madeira e tinta disputando os olhos dos dias e dias e dias, vamos descansar que já é hora. Durante a noite toda Dias trabalhou dançando e cantando como a obter na exaustão de um ritual os benefícios que se deseja. Agora não, agora trabalhava em silêncio, o silêncio caía ali sobre os dois naquele imenso e um dia bonito salão como água morna em banho sem pressa. Cada um sentado em pontos distantes, um olhando para o outro como a dizer tarefa cumprida, depois riram, seguiram um para o outro e se abraçaram em sigilos e cumplicidades de dores não partilhadas. Vamos, vamos descansar, disse Dias. A mulher ali mesmo morava no andar superior. Dias seguiu seu rumo; ouvia o som leve e rápido dos próprios passos, um galo aqui outro acolá, cantavam tristes e insistentes, alguém, alguns, gritando por ali estes gritos de fim de festa quando se vai embora tirando a camisa, o alcool hiperdimensionando as alegrias, pobres alegrias, nada além do que sempre corria por ali, as engrenagens funcionando, funcionando.

Seguiu passando por uns pequenos armazens fechados de portas grandes que vinham logo depois do bar, alguem gritou seu nome de longe no diminutivo, rindo, Diazinho, vai pra casa, hem! e outras babaquices do tipo, umas dez casas algumas habitadas e outras sem condições de abrigar alguém se sucediam numa linha reta, na frente um espaço grande como um campo de futebol, agora limpo dos entulhos retirados a mando do novo gerente, ao fundo, mas não mais na mesma linha, um pouco mais para a frente quatro armazens maiores. Tinha o dia já aquela cor macia de fim de madrugada, flor que se contempla longe da mão direta e pesada do sol, o ar carregava sem esforço um cheiro doce, quase imperceptível, de erva-de-santa-maria, que por ali tinham muitos pés. Entrou por entre o armazém dois e o três e seguiu depois deles por uma espécie de alameda em que as laterais eram carros cobertos de ferrugem, não lhes restara de toda a beleza e potência nos motores outro futuro senão aquele, naquela cor, abatido marrom; todavia, ao modo de olhares em retratos, olhares que clamam melancolicamente por vida em túmulos de datas tão distantes, mesmo que do ano anterior, datas em túmulos sempre são distantes, restavam alguns pontos e manchas e pedaços coloridos naqueles carros, num, noutro, num, noutro, marcas informes de alegrias findadas. Um navio apitou, doeu-lhe; todas as engrenagens seguiam intactas, de novo apitou, ainda mais dolorido, e de novo.
Inesperado sol

40

No seguir dos dias, já na puberdade, quando seus desejos anunciaram uma nova luta, uma a mais dentre tantas, Dias abandonou as rezas. Pedira umas vezes, não muitas mas bastante, que a santa do dia vinte e cinco quebrasse a roda das engrenagens, mas a vida se ia girando nos mesmos eixos sem sinal de desistir, girando, girando, girando. Desacreditou que a santa tivesse esse poder, quebrar as engrenagens dos destinos, não sabia o que fazer com o seu, com as proibições que lhe eram impostas sem os devidos entendimentos com as forças que lhe moviam o olhar, enrijeciam o corpo, angariavam-lhe o sangue e o amor. Há engrenagens que não se quebram, se azeitam, há engrenagens que enferrujam, mas não se quebram, há coisas que se esquecem, dores que se incluem nos pertences mais íntimos. Pensava nisso enquanto se aproximava da entrada do bar, olhou para o céu, tinha que encarar a vida, mais uma vez, e assim tinha que ser, não se entristecia. Dias assumiu seu lugar no balcão sem olhar para o estivador ao lado, queria distância. Justino demonstrava impaciência. O estivador procurou, procurou, discreto, esperto, até que foi capaz de chegar aos ouvidos de Dias, naturalmente, como se falasse coisas do trabalho, para impor seus domínios. Percebi seu interesse pelo tal gerentinho, lhe conheço rapaz, você presta atenção, você presta atenção. Aquele você presta atenção repetido que no passado funcionava como um controle, uma corda, uma rédea, um prenúncio de violência, ali dissipou-se no meio do barulho e da música, fez de conta que não ouviu.

23 janeiro 2011

Inesperado sol

39

Dias sempre teve o seu próprio canto para morar, o que poderia chamar de casa, desde criança, quando chegara à velha siderúrgica; de tempos em tempos mudava, lugares era o que não faltava naqueles muitos galpões, também nao carecia de imaginação e criatividade para montar sua casa, aqui, acolá. Em certas noites, todavia, sem saber por quê pois se entendia como corajoso, ou quando alguns sonhos rompiam seu sono com sustos e sobressaltos corria pelo escuro afora por entre os vultos formados pelos entulhos e ferragens para a casa da avó Luzia, e lá, naquela cama macia e cheirosa sempre pronta, já tranquilo e refeito dos seus medos, se determinava a não dormir para aproveitar a oportunidade e descobrir os segredos da boa velha. Desdobrava-se em tentativas de vencer o cansaço, o sono, e montar vigilância, permanecer de ouvidos bem atentos para os ruídos diferentes, seriam diferentes, reveladores e, então, de espreita encontraria o lugar certo para tudo observar; nos idos da madrugada, a avó se transformaria, ele tinha certeza, queria ver, num beija-flor, numa andorinha, quem sabe uma rolinha, num pássaro pequeno qualquer, pois supunha, era por estes rumos, como um passarinho esperto, que ela ia aos seus três santos lá no alto do céu, logo bem cedinho, antes do sol abrir todas as portas da luz, e saber deles coisas do futuro. O costume se mantinha, tantas coisas perdera, mas isto permanecia, a ligação entre futuro e alto do céu, não conseguia vencer aquela mania, ao contrario das pessoas que abaixam a cabeça nos momentos de pensar no futuro, ele olhava para o alto. Em algumas outras noites, quase derrubado pelo sono mas ainda não, a imaginação travessa levava-o fácil para mostrar a avó se transformando numa coruja horrível, ou num morcego pesado e fedorento, e então encobria a cabeça com o lençol e rezava, rezava ou tentava, misturando as palavras daquelas rezas que com ela mesma havia aprendido, especialmente aquela à Santa Catarina.

22 janeiro 2011

Inesperado sol

38

Naquela noite não, naquela noite as coisas aconteciam, o baile, o novo gerente, o que ia se dando por dentro, na cabeça de cada um, daqueles que acreditavam que a velha siderúrgica pudesse recuperar o vigor do passado; Dias não, Dias não conhecera aquele lugar senão abandonado, como se assim sempre tivesse existido, cenário de um filme que não chegou a ser produzido. Suas lembranças todas estavam fundadas naquele lugar, nem sabia de onde viera, crescera ali, com a ajuda de um, de outro, especialmente da avó, aquela que aprendera a chamar de avó, avó Luzia, queria na verdade chamá-la de mãe, mas ela nunca permitiu. O lugar e a avó eram sócios nos anos, no tempo escorrido, cubo de gelo derretido ao sol e absorvido pelo chão, impossível volta.

A avó guardava algo, não sabia o quê, algo que ela entregaria a um homem bom, como ela dizia, um homem bom virá, e dizia isso sempre no dia vinte de janeiro, vinte e cinco de novembro e treze de dezembro, dias dos seus três santos. O treze de dezembro ele sabia, era a festa de Santa Luzia, aniversário da avó. Havia comida boa nestes dias e aquele anúncio estranho. Mas no dia de Santa Luzia, além da comida boa ela lhe reservava uma sacola de doces, balas, bombons. A avó, sim, a avó. Precisava visitá-la. Ela sabia dizer coisas, não lia cartas, mãos, não fazia despachos, não fazia grandes rezas, mas sabia de coisas do futuro, fragmentos, pedaços, mas sabia.

21 janeiro 2011

Inesperado sol

37

O estivador apareceu na porta do bar e olhou para um lado e para o outro, procurava-o com certeza, voltou a entrar. Dias apertou o que sobrara do cigarro sobre o cimento velho esbranquiçado da calçada com uma força excessiva como se esmagasse debaixo da brasa que se ia fazendo em cinzas um bicho peçonhento, uma lacraia, um verme qualquer. Levantou-se, agia como se estivesse numa cena de cinema, imaginava-se sempre num filme, cada insignificante momento ganhava importância, seus gestos ganhavam valor, às vezes cansava-se, umas poucas vezes esquecia aquilo, mas sempre retornava-lhe essa idéia, era preciso atuar bem, esfregou uma mão sobre a outra, ia à luta, respirou mais fundo o ar, ah o vento estava carregado de maresia, ainda mais forte do que de costume, gostava da maresia, lembranças de quando o abandono ainda não era contaminado pela consciência, quando o presente, duro, áspero, se contorcia em alegrias de viver livre, enganosas, traiçoeiras, mas alegrias. Bem sabia a um tempo que a alegria pode burlar a realidade, a ela se permite tomar de Deus este atributo, criar mundos. Dias levantou-se e voltou ao trabalho no balcão do bar, tinha se comprometido com a dona daquele malcheiroso estabelcimento que a ajudaria naquela noite. Já tinha trabalhado ali um tempinho, mas não fora capaz de suportar a quietude e as sombras daquele lugar, ali as cenas se desenrolavam muito vagarosamente.

16 janeiro 2011

Inesperado sol

36

A um passo, Dias ficou a um passo do que poderia fazer, pegar aquele molho de chaves, não sabia exatamente para quê, talvez para devolver no dia seguinte com uma desculpa qualquer, ou para tentar abrir quem sabe certas portas, já imaginava dinheiro, algo de valor por detrás de alguma fechadura naquele mundo abandonado e enferrujado de galpões e galpões e galpões, casas velhas, salas abarrotadas de papéis, escritórios empoeirados, mas teve um descompasso entre o que poderia fazer e o que acontecia naquele momento. O gerente, sem saber, tornou-se um outro caminho, uma outra possobilidade. Sonhos que recorrem, uma ilusão de amor, estas coisas difíceis, ainda mais para ele, ilusões que sempre voltam, desejos que sempre estão à porta pedindo realização. Ao invés de tomar aquele molho de chaves preferiu aproximar-se mais do gerente, decidiu isso ao conhecê-lo no baile, aquele rosto entre o preocupado e o pensativo, o modo com que olhava a todos mesmo quando levava o copo de cerveja à boca, seu jeito de levar a amiga na dança, o braço sobre seu corpo apoiando a mão firme na lateral do quadril, enlaçando-a, quase enlaçando suas nádegas, puxando-a para sí ali embaixo e afastando-a na altura do rosto, negando-lhe na dança a intimidade que não fosse aquela, dos quadris apertados um sobre o outro. Ganhar sua amizade, não seria fácil, ou seria, teria que agir.

A estratégia agora, nem de todo era uma estratégia, o que seus pensamentos definiam agora era que devia agir com umas boas doses de humildade e paciência, paciência não teria muita, na humildade talvez fosse capaz de conduzir suas atitudes mais facilmente, não por lhe ser esta uma característica própria, mas pelas humilhações, pão de cada dia. Sentiu perder a excitação, o corpo se afrouxava, a mente não. Desenrolou-se logo de tudo pedindo desculpas, O senhor deve mesmo estar cansado, e eu aqui incomodando o senhor com esta conversa, mas pode contar comigo, ajudo no que for possível. Bateu a porta da caminhonete, afastou-se dois passos para trás e esperou o gerente dar partida. Viu aquelas luzes vermelhas se indo, desejou ir-lhe atrás, mesmo que a pé, correria, isto é certo, se cedesse ao desejo, a casa não ficava longe, e chegaria logo depois, mas virou-se e voltou para o bar. Antes sentou-se num degrau de uma casa ao lado do bar e ficou pensativo, fumando. Sentiu um leve movimento na boca do estômago, algo que se aparentava a um soluço, tinha este sintoma quando queria falar e não falava, quando engolia as próprias palavras, amargas na volta para o fundo da garganta, grossas e ásperas, um soluço, precisava beber alguma coisa, levou novamente o cigarro aos lábios numa tragada mais forte puxando a brasa bem próxima dos lábios.

14 janeiro 2011

Inesperado sol

35

O que você quer? reagiu Augusto assustado. Saí para fumar, respondeu o rapaz admirando a caminhonete e dizendo gostar daqueles modelos antigos. Saiu para fumar disse Augusto num tom que era outro, bem diferente do que a frase dizia, saiu para fumar, repetiu irritado. O rapaz ignorou a leve ironia, e demonstrava interesse pelo carro, rodeando-o e olhando os detalhes. Faz tempo que o senhor tem este carro? O modo de segurar o cigarro, de dar as tragadas tinha um quê de ensaio, de quem fuma a pouco tempo. O senhor não está gostando da festa? vai para outro lugar? fez outra pergunta sem esperar a resposta da primeira. Não, simplesmente vou para casa, tenho muito trabalho, muitas coisas a ver, respondeu, preciso descansar. Olha, disse o rapaz, se o senhor precisar de um auxiliar de escritório tenho experiência, no quartel fiquei nos trabalhos administrativos ajudando o sargento. Sim, disse Augusto, obrigado, mas por ora não vou contratar ninguém, me são suficientes os homens para a limpeza do lugar, recolhendo o ferro-velho; neste momento ja se assentava ao volante, e o rapaz, pela porta do carona que tinha pedido licença para abrir, admirava o painel da velha chevrolet. Sou apaixonado por este tipo de carro, disse o rapaz enquanto dobrava-se sobre a poltrona para olhar melhor. Quando disse apaixonado separou demais as sílabas, e a palavra ficou com um tom afetado. Não se importou com isso, até parecia ter um certo prazer, numa postura completamente diferente daquela que adotava debaixo dos olhares vigilantes do estivador. Sobre o acento do carona estava o molho de chaves.

13 janeiro 2011

Inesperado sol

34

Ao voltar ao balcão um outro ajudante tinha se juntado aos demais, um rapaz dos seus vinte e poucos anos. A mulher se mantinha afastada de atendê-lo especificamente, como se cumprisse ordem, veio o rapaz, veio com toda a prontidão, estendendo a mão e se apresentando com uma efusão de simpatia da qual logo se recompôs como se percebesse uma falha em si mesmo, um exagero, sempre se recriminava, mas não conseguia vencer aqueles modos, discretamente olhou para um lado e para o outro e continuou no seu trabalho. Justino Barroso percebeu a cena com atenção, havia em suas maneiras, no olhar disfarçado, um ato em premeditação de fera. Augusto observou, sentia que a posição que ocupava no imaginário daquelas pessoas dava-lhe uma importância com a qual não sabia lidar em função da falta de habilidades, aquelas que se adquire no desempenho cotidiano da autoridade. Durante o tempo que esteve ali Augusto sentiu que o rapaz o seguia, quase o perseguia, com um olhar morno, de chá de camomila, mão leve de barbeiro sobre o cabelo, nao sabia explicar. Saiu para respirar, o ideal seria ter agora um cigarro, fumar, fumar sem pressa, como aprendera na casa de dona Irene; mas abandonara o fumo com a ajuda da esposa, mas na fuga voltara a fumar. Entrou no bar, comprou um maço e foi-se embora, a chuva tinha passado, a noite estava clara, a lua brilhava em grandes espaços entre as nuvens, o ar era limpo, noite boa para andar solitário por ali, fumando, mas era um lugar ainda desconhecido, melhor se prevenir com certos cuidados. Como ainda era cedo para deixar a festa pensou que ninguém imaginaria de que se ia pra casa. Quando já chegava perto da caminhonete logo percebeu que sua saída não fora assim tão despercebida, o rapaz veio ao seu encalço.

12 janeiro 2011

Inesperado sol

33

O senhor é um homem sonhador, e carajoso, disse o estivador, pode me chamar de Barroso, todos me conhecem assim, é claro que meu nome, como já me apresentei, é Justino, mas de fato prefiro o sobrenome Barroso, me acostumei, o senhor... deseja uma nova cerveja? perguntou na sequência da conversa deixando um espaço na fala para depois de senhor. Augusto, meu nome é Augusto, respondeu. Admirou-se da tranquilidade em dizer o próprio nome. O senhor Augusto é um homem corajoso, o senhor acredita mesmo que tudo isto pode voltar a funcionar? continuou perguntando referindo-se ao complexo industrial. Augusto sorriu, disse um talvez... talvez, e se foi retirando, pedindo as devidas licenças. Havia ali naquele homem algo que precisava entender melhor, depois voltaria e veria por onde o tal Barroso iria conduzir a conversa. Foi-se na direção de uma mulher com quem trocava olhares, conhecia muito bem as voltas e as sílabas daquelas miradas; a escola que frequentara, a casa de dona Irene, não lhe deixava falhar. Era linda a menina, não mais que vinte anos, mas exacerbada na sensualidade e no desejo de viver uma noite feliz. Com certeza o que isso dizia é que a vida que levava era uma vidinha dura e de muitos desprazeres cotidianos. Ele não se importou com isso, não se importava com isso com as mulheres de dona Irene que muito bem sabiam separar, ou se tinham treinado para separar, a pobreza de vida que viviam das coisas da cama. Dançaram e os passos da dança diluiram com a cerveja aqueles outros pensamentos, de correntes pesadas, que lhe amarravam a idéia o tempo todo: o que tinha feito, meu Deus, o que tinha feito? o que fazer agora? Quantos dias se passaram desde a morte de Rosimara, perguntou-se, não soube responder, não pensou mais nisso, o clima no bar instava-o outras coisas.

11 janeiro 2011

Inesperado sol

32

As pessoas estavam ali em número bem maior do que pudesse imaginar num baile tão apressadamente organizado; as notícias de fato corriam rápido, não podia vacilar e nem podia esquecer sua condição. Cumprimentou os que por ele passavam, dispensou as gentilezas exageradas posicionando-se entre a firmeza e a simpatia e dirigiu-se ao balcão. Encostou-se, pediu sua cerveja e ficou de guarda das feições e movimentos de todos. A senhora do bar parecia outra, tinha remoçado pela maquiagem e pelos cabelos bem cuidados e os olhos pareciam mais vívidos, mas ainda assim ela escondia, ou tentava, nos entrecantos da voz, dos gestos, uma inquietude. Seu marido era da estiva, ele mesmo o disse na apresentação breve, com olhar oblíquo, a postura vulnerável de algum modo, apesar de acintosamente forte. É que a presença do gerente impunha ao homem uma postura, um controle de si mesmo, sabe-se lá qual, que deixava à mostra suas profusas ramas na maneira de esfregar aquele pano no balcão, um vaivém nervoso, não nervoso propriamente, mas exagerado nos intentos de limpar aquela superfície que não carecia mais de limpeza, a dar sinais de longas e ramificadas raízes subterrâneas.

10 janeiro 2011

Inesperado sol

31

Bem que poderia ter um paletó para ir ao baile, não tinha, mas cairia-lhe adequadamente a jaqueta ainda nova de couro marron escuro que trouxera na fuga junto com algumas outras básicas peças de roupa. Chovia e a peça lhe seria a solução para não chegar em mangas de camisa. A librina tinha se transformado em chuva, não das fortes, mas constante, e a temperatura já era bem amena, quase fria. Olhou-se no espelho e a lembrança levou-o outra vez para a casa da chácara; fora educado nas elegâncias, por assim dizer, pelas meninas de dona Irene; elas, que bem conheciam a transformação do moleque em homem feito, entre risos e trejeitos destituídos de timidez, davam as dicas, nem sempre acertadas, do que poderia ou não agradar aos olhos femininos, estas coisas do que falar, o que valorizar, que cheiro usar. Refinou-se no próprio charme com elas. Na verdade, além do que aprendeu destas etiquetas, de como se vestir, teve delas também como herança uma parte de alma, tinha um quê de feminino no modo de ver o mundo, sem perder contudo sua fama, e talvez isso explicasse seu sucesso com as mulheres, aquele rio de virilidade sem ostentação com um veio sinuoso de delicadeza. Perguntava-se ali olhando-se nos olhos o porquê de estar assim nesses momentos com a lembrança tão aguçada para a chácara. Queria lembrar-se de sua Rosimara, recriminava-se, mas a recriminação perdia convicção, era um esforço, uma lição disinteressante, sem nenhuma chance de ser assimilada, enquanto as outras, estas da casa da chácara, vinham aos borbotões.

09 janeiro 2011

Inesperado sol

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Aquela casa com seus silêncios ofereceu-se sem resistência em suas portas e recantos como assim se oferecia a casa da chácara nos limites da cidade onde se cruzavam muros e cercas, milharais e oficinas de marcenaria. Ali, logo depois da ultima casa da rua, depois dos últimos paralepípedos, um longo muro e um portão imponente bem trancado, lá dentro, pelas poucas frestas, se via, ao fundo de uma alameda ladeada por mangueiras antigas, uma casa linda, grande, de paredes amarelinhas e janelas azuis. Ali, ainda bem novo, com seus doze, mas suficientemente esperto e pronto para os negócios, sabia muito bem oferecer favores à dona Irene. Lembrava seu passado em sua distante cidade enquanto vasculhava a casa do gerente, procurando portas trancadas ou gavetas, sem descobrir nada. Dona Irene o tinha por moleque protegido desde quando, por esperteza, ele se infiltrara pela chácara para catar mangas, com cara de ingênuo, mas cujo propósito mesmo já bem antes definito era se avizinhar da intimidade daquele sítio onde decerto encontraria algo que lhe fosse do interesse. Tornou-se enfim moleque de confiança da dona da casa, levava e trazia recados para homens importantes na cidade, prestava-se com muita solicitude a fazer favores para as meninas de dona Irene, estava sempre pronto. Sempre depois das aulas se arranjava bem em desculpas para se desvincular dos outros meninos e sorrateiramente ir até a chácara. Passava voando pelas ruas com sua bicicleta, ninguém se dava conta dos seus movimentos e dos traçados que fazia pelas ruas, não repetindo rotineiramente o mesmo percurso e chegando como um anjo que do nada aparece e do nada some. Logo que se sentiu aceito, depois das broncas nas primeiras investidas sobre as mangueiras com pedradas, ou balanções em seus galhos, trepado a ponto de cair, ponto de observação mais apropriado a olhar pelas janelas do segundo pavimento, as mais misteriosas janelas, seus interesses libidinosos insistentemente vazavam em meios-sorrisos, olhares dúbios, meiguice tímida. Não resistiram, caíram-se de cuidados e mimos para com o menino, tornou-se homem. Tornou-se homem frequentando a casa e ao encontrar sua Rosimara se empenhou duramente, como um estoico, a fazer outros passos que não aqueles habituados com os rumos, muitos, que dariam na chácara.

08 janeiro 2011

Inesperado sol

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Os dias então se sucederam mais rápidamente do que sua dor vinha permitindo desde o acidente e morte da esposa. Ao fim da tarde de sábado voltou do trabalho para a dita casa do gerente, librinava. Quanto mais caia-lhe a ingrata sensação de estar fazendo o que nunca faria, de meter-se em coisas alheias, mais persistente apesar de vagarosa se tornava sua vontade de trabalhar. Esta, a vontade de trabalhar, parecia suceder aquela, a vontade de fugir, fugir para um lugar bem longe, lá onde as lembranças, árvores sem frutos, não estenderiam suas sombras. Mas elas iam, iam, sombras lânguidas, mansas, sorrateiras, e chegavam sempre, infelizmente, marcas arroxeadas que surgem tarde, mas surgem, em carne magoada. Na hora do almoço já tinha determinado a uma das mulheres que cuidasse de umas peças de roupa que usaria à noite no baile que alguns, rapidamente, já haviam organizado e que aconteceria no salão do bar. Seria a personagem principal da festa e não poderia faltar, mas agora a librina que caía era um bom convite para o recolhimento e um sono pesado. O cansaço do trabalho dava-lhe este ganho indireto, mas valioso, dormir como uma pedra, sem sonhos, sem sobressaltos, sem cenas que reapareciam do nada em sua mente como se fossem reais de tão vívidas. Mas teria que ir ao baile, ainda poderia tomar um banho, relaxar por umas horas, sondar talvez portas e gavetas com aquelas chaves.
Inesperado sol

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Os dias que se seguiram foram marcados por muito trabalho, não só do gerente, mas do comprador de ferro-velho e dos homens do bar. Foram vendidas as ferragens abandonadas pelas áreas livres do parque industrial, o desleixo tinha prevalecido naqueles que então conduziam os negócios por aquelas bandas, relaxo que se associou depois, no seguir dos anos, à força poderosa e rápida do abandono. Ferragens foram recolhidas desde o portão de entrada até a porta do escritório, a aparência do lugar ia se modificando a cada dia, o gramado cheio de mato e de carcaças de carros, peças de ferro e maquinários inutilizáveis por onde pastavam aquelas poucas cabeças de gado parecia agora mais plano e verde. Mesmo que o trabalho de quase uma semana tivesse já possibilitado uma nova feição para o lugar havia ainda muito ferro-velho espalhado pelas redondezas, aquele ar de tristeza, de nostalgia, ainda era forte, mas já outro espírito se infiltrava por ali. O preço combinado favorecia o comprador mas ainda mais o senhor gerente tinha lucros, recebia em dinheiro a cada dia e se mostrava seguro e determinado nas suas ordens. Os homens com suas diárias, o gerente era generoso, tornavam o bar no fim do dia um salão de festas com um vozerio animado e muitas gargalhadas, as esperanças se renovam facilmente. O tempo todo o senhor gerente estava por ali com os trabalhadores, conferindo o que se recolhia e, especialmente, o que se falava. Ocupava com destreza um lugar entre amigo e chefe, mantendo-se sempre a uma certa distância afetiva de todos, o que, imaginava, determinaria a visibilidade do seu amor pelo trabalho, o respeito por seus comandados e a segurança de sua autoridade.

07 janeiro 2011

Inesperado sol

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Ficou ali por horas com aqueles papéis, só então lembrou do molho de chaves que recebera logo que chegara e, decerto, seria muito mais importante procurar portas e gavetas que se pudessem abrir com aquelas chaves do que folhear velhos livros, pastas, etc. Neste momento gritaram por ele da porta do prédio, era um dos homens com os quais tinha feito a reunião no bar, trazia possivelmente o comprador de ferro-velho, foi isto que concluiu ao avistar lá de cima do segundo andar um homem com marcas de quem lidava com ferrugens e asperezas, o que ficava evidente no olhar e num par de luvas grossas que trazia na mão direita. Reparou a paisagem, o cais no azul da manhã, um certo aperto no coração com o qual lutava uma luta sem elegância, sem regras, e titubeou levemente nas decisões que ia tomando. Fez sinal para que esperassem, logo desceria, mas rápido voltou à janela e pediu que subissem, achou melhor sentar-se na cadeira do gerente, impor uma certa distância, se proteger com aquela pesada mesa, impor a autoridade que o outro esperaria. A desordem da sala teria também um efeito bom sobre o homem, angariaria credibilidade tanto do comprador de ferro-velho quanto do que o trazia e que diria aos outros as notícias que logo se espalharia por toda a vila, precisava disso, de que o novo gerente estava de fato empenhado em colocar tudo de novo em funcionamento.

06 janeiro 2011

Inesperado sol

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No escritório, enquanto manuseava pastas e pastas sem saber o que procurava, o contato com aquela senhora determinava-lhe idas e vindas, caminhos possíveis e outros entendimentos. Algumas pastas guardava nos armários de onde as tirava, outras jogava num canto, as que estavam mais corroídas pelo tempo e pelas brocas. Quem chegasse à porta e o visse ali envolvido com aquela papelada logo comprovaria seu real interesse em colocar em andamento com responsabilidade e muito empenho sua gerência, ficariam admirados, mas o que ele fazia era somente oferecer a si mesmo a idéia de que trabalhava, precisava disso. Ela nao lhe dera maiores informações exatamente por supor que ele já as tivesse recebido quando da aceitação da função. O fato de ser chamado o tempo todo e por todos de senhor gerente levou-o a conclusão de que não sabiam do tal gerente nada além de que um novo viria para administrar aquelas instalações. Não haveria mais de se preocupar em saber o nome do verdadeiro gerente, qualquer nome que ele usasse seria bem aceito, até o próprio, mas na atual situação melhor mesmo era continuar simplesmente como o senhor gerente.

05 janeiro 2011

Inesperado sol

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Sem saber exatamente o que dizer além da resposta ao bom dia da senhora e já de imediato pensando que ela seria uma empregada, se bem que se ia muito avançada nos anos para dar conta de serviços domésticos, e nem tinha estado entre as outras que cuidaram da casa no dia anterior e com as quais cruzara quando chegara, ele postou-se de pé diante da mesa demonstrando tranquilidade, apesar de em seus espaços correrem cavalos assustados, aves batendo asas em voos imprevistos. Olhou para um lado e para o outro, procurava café, mais procurava um tempinho pra organizar os pensamentos, lembrou que não fugiria mais, que era o gerente, via que o fogão no canto da espaçosa cozinha estava frio, com umas panelas cobertas com um pano, a comida deixada pelas mulheres na véspera, que ele não tocou. De lógico era só ter pensado antes, que se não havia cheiro nenhum na cozinha que indicasse uma presença, cheiro de café, cheiro de pão, de frituras, nada ainda havia sido feito e aquela senhora não estava ali para servi-lo. Gostava de acordar antes do sol nascer, gostava de presenciar o dia se abrindo de manhã. Uma tênue luz entrava pelos vidros da janela. Não sabia onde estava, em que parede, o interruptor. Onde se acende as lâmpadas, perguntou, e a senhora levantou-se sem pressa, foi até a parede esquerda ao lado da porta por onde ele havia chegado e acendeu a lâmpada. Mas não haveria mais necessidade da lâmpada, havia luz suficiente no ambiente, luz macia, descansada, leve. O estalo do botão foi maior do que devia ser, como se o desuso tivesse aumentado a pressão do interruptor. Sentando-se novamente no mesmo local a velha senhora articulou-se em modos mais doces sem conseguir e dirigiu-lhe a palavra. Mas o que dizia soava-lhe estranho, como voz de cartomante, benzedeira, ou algo assim. Sente-se por favor. As palavras que vieram depois ele não ouviu. Por favor, repita o que a senhora disse. Não é mais necessario, ela respondeu, tenho isto e é ao senhor que devo entregar, cumpro minhas obrigações. Estendeu a mão e deu-lhe o papel envolto no lencinho xadrez.

03 janeiro 2011

Inesperado sol

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A mulher pigarreou enquanto empurrava a porta dos fundos e que dava num pequeno hall onde ficavam umas caixas de legumes vazias, uns latões e coisas do tipo como se fosse uma casa de fazenda, e se ia por ali até a cozinha, onde ela, enxergando muito bem com os seus tatos e os costumes com aquelas partes da casa, se assentou. Esperaria ali com as duas mãos descansando sobre a mesa ao modo de rezar, sem rezar, guardando aquele pequeno papel dobrado, um papel de embrulho que ela cuidadosamente envolvera com um lenço de xadrez apagado, um tecido que teria sido outra coisa antes de lenço talvez. Quando ele, o suposto gerente chegou à cozinha, a luz do sol ia longe de se esparramar majestosa por todos os lugares e recantos daquele mundo, a noite largava ainda grandes e pesados fardos das suas nuvens sobre as coisas. Assustou-se o senhor suposto gerente. Assim acontecera. Matou a mulher pensando que era um ladrão no escuro quando ao ouvir um barulho, alto da noite, apoiando-se em coragem no revolver do qual se orgulhava e mostrava aos amigos, empunhou-o e foi sem acender luz nenhuma à cata do dito cujo que lhe invadira o domicílio. Assustou-se a mulher na cozinha, que se levantara, não se sentia bem, não sabia direito o que lhe fazia mal, estava enjoada, e engolia no escuro uns goles d'água bem gelada com certas tristezas e desencantos. A água bem gelada parecia diminuir a revolta do estômago. Levantou-se apavorada da mesa ao ver e reconhecer o marido com a arma na mão, a pobre e jovem mulher, ao contrário desta agora que se manteve sentada com seu lenço na mão a guardar aquele papel, uma espécie de documento, levantou-se deixando a cadeira cair, sem tempo pra dizer sou eu querido, o barulho da cadeira no chão foi maior pelos medos que invadiam a casa, o marido precipitou-se atirando e matando a esposa naquele escuro da vida nas penumbras da cozinha, nos segredos da casa. Agora ali a mulher, a velha e pequena senhora manteve-se quieta, quase uma pedra, não fosse um bom dia senhor gerente que ela em voz mansa, com um certo quê de mando, foi dizendo.

01 janeiro 2011

Inesperado sol

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Na sua mente surgiu o sol, por antecipação, o sol do dia seguinte, aquele que ele decidia viver. Tinha clareza, estava certo. Voltou-se da janela e foi para a cama, deitou-se e um leve sorriso se esboçou na  face enquanto encontrava a posição certa no travesseiro. Movimentou também a boca como a acertar os sabores, a lingua e os dentes para o sono. Voou para a velho bar e observou novamente aquela mulher. Perdeu-se dela e o que viu foi sua esposa, seu sorriso, seu jeito entre o tímido, o ingênuo, a dissimulação, voltou-se para a mulher do bar, pensou nela com um certo sentimento, um agrado lhe vinha daqueles lábios, ou do olhar, ou do jeito de gesticular num resquício de belezas, de encantos. Matara a própria esposa, mas agora seria o tal gerente, afinal não mais havia jeito para a morte e para o passado. Contentava-se em ser melhor, consolava-se com a possibilidade de ser melhor, ter dias melhores. Mastigou o que não tinha na boca, articulou palavras sem síbalas, movimentos primais, flexionou mais os joelhos, acertou as mãos unidas por baixo do travesseiro. Havia um cheiro ali na fronha limpa, um cheiro de bambuzal ao sol. Um dia visitaria o túmulo dela, em dia de sol forte. Veio-lhe esta idéia assim. Adormeceu.