12 abril 2010

Inesperado sol
3

Jogou fora a guimba do cigarro usando o polegar e o dedo médio como alavanca, e a pequena brasa rodopiou no ar extinguindo-se em invisíveis resquíscios de satisfação. O gesto era mais um gesto sem foco do que a indiferença de jogar para o ar um resto de cigarro, num arremessar impiedoso, para que se danasse a brasa fumegante ali na pequena viagem, se bem que também era isso. Caía em curva ascendende e depois descendente, mas caía sempre, inexoralvelmente, a guimba. Caía a vagueza do ver a velha caixad'água, o seu derredor, ao fundo os velhos galpões, os guindastes marrons de ferrugem, caía sem origem e sem destino, um fosco e viscoso brilho de uma canção ao longe em recordação inesperada da qual não se é capaz de distinguir as palavras. O gesto e o olhar que o acompanhava tinha aquele peso de queda que tanto pode ser o peso de um amor quanto de várias tristezas. O amor é sempre único, as tristezas se acumulam, sacudiu a cabeça espantando pequenos mosquitos.

Logo e assim seguindo, dirigindo vagarosamente, avistou por detrás de umas carcaças de caminhões, pastanto em abundantes trechos de capim entre os metais enferrujados, uma branca e doce vaca de pêlo brilhoso, com seu bezerro. A vaca comia aqui e acolá sem ter o que procurar dada a abastância de comida. O bezerro fungava-lhe os úberes e dava-lhes umas estocadas com o focinho para depois saciar-se do calor e do sabor materno. A vaca se entretinha entre abaixar a cabeça e reerguê-la para mastigar o que tinha colhido com seus dentes e com sua lingua áspera e saliventa. Correu-lhe pela pele, no intercurso do encontro, do que se depreende dos encontros, do que um encontro anuncia, um sentimento de retornar e pisar fundo o acelerador, e com alegria arremessar o molho de chaves na direção da guarita e seguir pela cidade afora, vazar seus limites, ir embora, dando prosseguimento, sem atalhos, ao seu destino.

10 comentários:

Jacinta Dantas disse...

Caramba, Dauri.
As imagens propostas aqui são lindas. É bonito demais visualizar a cena do bezerro sugando o leite de sua mãe.
Vou acompanhando na expectativa do Inesperado Sol.
Beijo

lula eurico disse...

Jaci, o Sol já está aqui... nas entrelinhas... nos úberes da vaca, na água cristalina do riacho, nas gramíneas, no musgo...
O Sol é tão familiar que é preciso um artista para nos fazer enxergá-lo... o Dauri é esse demiurgo.

Ava disse...

Um esperado sol...rs

A busca por algo, por um sonho, por um objetivo...

A riqueza de detalhes nessa busca é impressionante, desde o gesto de jogar a guimba de cigarro, com o polegar e o in dicador, até a imagem da vaca, com sua lingua saliventa a pastar..

E essa vontade de pisar fundo no acelerador e ir embora... em busco do inesperado sol...

Muito bom ler voce. SAbe que volto a minha infãncia, quando leio um texto assim, impregnado de detalhes de uma vida no interior...

A cena do bezerro mamando é incrivelente real... Só quemviveu na roça sabe desses detalhes... de tantos pormenores...


Beijos e carinhos meus!

Luiza disse...

Dauri

que lindo estão seus contos!
Estou impressionada com os detalhes...voçe me fez lembrar, deliciar no cheiro desta viagem... algum lugar no passado!

Saudades

Zezé (cantora) disse...

Encontrei-te e, não te deixarei mais. Estou adorando tudo.
Ainda não terminei de ler 'O último porto do rio" mas os capitulos que li,amei.
Estou agora embarcada nesta camionete que me levará, com certeza ao sol que não tem nada de inesperado. Gostei muito deste título,apesar de não ser definitivo. Parabéns! Bjs Zezé

Sueli Maia (Mai) disse...

Interessante como a descrição minunciosa de um cenário, de gestos, pensamentos, faz surgir, emergir em associações...
A palavra pausa o instante como em uma fotografia.
um beijo

Mª Helena disse...

Seus detalhes tornam tudo tão real que parece-me estar assistindo a um filme em 3D.Destaco também a sonoridade que você põe no entrelaço das palavras.
Já me apaixonei pelo conto.
Abç

Ilaine disse...

Sacio-me ao sabor morno dessa litertura, assim como "o bezerro... sacia-se do calor e do sabor materno." Um abraço, um carinho.

Léo Santos disse...

O melhor de tudo é sem dúvida o cenário... Sigo em frente!

eder ribeiro disse...

Tou pegando carona na história...