21 abril 2010

Inesperado sol
6

Logo encontrou o prédio da administração. Estava ali, imponente ainda, mesmo que no desuso e na carência de reparos, sobre pequena elevação do terreno, bem defronte ao cais e a uma certa e boa distância da siderúrgica. Um prédio de dois andares em estilo eclético que parecia datar das primeiras décadas do século vinte. No frontal, acima da porta principal ladeada por quatro janelas de cada lado, o mesmo se repetindo no andar superior, também se via aquele nome que se derretia no alto da caixa d'água.

Apareceram assim como que do nada quatro meninos capitaneados por um branquelo e magro de uns onze anos que foi logo perguntando se ele iria reativar a fábrica. Olhando para as chaves estava, olhando para as chaves continuou sem lhes dar atenção. Tentava descobrir e acertar de primeira a que abriria aquela grande porta de entrada. A porta está aberta, senhor, disse o tal menino, a segunda é que está trancada, e bem trancada, e o menino disse isso empurrando a banda direita que foi cedendo e girando sobre suas dobradiças sem ranger.

Como por uma simples vontade de contrariar à gentileza e esperteza do menino, mas não era isso que lhe definia as atitudes naquele momento, voltou à caminhonete alvorada 62 e ordenou com uma certa rispidez que os meninos o deixassem trabalhar. Saindo correndo com os braços abertos brincavam de aeroplanos voando, os quatro aviões tinham uma das asas se formando em desequilíbrio com o resto do corpo pois levavam goiaba em uma das mãos, ou outra fruta mordida, não reparou bem. Nos roncos guturais e suaves daqueles pequenos aviões ele ouviu um indistinto mas apertado sentimento, uma música, stardust talvez, ou o som descompassado que se deu no vão entre a porta que o menino abriu e o filho que não chegou a ter com ela. Amava-a. Desacreditava do amor, amor, que amor é esse? amava-a. Embora o meio-dia não tivesse marcado o rosto de ninguém por ali, aquela música fazia o sol ir adiantado, bem adiantado em tardes de olhares nômades.

17 abril 2010

Inesperado sol

5

Olhou para o molho de chaves jogado sobre a poltrona no lado do carona. Elas pesavam-se imóveis de muitas portas, de voltas nas ferrugens escondidas, nos escuros internos de gavetas, nos seus segredos. Um aro de arame em umas partes expondo um brilho pela fricção suportava-as espalhadas ao redor como raios de um sol esquecido de seus eixos, parado. Olhou para as chaves. Não havia nenhum vínculo com elas, teria de descobri-las no uso, nas portas, nas importâncias. Apenas encontrava nelas densidades de coisas paradas, coisas que prendem sentimentos em impossíveis felicidades. Umas traziam marcas de usos, outras marcavam acúmulos e cores de esquecimentos.

Jogou a marcha para o ponto morto, tomou o molho na mão enquanto seus olhos se iam das chaves para outras paragens. O modo com que fez isso parecia traduzir uma intenção de salvação, assim, a dar às chaves a vida do movimento e do tilintar. Salvava-as pelo movimento, fazia-as respirar pelo tilintar, ligava-as em família no barulho. Ficou ali brincando com as chaves, todo o corpo parado, apenas a mão direita movimentava as chaves no molho, e os olhos, os olhos embaçavam-se escravos na bifurcação da estrada daquele parque industrial abandonado.
O tilintar depois de um tempo impreciso, um tilintar mais agudo ou mais melancólico, ou uma onda arrebentando-se mais volumosa por ali ao fundo despertou-o. Não queria acordar, não queria o tempo todo pensar aqueles pensamentos, o franzir da testa, o leve movimento de negação da cabeça quase imperceptivel delineavam a presença da contrariedade, a despeito da firmeza da postura ao volante. Impunha-se, todavia, a necessidade de voltar às escolhas, às decisões. Largou o molho sobre a poltrona, abriu rápido o porta-luvas e se acalmou. Ali estava a arma enrolada em macio, velho, manchado feltro esverdeado.

O carro roncava parado em ponto morto, precisava de algum dinheiro, aquelas chaves poderiam, por um jogo de sorte, de um modo ou de outro, facilitar a viagem, se bem que já estava bem longe e deveria se permitir uma noite tranquila de sono. Engrenou a primeira marcha, e os pés, na embreagem e no acelerador, mantinham a caminhonete entre voltar daquele engano e seguir para as velhas instalações. Seguiu na direção da siderúrgica.

15 abril 2010

Inesperado sol

4

Às escondidas, por vias que não se sabe quais, de repente, uma serpente de imagens recordosas se insidiou por sua mente, sem veneno, sem susto, quase como amiga. Era uma serpente vencedora, vencedora pela simples presença nele, delimitando território, garantindo domínios. Se a manhã se levantava inquestionável sobre as decadências daquele lugar, as recordações se sobrepunham em tentativas orgulhosas sobre as culpas, a culpa. Foi o que foi, ele pensou, se por suas mãos ou não, o destino tecera seu manto com o fio do carretel dos acontecimentos.

O fato de ter parado a caminhonete ali deflagrava e revelava talvez um segundo movimento causado pelas recordações, à despeito do seu querer e de sua bem sucedida fuga, o movimento da sua mente queria a afirmação de uma verdade. Mesmo que incerto das palavras havia entre o olhar disto e daquilo naquele mundo abandonado uma insistência que forçava a lingua para a voz, e mesmo que por contenção na garganta ele dizia que a amava. Sim, era amor. Todos falam de amor e aquilo era amor, aquilo teria sido a sua experiencia de amor. Ele a tinha amado, dizer que não era amor seria como negar que o sol se infiltrava naquele lugar de abandono.

A realidade da manhã, a convicção que afirmava como amor o que sentia por ela, não se manifestava todavia na clareza em relação ao dia da semana. Seria terça ou quarta-feira? Tinha mais dúvida aqui. Estacionara numa bifurcação; uma via se ia para a pequena siderúrgica e o estaleiro, a outra ia para um tipo de vila operária

12 abril 2010

Inesperado sol
3

Jogou fora a guimba do cigarro usando o polegar e o dedo médio como alavanca, e a pequena brasa rodopiou no ar extinguindo-se em invisíveis resquíscios de satisfação. O gesto era mais um gesto sem foco do que a indiferença de jogar para o ar um resto de cigarro, num arremessar impiedoso, para que se danasse a brasa fumegante ali na pequena viagem, se bem que também era isso. Caía em curva ascendende e depois descendente, mas caía sempre, inexoralvelmente, a guimba. Caía a vagueza do ver a velha caixad'água, o seu derredor, ao fundo os velhos galpões, os guindastes marrons de ferrugem, caía sem origem e sem destino, um fosco e viscoso brilho de uma canção ao longe em recordação inesperada da qual não se é capaz de distinguir as palavras. O gesto e o olhar que o acompanhava tinha aquele peso de queda que tanto pode ser o peso de um amor quanto de várias tristezas. O amor é sempre único, as tristezas se acumulam, sacudiu a cabeça espantando pequenos mosquitos.

Logo e assim seguindo, dirigindo vagarosamente, avistou por detrás de umas carcaças de caminhões, pastanto em abundantes trechos de capim entre os metais enferrujados, uma branca e doce vaca de pêlo brilhoso, com seu bezerro. A vaca comia aqui e acolá sem ter o que procurar dada a abastância de comida. O bezerro fungava-lhe os úberes e dava-lhes umas estocadas com o focinho para depois saciar-se do calor e do sabor materno. A vaca se entretinha entre abaixar a cabeça e reerguê-la para mastigar o que tinha colhido com seus dentes e com sua lingua áspera e saliventa. Correu-lhe pela pele, no intercurso do encontro, do que se depreende dos encontros, do que um encontro anuncia, um sentimento de retornar e pisar fundo o acelerador, e com alegria arremessar o molho de chaves na direção da guarita e seguir pela cidade afora, vazar seus limites, ir embora, dando prosseguimento, sem atalhos, ao seu destino.

10 abril 2010

Inesperado sol
2

Ao atravessar o portão e logo mais adiante deu-se com um pequeno riacho que cortava a estrada arenosa. A água era limpa, limpa, o chão de areia da estrada não a maculava com nenhuma sombra de lama, mesmo quando as rodas da caminhonete lhe cortaram o fluxo. Uma curiosidade fez com que ele parasse ali, a abservação do ambiente, do lugar era o ganho que lhe permitia alguma posição de segurança. Olhou e viu que a água corria de uma caixa, velha e grande caixa d'água, com grandes nomes corroídos que não interessava ler, do alto vinha o filete, musgos e plantas ali se fixaram, e o vento frio que no alto gemia mais forte roubava-lhe com cruel constância leves gotas para deixá-las respingar por ali, tornando a vegetação das proximidades mais verde e viçosa.

Algo lhe ocorria na mente, não conseguia precisar o quê. Era uma espécie de saudade, uma força de raiva, um desejo fustigante das partes espirituais do estômago quando se vai e se vai e se vai distante ainda da realização de um querer. Resolveu sair do carro, puxou do bolso a cartela de cigarro, repetiu mecanicamente aqueles gestos de por o cigarro na boca, procurar num bolso, no outro, no casaco o isqueiro, e então vieram na sequência os primeiros desenhos de fumaça, pensamentos esvoaçantes, afônicos. Uma satisfação momentãnea parecia dar-lhe ali um amparo de viver outra vez naquele dia.

Recostado no paralama verde azualado ele desaguou-se em minutos perdidos, quantos não sabia. Era bom, respirava e fumava, respirava e olhava o rio que nascia da caixa d'água. De repente um pássaro vermelho, que pássaro era aquele?, veio junto com um olhar desprevenido, o vermelho vinha e ele não foi capaz de precisar de onde ele vinha. Vinha da caixa d'água, da vegetação ao redor, do topo da caixa. Acreditou por final, deu-se este entendimento de que o pássaro vermelho e a caixa d'água formavam um abraço, haveria por ali em algum recanto um lugar de ninho. O pássaro seria uma mãe com filhotes, não era muito grande, mas esperto sem ser agressivo, ele deu uma revoada sobre o espaço onde o carro tinha parado e se foi confabulando com o mundo na direção que seguia a estrada.

09 abril 2010

Inesperado sol (título provisório)

1
O dia tinha amanhecido com um ar de outros tempos, tempos bons, tinha algo daqueles em que se vive na infância, tempos em que os dias não são caminhos de imprevistos e rumos, são presentes, atualidades, nada mais, era abril, e se amanhecia mesmo, se o dia recomeçava, a manhã tinha uma feição de verão, a despeito de uma linha, cicatriz de vento frio soprando. Ao sair da camionete chevrolet alvorada 62 um além do prazer de esticar-se ao sol veio-lhe ao corpo todo, o resvalo do frio, arrepiou-se num entremeio de prazer e cansaço, tinha dirigido durante a noite toda, e agora, no dourado do sol nascente resolvera parar ali, nem sabia direito onde estava, rodara pela cidade desde a madrugada alta, lá pelas duas, quando cruzou seus limites, chegando. O braço do mar ali formava uma pequena baia de águas fundas onde se abrigava um abandonado porto, avizinhado de velhos galpões do que teria sido uma pequena siderúrgica, um estaleiro de pequenas embarcações, barcos de pesca talvez, se bem que ali também se degradavam embarcações maiores, o cenário lhe ofereceu um olhar do qual não se distinguia sentimentos, senão aqueles que ele sondava em si mesmo sem saber ao certo o que se aliançava entre o que ele trazia e o que ele encontrava. Ao se aproximar do portão fechado com correntes e cadeados um segurança gritou-lhe do alto de uma guarita que ele pensou também estivesse abandonada, e ao se aproximar do portão, do alambrado, não era a intenção de entrar que lhe movia os passos, mas a simples vontade de ver mais de perto aquele lugar, e o mar por ali, distraia-se na verdade. O senhor demorou, disse o segurança, aguardávamos pelo senhor deste a semana passada. Antes que ele tivesse palavras para dizer o que teria de dizer, já o outro abria-lhe o portão, e abria a mostrar que ele devia entrar com o carro. Logo veio-lhe o rapaz com um farto molho de chaves, dando-lhe boas vindas e desejando bom trabalho.

06 abril 2010

O último porto do rio ( ÚLTIMO CAPÍTULO)
56

Do outro lado, em frente à igreja, em morro ainda mais alto, o cemitério. Com as calêndulas nas mãos, olhei para o altar da santa, fiz um pequeno gesto de reverência com o inclinar da cabeça e saí, sem me persignar. Fui sozinha, o marido voltou para a venda, subi o morro com o ramalhete nas mãos. Há momentos em que não se pensa, ou o que se pensa é o passo que se dá, o lugar certo de pisar, o lugar certo a se olhar na paisagem nova. O que se pensa pode ser também o sentimento de um fluxo de coisas esquecidas, lembranças e desejos, o que se quis e o que se viveu. O que se pensa pode ser ainda o não querer pensar no amanhã. O momento ali me bastava, se me explico.

Não sei te dizer se era belo ou não o dia, o sol de verão no céu lavado e arejado garantia uma melancolia de meio-dia. Tu já sentiste a melancolia do meio-dia, um caminho entre ir e se deixar levar? entendes? O grupo que tinha acompanhado o enterro descia, entre eles uma pequena criança com um olhar de mundo grande em rosto apertado de sustos, uma menina, levada ao colo por um senhor negro.

Um distinto senhor, bem vestido, de pele clara, o único dentre os negros que participaram do funeral, estava ainda de pé olhando a cova coberta de uma terra avermelhada e úmida. Não havia nele sofrimento, apenas luto. Tu não entendes? confesso, também não, estabeleço entendimentos ao modo de inventar sentidos para o mundo que se abre em meus titubeios. Agora vejo que um luto sem sofrimento é um luto que joga o olhar bem longe, um olhar que despreza o perto, um olhar que atravessa o que está posto e enxerga lá. Tu agora entendes, eu sei, teu próprio olhar não nega, tantas vezes eu percebi que enquanto tramavas os arranjos de flores teu olhar enxergava lá. Eu digo, e não me contestarás, tu avistavas lá por e através do que fazias. Enxergar assim dói mais, e ao invés de dar existência ao sofrimento, salta-se para o luto.

Ele dobrou-se e acariciou o nome na cruz, Maria júlia. Despedia-se com um último gesto, mas ainda não era o último. Então ele arrancou os sapatos e as meias. Ó florista, um seu pé era negro. E ficou ali plantado com os pés na terra, depois, com a quietude rompida por pequenos ruídos em campinas anoitecidas à beira de estrada vazia ele olhou-me e se foi, com os sapatos pendurados nos dedos da mão direita. Fiquei ali. Cantavam ao redor do cemitério, nos matos e árvores, estes pássaros que se alvoroçam e calam ao meio-dia.

Tentei tirar do ramalhete umas calêndulas para deixar no entrecruzamento da madeira com o nome, outras eu colocaria aos pé da cruz, outras eu deixaria cair assim, ao sabor da queda, sobre a terra. Não consegui. O que fizeste, ó florista, com os arranjos, com as dobras dos arames, de que maneiras amarrastes todas as diferentes flores num único feixe? Espetei meu dedo, que sangrou, e não consegui arrancar do arranjo uma calêndula sequer. Então desci, e fui até a margem do rio e naquela terra densa e úmida plantei o buquê de calêndulas, depois voltei-me para a barcaça, abri a sobrinha e desci minha mão marcada de sangue nas águas do rio.

FIM

04 abril 2010

O último porto do rio (penúltimo capítulo)
55

Estava ali no altar uma Imaculada Conceição, linda como nunca vi, talvez exatamente assim eu enxergasse a santa porque meu olhar era solto de outros pesos naquele lugar. As curvas do seu manto esvoaçantes faziam dobras de coisas distantes, eventos e acontecimentos adormecidos, mas presentes, como um corpo morto mas ali, marcando um território no silêncio da capela, onde o eco de qualquer ruído era a resposta, a irrupção de dias já idos e cores envelhecidas em novos pedidos à minha alma. Perco-me em dizer-te, refaço-me em escoras mau erguidas nestas palavras, desculpa-me. O marido percebeu meu olhar cativo daquela imagem, mas não sabia ele que o que me detinha na escultura era a curva do manto que contornava o braço direito da santa, do ombro até a base de suas mãos postas sobre o peito. O tecido contorcido e leve ao mesmo tempo, num dourado triste e gasto de muitos olhares, dobrando-se sobre o azul fosco da face externa do manto, o vermelho escuro da túnica por baixo, ó florista, definiram para mim um lampejo de vida, qual não sei dizer além do que digo.

Ali não rezei, não se reza a uma curva, eu sei, meu Deus, o que falo? Lembrei naquele momento das tuas calêndulas, o belo ramalhete, e disse em voz alta, As calêndulas! O marido perguntou-me, Que calêndulas? As flores que trago na barcaça, respondi. Sim, sim, disse-me, aquelas flores que mandas fazer para as covas dos indigentes? Sim, respondi, mas estas quando encomendei tinha a senhora tedesca na intenção do presente, escolhi com cuidado o tipo de flor e como deveria ser o ramalhete, vistoso e abundante de tons de amarelo, nenhuma parcimônia na ilminação do buquê. Depois desisti da idéia e trouxe as flores comigo. Queres oferecê-las à santa? vou buscá-las, ele disse descendo o morro da capela.
Enquanto ele foi até a barcaça voltei-me para a porta da igreja e ali fiquei entre a sombra e o sol naquela linha tão bem definida, mas imprecisa todavia, a cada segundo movendo-se sem se mover. O rio espraiava-se manso, cumplice da curva, mostrava-se ali mais feliz, menos triste talvez seja o melhor a dizer. Ó florista, se tuas mãos hábeis elaborando singulares formas e arranjos me ajudavam a dizer coisas que normalmente ficariam sem nome, o rio depois da curva do manto da santa, o Santa Maria cúmplice da curva no deixar as coisas irem, o rio vagarosamente desbarrancando a curva em carinhos de destruição, o rio, ó florista, o rio ali me diluiu como a um torrão de barranco. Haverás de me supor estranha, na verdade o que sei dizer é que a curva paria-me em número impar. Dói ainda o descompasso de nascer na imparidade, coisa que vai me refazendo contudo, pressinto.

02 abril 2010

O último porto do rio
54

Antes de chegarmos ao Último Porto do Rio ancoramos num pequeno cais conhecido como Cais da Curva dos Pretos. Era um pequeno ancoradouro, um muro de pedras construído na margem esquerda de quem sobe. De frente para o cais um largo que ia dar num sobrado com três portas no andar de baixo onde funcionava um comércio, ao lado e na mesma linha mais duas casas e um armazém já bem velho. Do lado direito de quem olha do cais, numa elevação, uma capela. As paredes, brancas num dia distante, se tingiam de estranhas figuras cinzas que escorriam pelas suas faces de mulher abandonada de amores.

Da capela, enquanto nossa barcaça encostava no ancoradouro, saiu um enterro composto de um pequeno número de pessoas. Uma tristeza só, não somente pelo luto daqueles que seguiam com o caixão, mas pela composição da capela, do vilarejo, do sol escaldante com o enterro. Meu marido queria fazer ali uma parada rápida, esticar as pernas, ir à venda, estas coisas. Eu decidí uma demora maior. Logo quis ir à capela, agora vazia e triste. Subi as escadas de pedra e do alto, antes de entrar, voltei meu olhar para o cais. Ó florista, o olhar é pássaro faminto, de azas disformes, pássaro que busca incessante o alimento de ver, mas ao ver o que sacia, de maior fome se faz outro revoo.

Do alto olhei o rio e a curva, o pequeno cais, as barcaças, o enterro que se ia do outro lado subindo o morro do cemitério, e aquele lugar me iluminou os olhos de uma luz fria, extinguidora de consolos. Tu sabes como é isto? Explico, é quando todos os teus sentidos de viver, os que construíste de pedaços dos teus dias, se desmoranam todos, e tudo fica vazio. Estremeceu-me por dentro um relâmpago de entendimento do que dizia aquele sujeito nas cartas que me chegavam às mãos. Sim, a desolação daquela cena, o que era externo e próximo, o fora que casava com meus interiores, o sol escaldante calando a todos e a tudo esvaziava-me do que me criava sentidos de viver, e ainda, enquanto escrevo, me recupero deste esvaziamento. O lugarejo tornou-se uma ilha de silêncios e os rumores que se ouviam eram sons que vinham de fora, um fora longe, um grito distante de uma mãe chamando um filho, um canto de pássaro quase inaudível, um mugido de vaca, um latido de cão. Fiquei ali à porta da igreja olhando aquele mundo. A demora foi tanta que o marido veio ao meu encontro. Com ele entrei na capela.