O último porto do rio
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A volta para casa agora parece escorrer por um século longe, bem longe daqueles dias estendidos como roupa no varal logo ali no passado, ali onde a vida se ia estagnada, de casa para o cais, do armazém para casa. Alguns poucos dias se passaram desde o momento em que desci ao porto para ir me encontrar com Maria Júlia e atender seu pedido. Mas o tempo, corda atada aos tornozelos, se vai em friezas por vastidões do universo e nos entrepontos dos passos que dou. Não sei se o vinho ou o ar lavado pela chuva faz tudo ainda mais distante, impassível, os fatos e a vida dissociados, o pé se alevanta atrás e se apoia adiante nas pedras do calçamento da rua, o que foi adiante fica para trás, o que se baseou no chão volta ao ar, um avanço e um recuo na zona morta entre o agrado e o desprazer de mais um dia. Desconcentro-me do pensamento nos passos quando José Bento se despede, tomando o rumo de sua casa. Sigo pela rua abandonada e apenas o que quero é uma cama, o estirar-me sem anseios senão o do corpo que quer destituir a alma de seu comando deixando-a às tontas, desamparada, e o corpo fará da sua prostração o escárnio da agonia da alma em se ver sem o poder da vigília permanente, o farol apagado e ela vagante, perdida sobre o mar dos meus anos, perdida de seus rumos nos meus passos, inventando sonhos para não se desprender de mim. Dou-me conta de que estou sem as chaves de casa, a maleta ficou no armazém, ou no gabinete do juiz, Onde meu Deus? Volto ou arrombo a porta, uma janela? Paro. Olho para um lado e para o outro, alguém, alguma coisa poderia me tirar da indecisão, Maria Júlia em outros tempos ao meu lado diria vamos voltar, qual o problema? Aquele sorriso, borboletas amarelas e abelhas sobre a florada do cafezal em manhãs de sol quente depois de chuva mansa, me ajudaria. Volto sozinho ao armazém, sem resignação, sem revolta, alguém, insone, que olha por pequena janela e avista uma nesga de céu com uma lua esvaziando-se e traída pelas nuvens a deixá-la ora escondida, ora à mostra, despida. À porta do armazém sou invadido pelos olhos do menino, o filho do pescador, o feliz, e sinto seu medo, a escuridão como um poço profundo, um túnel imenso ali por dentro onde se escondem os que só se mostram por leves toques na pele. Encontro a maleta, volto para casa e desejo, volto apressado para casa com um desejo, não entendo, sonhar com a jaqueira mansa e amiga, a velha jaqueira cuja sombra ao cair da tarde chega, agora sei, para acariciar as mãos de meu pai, o rosto de minha mãe. Não me importa mais a cama, apenas a jaqueira.
A volta para casa agora parece escorrer por um século longe, bem longe daqueles dias estendidos como roupa no varal logo ali no passado, ali onde a vida se ia estagnada, de casa para o cais, do armazém para casa. Alguns poucos dias se passaram desde o momento em que desci ao porto para ir me encontrar com Maria Júlia e atender seu pedido. Mas o tempo, corda atada aos tornozelos, se vai em friezas por vastidões do universo e nos entrepontos dos passos que dou. Não sei se o vinho ou o ar lavado pela chuva faz tudo ainda mais distante, impassível, os fatos e a vida dissociados, o pé se alevanta atrás e se apoia adiante nas pedras do calçamento da rua, o que foi adiante fica para trás, o que se baseou no chão volta ao ar, um avanço e um recuo na zona morta entre o agrado e o desprazer de mais um dia. Desconcentro-me do pensamento nos passos quando José Bento se despede, tomando o rumo de sua casa. Sigo pela rua abandonada e apenas o que quero é uma cama, o estirar-me sem anseios senão o do corpo que quer destituir a alma de seu comando deixando-a às tontas, desamparada, e o corpo fará da sua prostração o escárnio da agonia da alma em se ver sem o poder da vigília permanente, o farol apagado e ela vagante, perdida sobre o mar dos meus anos, perdida de seus rumos nos meus passos, inventando sonhos para não se desprender de mim. Dou-me conta de que estou sem as chaves de casa, a maleta ficou no armazém, ou no gabinete do juiz, Onde meu Deus? Volto ou arrombo a porta, uma janela? Paro. Olho para um lado e para o outro, alguém, alguma coisa poderia me tirar da indecisão, Maria Júlia em outros tempos ao meu lado diria vamos voltar, qual o problema? Aquele sorriso, borboletas amarelas e abelhas sobre a florada do cafezal em manhãs de sol quente depois de chuva mansa, me ajudaria. Volto sozinho ao armazém, sem resignação, sem revolta, alguém, insone, que olha por pequena janela e avista uma nesga de céu com uma lua esvaziando-se e traída pelas nuvens a deixá-la ora escondida, ora à mostra, despida. À porta do armazém sou invadido pelos olhos do menino, o filho do pescador, o feliz, e sinto seu medo, a escuridão como um poço profundo, um túnel imenso ali por dentro onde se escondem os que só se mostram por leves toques na pele. Encontro a maleta, volto para casa e desejo, volto apressado para casa com um desejo, não entendo, sonhar com a jaqueira mansa e amiga, a velha jaqueira cuja sombra ao cair da tarde chega, agora sei, para acariciar as mãos de meu pai, o rosto de minha mãe. Não me importa mais a cama, apenas a jaqueira.