22 janeiro 2010

O último porto do rio
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É um esfomeado o índio, não nos oferece nenhuma ameaça. Digo que o levarei as autoridades e elas se encarregarão de descer com ele ao Porto do Mar de onde deverão encaminhá-lo para a sua aldeia. Durante à noite os canoeiros querem mantê-lo amarrado e, por via das dúvidas, também concordo, não por achar que ele pudesse usar de violência para conosco, não me parecia, mas por que fugiria com certeza. Não permito, no entanto, nenhuma outra ação que pudesse infligir a ele algum outro sofrimento dentre os muitos que já tinha. Sua perna na medida do possível tinha sido cuidada. Um dos canoeiros, o mais velho, entendido em folhas e emplastros tinha feito o que lhe estava ao alcance com aguardente, folhas e fumo. No Porto do Rio seria melhor observado e talvez enviado para a Casa de Misericórdia no Porto do Mar. O mestre pelo que demonstra, além de observar tudo, não se envolve com a questão. Recosto-me cansado, a noite não me assusta. Os canoeiros cantam junto à uma pequena fogueira onde bebem e comem, e mais distantes, em cada extremidade de um triângulo equilátero estamos eu, o mestre, o índio; entre nós a mesma distância, a mesma proximidade, silêncios diferentes. De madrugada acordo, na fogueira somente umas brasas, o resto é cinza, quietude. A lanterna colocada sobre restos de paredes caídas ilumina de desolada luz a vida de cada um, os canoeiros adormecidos, o mestre no lado oposto ao que seria a torre lateral, seu ponto de observação do caminho para o cais, eu na ruína da torre e o índio no espaço mais aberto no centro do átrio. Logo que acordo nada vejo, mas discretamente vou percebendo que o mestre e o índio também estão acordados. A luz da madrugada me faz bem, levanto-me e desço ao cais, percebo que podemos voltar a navegar o rio, com cuidado, mas podemos. Tenho urgência de voltar, preciso procurar Maria Júlia. O mestre segue meus passos e sem que lhe dissesse uma palavra também entende que é hora de retornar ao trabalho, grita aos canoeiros e convoca-os. Ele por último vai buscar suas coisas, esperamos todos na barcaça, rápido ele retorna. Quando estamos prontos para subir o rio peço um minuto e volto às ruínas, lembro-me do que eu aprendera, um lugar santo sempre será um lugar santo. O motivo daquele meu repente estava no pedido que Maria Júlia me fizera. Volto, me ajoelho ali e rezo, na verdade nem rezo, benzo-me e fico em silêncio. Quando me alevanto vejo na fogueira restos de folhas de papel. Tomo as partes não queimadas, o que é isto?, são minhas cartas, quer dizer, as palavras são as minhas, mas são cópias, em letras inseguras, forçadas, malfeitas.

7 comentários:

Maria Helena disse...

Não gosto de ser a primeira a tecer algum cometário sobre sua "OBRA",porque como já deve ter notado, não sou poeta e não sei exprimir o que sinto,mas conheço o que é bom e belo.E hoje meus olhos e sentimentos pararam em:"...entre nós a mesma distância,a mesma proximidade"...e depois fiquei pensando em quem estaria copiando as cartas.Será o mestre?Aguardo...Abraço

lula eurico disse...

Dauri Batisti, amigo, irmão, amado, aqui estou eu!!!

O Sol nasceu de novo!!!

BOM DIA, POETA!!!

Paula Barros disse...

Dauri,

Lendo seus contos, percebo mudanças no ritmo, as vezes fico em dúvida se é meu ritmo de sentir e ler que muda.

"em cada extremidade de um triângulo equilátero" Detalhes assim, me chamam a atenção.

abraço, bom dia!

Dauri Batisti disse...

Querida Paula,

Por enquanto são duas as vozes que narram o conto, a do João francisco e a da senhora do Porto do Mar. Se você ler vários trechos seguidos da narração feita pelo joão francisco verá o desenvolvimento de sua voz. O mesmo com a voz da senhora que recebe as cartas.

Até graficamente faço uma distinção: ele fala por parágrafos longos, ela por parágrafos menores.

Por enquanto é isso.

A leitura por parte também tem seus prejuízos, talvez o conto exigisse uma leitura mais corrida. Você me entende? e não assim fragmentada nos vários dias na medida que vou escrevendo.

Tem sido uma grande diversão escrever O Último porto do rio.

Beijo.

Paula Barros disse...

Sabe, é como se sentisse essa sua diversão...é bom ler alguém que escreve bem, criando dessa forma. É prazeroso imaginar que pode lhe deixar contente, satisfeito no ato de escrever.

Fico cheias de perguntas. Se você faz ou fez alguma oficina literária? Se você pesquisa alguns temas, se estuda para introduzir nos textos sempre elementos novos?
Se já posso chamar de romance?

Que deve ler muito, acredito que sim.

Tenho percebido as vozes, e achei no texto anterior um linguajar diferente, uma forma de se expressar diferente.

E também notei os parágrafos menores, embora não liguei que era na fala dela necessariamente.

Parágrafos pequenos, frases pequenas, me lembram uma pessoa que gosto muito de ler. E foi uma sensação maravilhosa quando percebi isso, lia e relia, parava em cada ponto para sentir, me sentir emocionada.

beijo, um sábado ótimo.

Paula Barros disse...

Ah, Dauri, com relação a essa questão de ler partido, hoje pensei em imprimir para ler direito. Até porque tem uns que não consegui ler como gosto e fazer os comentários.

E quanto a ler você e me inspirar, já aconteceu muitas e muitas vezes. Apenas não citei, a forma que escrevo dizem logo que é amor, e ficaria uma situação delicada.

abraço

Jacinta Dantas disse...

Esse cara tem algo que me é familiar, sei lá, algo que se parece comigo. Ficar em silêncio, um minuto que seja, ali, no lugar que continua santo. Gosto dessa atitude. Faz-me lembrar da quietude que me proporciona contemplar, em silêncio, o mar. Tenho feito isso esses dias.
Sigo acompanhando o conto.