21 janeiro 2010

O último porto do rio

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Falar do que leio nas cartas ou de mim, não. Sim, necessitas saber. Tenho hoje uma notícia, retornarei para o Rio de Janeiro. O marido foi designado. Voltaremos. Estes anos aqui me foram bons, levo contudo o desencontro e a obrigação de ir, e o que farei sem as cartas como consolo e ciência, consciência de mim e do seguir vivendo, tirare avanti, é coisa que aprenderei. Um livro se fecha, outro se tem que abrir. Por hora é ser e viver aqui os últimos meses. Mudaremos para uma casa ainda melhor e mais bonita, mas a beleza do lugar não me garantirá um quinhão a mais de felicidade. E para que tenhas confrmação das estranhezas destas linhas que se cruzam na vida, não invento o que digo, nem faço estradas de muitas crendices, mas vejas, ao mesmo tempo em que se tornou certeza a nossa volta para o Rio de Janeiro as cartas pararam de chegar do Porto do Rio. Se bem que exagero, este estado de alma, se vão poucos dias desde a última. Uma delas veio em branco, fiquei só com o cheiro do papel, a textura, a tentativa de descobrir marcas reveladoras. De quê?, sei lá de quê. Pensei, águas passadas, que já não é mais tempo de inventar uma viagem ao Porto do Rio, teria sido fácil e bom ir ao Porto do Rio, mas não, o melhor foi o não ter ido, na verdade o que recebi foram cartas extraviadas, bem que me forço a acreditar nisso.
Abateu-me, de princípio não, com o passar dos dias sim, a notícia da transferência, bem mais do que quando para outras cidades mudamos, nem há como comparar. Lá, naqueles tempos minha vontade era flor que desabrochava para dentro, como um figo e ninguém via, nem eu mesma. Então para cá ou para lá, ficar ou ir, Rio ou Roma não importava. Viemos, hoje no entanto vejo minhas vontades enviezadas mas já as vejo. São flores que desabrocham como rosas, mesmo que desabrochem à noite. O que te falo é um jardim de segredos.
Falo, mas por favor considera o respeito que um segredo merece. Hoje sobretudo te peço, ainda mais necessito, acredita, fui ontem à noitinha à missa na igreja da Boa Morte, fui privilegiando um convite que recebi de missa pela alma do doutor Eustáquio de Monjardim Coutinho. Minhas práticas se dão nesta ou naquela igreja, não pertenço a nenhuma confraria, mas o padre. Digo, o padre. Não sei se minhas vontades andam desabrochando por olhares e transpirações, ou por gestos ou pelo andar, mas sem ter coragem pra dizer, e, garantida pelo teu valor de guardar segredos eu digo, o padre era obsceno. É, obsceno, no sorriso, no jeito de falar, de rezar até. Tentei, a Senhora da Boa Morte é minha prova, mas a obscenidade dele me atravessava a pele, lâmina de navalha enferrujada, mas lâmina. Juro que não sei, eu duvido, serei eu a transpirar o que venho vivendo nas penumbras e nos cantos onde leio e releio as cartas. Mas tomei coragem, e para tirar a prova, acheguei-me a ele e perguntei O senhor anda fervendo a água que toma? antes que ele respondesse já lhe continuei com as exortações Tome cuidado com as febres que andam afetando os moradores da cidade, muitos morrem, o reverendo sabe. Tem o senhor um jeito de febre. Ele apavorou-se e começou a colocar sobre a testa a mão virada, desvirada, na testa, no pescoço, começou a transpirar, logo pediu licença e saiu. Mas ainda assim assustado vi que sua mente dividia-se entre o medo da febre e a obscenidade. Licenzioso prete! Voltei para casa destituída de conclusão, na verdade ainda mais túrbida. O marido me perguntou de que fui tratar com o cura.

5 comentários:

mundo azul disse...

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Leio e sinto o que você escreve... Por vezes, me perco entre seus personagens, mas, me encontro sempre sorrindo com as imagens que o seu talento constrói ao longo do texto.


Beijos de luz e o meu agradecimento pelas palavras tão incentivadoras!


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Maria Helena disse...

Você soube descrever com maestria toda a densidade da desesperança de um sonho ou uma fantasia,sem perder a cadência,a melodia do seu jeito gostoso de escrever.
Coitado do padre...
Abraço

Paula Barros disse...

Dauri, entrei na tua história. Li ontem no trabalho e disse a mim, vou deixar para ler de manhã.

E terminou que de manhã eu mergulhei na história.

beijo

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Já vai longe os dias, mais de um ano, que fico pensando, refletindo, imaginando...cá, no Porto de Cá, no porto que me encontro, que padre é gente.

Parece bobagem, ou uma descoberta tardia, uma descoberta obvia. Mas fico a imaginar um padre assim que nem eu, de carne e osso, de pensamentos e emoções, a passear por um mundo de fantasia, como se sentirá? Com febre talvez. Em ebulição.

Mas eu, quando navego pelo rio, rio acima e rio abaixo, apreciando as profundezas das águas, ou as margens, nas madrugadas ou dia claro, não ouso falar tudo que deságua em mim, nem relatar o que se passa no meu pensamento de águas fluídas.......talvez nem a um padre eu contaria as febres, as obsecenidades, os delírios ....do encontro dos rios com os mares.

Vou navegando, descobrindo mares, adentrando rios, hora a emoção toma o leme e me dirigi, hora a razão toma o comando.....no encontro do rio com o mar, nas porocas de mim, me navegam palavras....

As cartas...,ah, as palavras dizem tanto, fico no Porto de Cá, as esperando....

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Paula Barros disse...

Dauri, voltei...

Alguns blogs que leio, o seu principalmente, deixo a emoção me tomar, e depois a mente continua rebobinando lembranças.

Quando algo no texto me toca, sei que tem um iceberg por detrás.

Lembrei que tenho um tia que casou com um padre, eu tinha 13 ou 14 anos. E veio várias lembranças, e o quanto era intrigante aquela situação, e eu queria saber detalhes de como eles se conheceram.......

E meu comentário terminou sendo também uma reposta a quando querem entender a minha escrita...são esses mergulhos, as falas dos personagens dos outros que falam comigo....

beijo,obrigada!

Jacinta Dantas disse...

Pois é, estou aqui me deliciando com mais um capítulo. Gostoso isso: não posso valorizar a ansiedade e, como num livro, buscar os encontros das personagens lá no final. Isso é bom. Ler um de cada vez, absorvendo a palavra e percebendo os sentimentos que vão envolvendo a história.

Essa mulher é aquela que gosta do branco-branquíssimo e do vermelho-vermelhão no peixe?
Estou adorando e torcendo por ela.

Beijo