11 janeiro 2010

O último porto do rio
23

Seguimos em silêncio e ao que parece todas as palavras se transformam em atenção auditiva já que os olhos nada enxergam além do alcance da lânguida luz da laterna da proa. Ouvimos uns dos outros o ruído próprio da vida, a respiração ofegante, um pigarrear, uma tossida, também o murmúrio das águas, as varas de impulso sem trégua caindo sobre o rio, empurrando-nos para o olho da escuridão. Nada mais além, nem um pio, seja de bicho, de ser de outro mundo ou de outra coisa qualquer. O mundo recolhido de todos os seus sons, preso nas cadeias dos segredos de cada homem que comigo sobe o rio nao impedia, apesar da escuridão e do engendro da tempestade, a execução barulhenta do concerto monótono, cansativo dos pensamentos. Se o silêncio é sinal de que se formam pensamentos, seja por velhos padrões de repetição ou pela ousadia de inventar ilusões e sonhos para o dia seguinte, não sei. O que sei é que o silêncio nesse trecho da viagem não é escolha. Uma força maior nos amarra a ele, e sigo sem procurar assunto, pois qualquer palavra, pressinto, pesará ainda mais no chumbo da escuridão. Tento em exercício de concentração firmar-me na idéia do passo que dei, de que fiz exatamente o que eu precisava fazer, voltar ao porto dos pretos, procurar Maria Júlia. E tudo se coloca assim na noite ainda mais anoitecida pelo silêncio, por um tempo pequeno na verdade, e que se apresenta, contudo, com a duração de um século. Mas o emudecimento do mundo poderoso sucumbe, o universo é menor que o rumor de um minúsculo coração humano. Assim sempre foi, assim haveria de ser, o homem fala, os canoeiros começam a conversar, não o mestre, eu também não. Esta seria a nossa segunda arma na estranha luta, o mutismo. Falávamos muitas coisas um para o outro falando para nossos próprios vales interiores onde o eco da própria voz resvalando em montanhas de granito não nos dava resposta alguma. Assim seguimos por um bom tempo na disputa. Os canoeiros conversam, conversam, cantam suas toadas tristes e nós continuamos calados. Grossos pingos de chuva começam a cair, o mestre corre puxando o encerado sobre a carga. Os canoeiros querem ajudar e ele grita para que continuem levando a barcaça rio acima. Ajudo-o eu. Ele não refuta minha ajuda, mas não me agradece, do mesmo modo é o seu proceder quando lhe entrego as tais cartas no cais do Último Porto do Rio. Ainda estamos longe do ancoradouro de dona Leonora. Lá na escuridão, não muito longe, raios cortam a densidade do céu seguidos de pavorosos estrondos. Os canoeiros em movimentos ritmados e bem sincronizados sobem as laterais das barcaças correndo e lançam a vara no leito do rio como se fossem saltar, ou como se estivessem caçando com lanças longas e perfurantes ardilosas feras aquáticas, impulsionando assim ainda mais rapidamente a embarcação para cima. Nenhum esforço nos levará a tempo ao ancoradouro, a tempestade nos alcançará. O mestre ordena que continuem a empurrar a barcaça para cima, Há ali adiante as ruinas do cais da velha igreja onde poderemos amarrar a barcaça e nos proteger do temporal. Pela sua previsão muita água deveria descer das cabeceiras e era importante amarrrar bem a embarcação pois que a carga, valiosa, não poderia ser perdida nem em sonho, no que concordo plenamente com ele.

10 comentários:

Dauri Batisti disse...

Vai para a Jacinta este capítulo 23 dO último porto do rio.

Obrigado pela amizade e pelo carinho.

http://reflorescer.blogspot.com/

Jacinta Dantas disse...

Estou adorando acompanhar esse conto. Agora, no capítulo 23, uma pausa... ele é dedicado a mim. Que bom!
Mudar o rumo da viagem...fazer o retorno, quando o plano era seguir. Meria Julia continua a esperá-lo?
Melhor aguardar as emoções que estão por vir.

Beijo e muito obrigada pela lembrança.

Maria Helena disse...

Sinto-me cada vez mais cativada pelo conto "O último porto do rio"e leio e releio cada novo capítulo tentando absorver a beleza que você imprime em cada frase:pensando, falando,desejando,agindo,intuindo.Suas construções são belíssimas como:..."a execução barulhenta do concerto monótono,cansativo dos pensamentos." Muito íntimo e lindo!
Abração de Maria Helena

Elcio Tuiribepi disse...

Sua narrativa dispensa comentários Dauri, o seu ritmo nos prende, isso é primordial num conto, ele não cansa e as palavras vão ganhando vida dentro do nosso imaginário...
A Jacinta tem belas gravuras feitas no computador, num estilo todo róprio.
É isso...um bom dia ara você, a gene aguard o próximo...sabe que dá a impressão de que nunca terá fim...e acho que a sua proposta é essa mesmo...rsrs
Parabéns sempre...

Paula Barros disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Paula Barros disse...

"o universo é menor que o rumor de um minúsculo coração humano"

E volto a me repetir, são tantas frases maravilhosas que você constrói, mas sempre tem uma que me chama mais atenção, principalmente quando para mim você diz muito.
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O tema silêncio sempre me instiga. Ele é muito vasto, e tem muitos tipos de silêncio.

"Se o silêncio é sinal de que se formam pensamentos, seja por velhos padrões de repetição ou pela ousadia de inventar ilusões e sonhos para o dia seguinte, não sei."

Alguns silêncios, principalmente o do outro, provocam pensamentos barulhentos, emoções que não gosto.

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O pensamento sempre nos faz lembrar das cargas preciosas, provocando sonhos.

beijo, bom dia!

[Sem Ideias] disse...

Nossa...

tá me conquistando...

obrigada.

http://presentesespeciais-presentes.blogspot.com/

Oliver Pickwick disse...

Estive fora por uns dias, atualizei a leitura, a qual, torna-se melhor e mais atraente a cada etapa. É uma narrativa preciosa, e ainda que diferente do gênero thriller de suspense, cria imensa expectativa. Destaco, ainda, as metáforas procedentes, naturais e criativas. Você nasceu para a ficção.
Um abraço!

Vivian disse...

...bom dia moço dos contos
de encantos.


gosto muito quando vejo seus
'pitakos' lá em casa.

obrigada, querido lindo!

bj

Sueli Maia (Mai) disse...

Esse capítulo é um quase endoidecer. Um silêncio que aumenta ao ruído do absurdo ruminante das idéias que se agigantam até quanse o grito.

E fiquei pensando nas varas de impulso...
beijo