09 janeiro 2010

O último porto do rio
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Quando surge na escuridão a pequena luz dançante, como se a ideia escondida nos escuros da mente surgisse de parto repentino pelo estímulo daquela pequena luz esbranquiçada da lanterna da barcaça tardia e solitária a subir o rio, vem a decisão, brusca e tardia decisão, de tomar aquela barcaça e retornar. Falo ao mestre e peço que ele diga aos barqueiros que subirei com eles. Mas o mestre diz, Vocês vão enfrentar dificuldades. Eu preciso voltar, digo, esta é a última chance. Se o senhor João Francisco pensa assim, assim deve ser feito, diz o mestre Gumercindo e me dá um pequeno toque com a mão sobre o ombro, gesto que acolho como de aprovação e estímulo. A percepção que ele tinha dos fatos e das coisas do coração das pessoas ainda era maior do que a candura das suas palavras. Sua palavra era de floração simples, mas o floreio simples e bonito vinha de arvoredo cuja raiz é funda. Comunico a volta sem maiores explicações à senhora patroa, nem me dou tempo de prestar-lhe atenção na reação, no espanto, na decepção, na raiva ou em qualquer sentimento do tipo que com certeza atravessaria seu coração, retomo minha pequena bagagem e me preparo para saltar sobre a outra barcaça. A barcaça se vai carregada de muitas caixas, mas nenhum passageiro. Salto e cumprimento os canoeiros e o mestre. Como sou funcionário de relativa importância na companhia de navegação Santa Maria & Vitória tenho trânsito livre na companhia e além dela nas outras também, se necessário, dada a camaradagem que se cultiva entre os trabalhadores do rio. Quando já na barcaça, e aliviado pela decisão tomada, me deparo com o inesperado. No calor da decisao não percebi que a embarcação para onde eu saltara era bem conhecida . Vejo-me diante do canoeiro das cartas. Entreolhamo-nos. A surpresa já se desvanecera nele, em mim ainda não. Desejo-lhe boa noite com a devida deferência que os mestres merecem, ao que ele me responde com respeito, mas não com simpatia. Enfrentamo-nos com respeito, ou melhor, fizemos do respeito nesse primeiro momento o nosso instrumento de luta. O mestre Gumercindo, já se despedindo e invocando para nós as bênçãos do Senhor Bom Jesus, alerta-nos sobre as possíveis dificuldades, tempestade, muita chuva, e incentiva os canoeiros a trabalharem muito, sem folga, até o primeiro ancoradouro seguro, na parada de dona Leonora, onde deveríamos pernoitar. Logo nos distanciamos das barcaças que desciam e entramos escuridão adentro. A pequena lanterna na proa parece produzir uma luz extraordinária, maior, reluzente de poder e ilusão, impotente desejo de vingança na humilhação. O poder da escuridão engana a lanterna em sua insensata tentativa de clarear o mundo. O silêncio rompe-se sem alvoroço pelos sons, o rio bondoso em seus suspiros, os batráquios em suas canções de desespero, ou de festa, pois que tudo há de depender do ouvido neste mundo das palavras, seja de gente seja de bicho, e o sons de alguns desassossegados pássaros como corujas ou mães-da-lua que parecem ter vindo de longe, pesados do fardo de suas lamentações, deixando-as cair, uma aqui outra ali, laços de adorno sobre a noite.

10 comentários:

Dauri Batisti disse...

Dedico este trecho do Último porto do rio ao Elcio Tuiribepi do http://verseiro.blogspot.com/

Paula Barros disse...

Dauri,

já apaguei uns quatro comentários rsrs, desde o que comentar num texto com tanto a se comentar, e termino resumindo ou falar de Elcio, interligando com o seu texto, e se deixasse viraria um comentário enorme.

Eu volto.

beijo

Sueli Maia (Mai) disse...

A autoridade de João Francisco é percebida. A impressão que dá é que há uma carga (ou compartimento) onde guardada entre as coisas há poesia. Olha esse recorte: "Sua palavra era de floração simples, mas o floreio simples e bonito vinha de arvoredo cuja raiz é funda"

Conheci um homem assim, de poucas palavras e imensa humildade (por incrível que pareça de pés enormes - Seu Tião) Ele esperava todos falarem e ao final com tres ou quatro palavras resumia tudo.

Eu preciso te dizer que dentro das possibilidades deste universo midiático (do modo como ai está) exercícios como este de escrita, interação, integração e aprendizagem de , tem se mostrado mais rico do que eu supunha.
Você faz parte disto.
Um beijo e obrigada

Maria Helena disse...

É muito interessante o modo como João Francisco administra os seus sentimentos;às vezes é sensível ao que os outros sentem e às vezes prefere não perceber,fugindo.Mudar de barcaça foi a solução que ele encontrou.Queria poder fazer isso pelo menos uma vez,mas sem encontrar com o barqueiro das cartas.
Gostei da estratégia ...
Abraço de Maria Helena

Paula Barros disse...

Dauri será que posso interagir com o comentário de Maria Helena? Maria Helena me permite?

Como é interessante o olhar de cada leitor. Também acho João Francisco muito sensível. Porém muito centrado e um homem de decisões fortes.

E no meu ponto de vista, na minha leitura e emoção, vibrei por ele ter mudado de barcaça. Ele me pareceu decidido, sabe o que quer, pode sim ter tido receio de algo (baseado até agora, porque o desenrolar não sabemos) mas foi precavido.

E muitos não tomariam tal atitude por causa da Senhora, e ele tomou. E como disse, eu vibrei.

Mas essa história é cheia de mistérios, com tramas que surpreendem o leitor, instiga, atiça a curiosidade.

abraços aos dois.

Elcio Tuiribepi disse...

Olá Dauri, primeiro quero te agradecer pela dedicatória, pelo carinho...valeuuu...
A primeira frase de seu conto para mim, soou como se fosse o início de um lampejo para se escrever um poema, uma poesia, um conto ou qualquer outro escrito que porventura já tivesse sido iniciado, mas que guardado dentro de uma gaveta ou dentro da gente mesmo apenas esperase por nossa decisão.
Aproveitei e terminei um que havia começado em dezembro de 2008...
"A percepção que ele tinha dos fatos e das coisas do coração das pessoas ainda era maior do que a candura das suas palavras. Sua palavra era de floração simples, mas o floreio simples e bonito vinha de arvoredo cuja raiz é funda"...
Achei isso muito bonito...lembrei de meu pai...homem de poucas palavras, mas de sonoras atitudes...
Falei demais já...rsrs
Um abraço na alma...bom domingo

Maria Helena disse...

Olá!Paula Barros,boa tarde e muito prazer!Uma das coisas boas da literatura é isso:cada leitor sente,observa e perscruta os personagens de acordo consigo mesmo.Gostei muito do que você escreveu.Parabéns.
Bjs de Maria Helena

Manuel Veiga disse...

gostei do texto. pleno de colorido.
excelente domínio da arte de (bem) escrever.

grato pela visita!

abraços

Me permita disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Me permita disse...

Olá, amigo! Belo blog! To voltando, aos poucos! rs Te desejo que em 2010 teus sonhos se transformem em plena realização! Abraço!