05 janeiro 2010

O último porto do rio

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A barcaça Bela Vitória na qual descemos, neste dia reservada para conduzir a senhora esposa do dono da companhia, com suas malas e caixas, leva também umas boas sacas de café. O patrão enricado pelo comércio ficará decerto ainda mais. A senhora passará uns dias na sua linda casa no Porto do Mar. As pessoas não me entendem, mas gosto do mar, das praias, diz a senhora, O senhor já tomou banho de mar senhor João francisco? Certo é que animados pelo vinho nos permitimos avançar em assuntos menos formais. Sua beleza, seu sorriso, suas mãos, sua pele rosada pelo sol da viagem a despeito da sombrinha, parecem-me ainda mais admiráveis. Mais próximos nos temos colocado com o seguir da viagem um do outro, ao alcance de um braço estendido. Num momento de riso fácil por algum motivo qualquer a senhora toca-me com seu sapato a perna direita e desce ao pé, o pé preto. Assusto-me sem me assustar com suas intenções, que à vista disso agora me ficavam claras. O pé preto estava bem guardado, bem encoberto pela meia e pelo sapato. Assusto-me todavia pela sua afoiteza, pois que esperava que sua condição lhe intimidasse, abreviasse ou extinguisse esses escusos interesses. Mantenho o pé no mesmo lugar, esse bendito. Ela então recolhe sua perna com recatado disfarce e sorri, Pode me chamar pelo nome, Hannah, diz suavemente. Preciso tomar cuidado, isso sim, Senhora Hannah!, digo para mim mesmo, os canoeiros não são bobos, bem entendem das malícias das mulheres, muito mais do que eu. Isso pode terminar mal, para mim, diga-se, com certeza. O tempo vai, o sol me esquenta a cabeça, tiro o chapeu e umideço os cabelos com a água do rio, lavo também o rosto.

A noite já me caíra por dentro em lindas tentações de amor que se alojaram no corpo pelo desvão que o vinho abriu, cai também agora a escuridão sobre o rio, bem mais cedo do que eu, em descompasso com o dia, poderia prever. A noite fechada de muitas e densas nuvens esconde o céu maravilhosamente estrelado que, de costume, se avista ao navegar o Santa Maria. A densidade da escuridão se soma ao muro de escuridões que se levantam pelos frondosas árvores nas margens. Não me apoquento, ao contrário, sinto um destravar das tensões, um alívio nas faces de onde um anjo da noite, benigno ou malfazejo, retirou-me uma pesada e pegajosa máscara. O mestre Gumercindo tem inquestionável ascendência sobre os outros e todos lhe prestam a devida reverência por meio da obediência. Precisamos retardar um pouco a descida, grita para todos; o porquê todos sabem, chegar ao estuário com a vazante. Seus cálculos, por qual ciência não se sabe, são sempre exatos. As lanternas balançam na proa de cada embarcação e, numa espécie de reza, um canoeiro se põe a tocar o seu buzo. Uma dor de saudade, plangente, sobe do rio por entre as árvores para o céu insensível. De cada barcaça surge uma resposta, cada buzo expressando uma dor, um cansaço, um amor, uma saudade, e as melodias se distinguem umas das outras em beleza, tanto pelo espírito de quem sopra, quanto pelo chifre do qual fora feito o instrumento. Um passageiro numa outra barcaça, comerciante de Hamburgo, descendo para outros bons negócios também no Porto do Mar, grita uns versos de um poeta alemão e depois conclui, num português marcado por fortes sons guturais, com um conselho do mesmo poeta, "Deveríamos, todos os dias, ouvir uma pequena canção, ler um bom poema, ver uma boa pintura e, se possível, dizer umas poucas, mas razoáveis palavras". E então um canoeiro acrescenta E beber um bom trago de vinho e ir bater à janela de uma bela morena. Todos riem. O alemão cerimoniosamente toma a concertina sobre as pernas, sentado que está sobre sacas de café, e a música impõe-se, impõe-se impiedosa sobre todos, rompendo crostas de feridas e lancinando a dor de cada um. Mais do que qualquer quaresma ou penitência este momento vai compungindo, mas sem promessa de recompensa, a alma do cristão que em seu destino segue o rio.

4 comentários:

Elcio Tuiribepi disse...

Olá Dauri, embarquei neste...e como folha, lembrei de um poeminha que faço questão de colocar aqui, pois o suposto fim me pareceu-me ser a dor de uma saudade sem solução...bom...sei lá...rsrs
Deixa eu ir...como folha...um abraço na alma...

EU, FOLHA

ÀS VEZES QUERO SER FOLHA

PRA SER LEVADO PELO VENTO

SEM DESTINO, COLHENDO PAISAGENS

NUM BALANÇO SUAVE E SERENO

ATÉ POUSAR NUM RIO

E SEGUIR SEM PRESSA

AO ENCONTRO DO MAR

Paula Barros disse...

Dauri,

Estou pasma! A história cada vez cresce mais em qualidade, em novidades, em mistério, em beleza.

E João Francisco tomou banho de mar ou não? rsrs E já fico a pensar que até que seja dito, ou não, eu vou ficar no suspense.

Gostei dessas palavras concertina, buzo, o som do chifre, e tantos outros momentos que me prendem, e me leva a ficar mais e mais fascinada com a história. E com a sua forma de escrever.

beijo

Maria Helena disse...

Li ontem e reli agora.Estou amando tudo:modo como liga os capítulos,a mistura da ficção com o real,como surgem os novos elementos e personagens a leveza da Hannah ao se insinuar a João Francisco.Seu conto é um conjunto de narrações e sentimentos belíssimos .O leitor vê,sente e percebe até sons e aromas.
Estou gostando da Hannah.
Abraço de Maria Helena

Sueli Maia (Mai) disse...

De novo eu estou rindo, Dauri.
Você tem sido mestre em me retirar sorrisos. Agora ri da 'afoiteza' e do 'não me apoquento'. E é este linguajar que instiga a minha teimosia. Tá bem, eu sei que em co-autoria, o leitor escreve as suas experiências e também já te falei uma vez que o inusitado prá mim nestes teus contos é que são episódios isolados mas que se integram perfeitamente como em nossas histórias, né? O que acho legal é a maneira como você trouxe o simples o rural e o urbano e nossas estranhesas, com a ondulação de um navegar, mesmo.

É bom ler um livro assim, construido no devir. Uma novela sem dramas onde as imagens estão em nossas telas. Não é elogio é opinião de leitor, sabe? Contos como este teu, é raro encontrar na blogosfera.
(Danadinha essa Hannah, hein?