O último porto do rio
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Passo por letras alheias procurando, procurando, tu sabes, basta ver. Quando eu me for do Porto do Mar, o que não vai demorar, já terei o que não tive nem no Rio de Janeiro nem em Roma, soltei, o que se solta voa, e dessas coisas em voo, das suas penas caídas, palavras são aves, mesmo que aves d'argento, il silenzio è..., tanto quanto são variadas as pessoas assim as aves que lhe saem, fiz o meu nome, tive, assinei-me infeliz. Não no futuro no entanto, poderei nao ser, quem sabe serei outra pessoa. Para um infeliz ser feliz é preciso que ele se faça outra pessoa e isso eu ja não sei se consigo. Ou, por outra mão, a felicidade de um infeliz se fará pelo costume, sentir um cheiro por um tempo, virar hábito e não sentir mais, mesmo que o cheiro seja bem ruim. Mas, levarei comigo a possibilidade de me caber em minhas medidas, iludo-me, de um modo ou de outro, não me entendes bem, eu sei, mas sim, o que me mata me embalsama, deixa prá lá. Este teu olhar, este teu olhar me recordou neste momento minha mãe que falava assim, exatamente, tu não sabes ou sabes, falas pelo olhar, pelo menear da cabeça, no franzir dos olhos, no recolhimento ou na expansão de uma luz que brilha clamando o que não se sabe o quê para além do fundo dos olhos. Tu és morena, bem morena, ela branca, tu és mais corpulenta ela magra, magra, tu iletrada ela culta, mas o olhar... parecido. Falas tu poucas palavras, acredito não falas mais por concentrar-te nas tuas artes florais, mas ela, ela queria e não conseguia. Lembro quando tudo aconteceu.
Na verdade as cartas deste tal João Francisco me fazem falar em mim o que não podia ser escrito, o que se escreve marca, letras de ferro e fogo no couro, retomo, há uma mentira e uma verdade nisso tudo, mais, muito mais calo do que canto, esta música que ouves é o desafino das minhas horas, os meus anos ja se passaram. Peço-te hoje uma encomenda diferente, poderias confeccionar flores miudinhas, bem, bem miúdas, amarelinhas como calêndulas, pensamentos bem arranjadinhos, o que se carrega para os afazeres diários, a vida se compondo na repetição, quero oferecer à senhora tedesca que está montando casa ali defronte ao cais dos Jesuítas, perto da minha. Sei, ela as jogará fora, mas o que faço é apenas um pretexto de manifestar hospitalidade para aquela. Além do mais flores miudinhas são bonitas quando se juntam em ramalhete, vou gostar do buquê em minhas mãos andando pelas ruas, descendo a escadaria da Igreja de São Gonçalo, isto me será aprazível. Estranhas o termo, mas é isto, falei demais em felicidade, mais fácil é viver pequenos prazeres no seguir ordinario dos dias, e nisso não há novidade, assim, ao modo deste agrado, o prazer de estar aqui agora, presenciando o virar das cores, arames e tecidos em teus dedos demiurgos. Ah, me consolo. Mas.
Conto-te. Almoçávamos. O papai à cabeceira da mesa e todos bem comportados, cada um em seu devido lugar. Ela andava sonolenta, distraída, falava umas coisas interessantes, que eu não entendia, e meu pai, solene e austero sempre, em seus controles derrotado naquele dia, manifestava grande irritação com o que ela falava. Tu em tuas flores, me escuta, vais a igreja? Ah, sim, pertences a Confraria do Rosário, pois bem, entendes das histórias sagradas. Sabes bem que o pai de João Batista, emudeceu. As circunstâncias podem tirar a voz de um, de qualquer um, de muitos. Aconteceu, in quell'ora e ela nunca mais falou.