28 dezembro 2009

O último porto do rio

15

A senhora esposa do dono da companhia de navegação fluvial em oposição ao que se passa comigo parece ainda mais feliz a cada curva do rio. Se bem que eu nem diria que a cada curva do rio minha infelicidade aumente. Feliz e infeliz não são parâmetros com os quais no momento faço cálculos em meus dias. Todavia, não posso negar uma dor. A descida agora sem nenhum propósito se vai constituindo como uma tentação de não voltar mais, de me arriscar em novas empreitadas, de fazer, refazer a vida no porto do mar. Tentação talvez não seja a palavra; quem sabe desejo, aspiração, subterfúgio, refúgio, salvação. No tempo de descer um rio sobe-se e afunda-se por muitos pensamentos, alguns ficariam melhor se não viessem à tona, mas vêm: recordo as cartas que escrevo, o destinatário desconhecido, o portador-barqueiro de cara não amigável e sinto certo desconforto. O que já disse de mim mesmo nessas cartas, verdades e invenções, fatos e fantasias me introduzem numa luz de ver, e vejo, a ausência de solidez, a vulnerabilidade, a fumaça da vida que vou queimando em fogo miúdo. Balanço a cabeça tentando negar o que penso, tiro e ponho o chapeu, olho para o sol, procuro o grande monte na paisagem, acerto a meia na perna do pé preto. Desenvolví uma habilidade tão grande de prestar atenção nos outros, nos que me mandam e nos que me obedecem, que transito facilmente entre os próprios pensamentos e os assuntos que se vão desenvolvendo ao meu redor. A senhora patroa não imagina, nem os canoeiros, que além do colóquio que se dá na barcaça há outro em que falo de Maria Júlia, em que me lamento do fracasso do plano de irmos juntos ao Porto do Mar.

10 comentários:

Sueli Maia (Mai) disse...

Falo puramente como leitora porque eu não sei nada, nada, só sei, maumente ler mas Ah, Dauri, que coisa boa é ler algo assim, escorregando...
É inevitável fazer um paralelo dessa tua narrativa às vozes que se mesclam na obra Roseana.
Há a fala de um homem que tem um vocabulário mais caboclo do interior (o anterior) e noutro instante há uma fala mais rebuscada como agora.

Isto prá mim é instigante. Você embaraça o tempo e embaralha as vozes. É genial isso.
Então há momentos em que penso é a voz do personagem falando e no momento seguinte eu digo é a voz do narrador.
e há metáforas que ando colecionando, e há realidades absolutamente urbanas e próximas de nós embora eu sinta o ultimo porto do rio como um lugar looooooooonge...
recortei como isso aqui:
"...No tempo de descer um rio sobe-se e afunda-se por águas de muitos pensamentos, alguns ficariam melhor se não viessem à tona..."
Isso é real e contemporâneo.
Mas eu não sei é nada... só estou falando como leitora mesmo.
beijo e muita paz prá ti.
obrigada pelo carinho que sempre reservas em tuas palavras.
O improvável acontece quando as palavras se encontram e se reconhecem.
obrigada mesmo, amigo.

Maria Helena disse...

Ouvi em um filme um cantor francês sussurrando:"Todo mundo é fiel até encontrar coisa melhor."Será o caso de João Francisco? Ele pensa tanto em si mesmo que se esquece de agir.Gosto da Maria Júlia.
Muito bom mesmo:a história,o modo como você usa as palavras,sua introspecção.Estou aguardando...
Abraço
Maria Helena

Dauri Batisti disse...

Querida Mai,

obrigado pela leitura carinhosa do meu conto O último porto do rio. Vou tentar dizer-explicar uns pontos.

1. sua leitura confirma que o leitor escreve enquanto lê. Parte do que você diz decorre do ponto de vista que você escolheu-intuiu para ler. Desde o início senti pelos seus comentários que você imaginava um personagem matuto. Mas ele não é um matuto. Se voce voltar aos primeiros capítulos verá que o seu modo de falar é o mesmo. Ele vive no interior, lida com tropeiros e barqueiros, mas deles se distingue.

2. A história se passa no século xix quando a sociedade era predominantemente rural, mas a história quer ser contemporânea sim, você está certa.

3. É relato ficcional em que o que importa mais é o cenário e o mundo interior dos personagens. Falando do passado escrevo para o presente. SEria impossível - para mim ser de outro jeito pois que não faço pequisas de época para escrever.

4. se você prestar agora atenção verá que não há influência Roseana. Em nenhum momento pensei uma história que retratasse os matutos e interioranos. Antes, a prposta é percorrer interiores da alma humana, mesmo que me falte competência para isso.

5. Inspiro-me numa cidade do Espírito Santo que foi um importante porto fluvial. Mas só me inspiro.

6. depois falo mais...

Um beijo.
Obrigado mesmo pela atenção que você dá aos meus escritos.

Dauri

Paula Barros disse...

Para João Francisco, pelo que percebo, ou descendo ou subindo o rio, ou no rio ou em terra firme, ele pensa muito. E é uma condução fantástica que você dá a esses pensamentos.

E você,escritor, faz os personagens terem vida e pulsação, faz o cenário e as cenas nítidas, que eu consigo interagir com os personagens, ou ser eles, ou querer mudar o rumo deles.

Hora os pensamentos descem numa fluidez que me arrasta, hora me afoga, hora se mistura com a minha emoção de leitora.

E quando subo para respirar nesse rio de emoção, sempre sou fisgada por um pensamento.

"fatos e fantasias me introduzem numa luz de ver, e vejo, a ausência de solidez, a vulnerabilidade, a fumaça da vida que vou queimando em fogo miúdo."


abraço

Dauri Batisti disse...

Exatamente isso Paula. Ele pensa, como todos nós pensamos muito. Viver e pensar se misturam. Viver, o humano viver, é pensar. Não creio que alguém pense menos, pode até pensar mais raso, mas pensamos todos, muito. Legal sua obeservação. Obrigado por seguir na leitura dO último porto do rio.

Beijo.

lula eurico disse...

Puxa! Tenho perdido o bonde... mas tou na luta, tou na travessia do rio. Breve volto com mais atenção a Essa Palavra.
Agora só vim te dar um abraço, mano. Um abraço que se quer repetir por muitos anos ainda...

Um abraço fraterno.

Vivi disse...

Dauri,
só li o capítulo 15, até agora. Mas estou encantada, acho que essa é a palavra. Me sinto nesse barco com o personagem, descendo o rio e pensando no que fica, no porto que está por vir, pensando...
Vou ler mais!
Um beijo!

Vivian disse...

...Daurí meu querido lindo,


...hoje não venho aqui
para comentar seu post,
e sim para virtualmente
lhe deixar o meu carinho
e o meu abraço desejando-lhe
TUDO e NADA.

TUDO de bom,
e NADA de ruim neste 2010
que desponta com ares
de amor e paz!

e assim será!!!

um beijo!

Anônimo disse...

Dauri,

Feliz 2010, meu caro.
Estarei na companhia de seus versos e contos.

Um abraço!

Paula Barros disse...

Felicidades e saúde na reta final do ano, na continuação do próximo. E que os problemas sejam resolvidos com serenidade e discernimento.

É bom ler seus escritos.

Faz um ano hoje que lendo seu blog no trabalho, me emocionei tanto que quase não conseguia atender o telefone. Então vi que aqui era um lugar que eu podia mergulhar, que sempre tinha um rio de emoção a fluir.

beijo