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Acordar, sinto saudades dos dias em que acordar era o natural abrir dos olhos e da alma para o milagre de viver. Agora acordar é dar-se com um sufoco no peito, uma pressa e um pulo, mesmo aos domingos e dias santos. Acordar com a alma deslocada, um vago no lugar deixado, uma dor inexplicável. Em tal situação não há outro jeito senão esperar que o banho frio, o café, o abrir da janela, a escuta de barulhos comuns do quintal, da mata ao fundo, convençam a alma a reocupar o correto espaço no peito. Acordo, mas me engano, o dia ainda não amanheceu. Estou estirado sobre a cama, vestido com as roupas, o peso e a poeira do dia anterior. O lampião aceso ilumina o buraco do deslocamento da alma. Que sofrimento é este, deslocamento de alma, dor que dói mais que luxação de ombro, de dedo polegar. Com um pé forço o sapato do outro e arranco-o. Repito o processo e o outro cai ao chão. Usando o mesmo procedimento retiro as meias. Esqueço-me do pé direito, negro, diferente de todo o resto do corpo branco e vejo-o. O lampião aceso ilumina o pé direito negro. Apavoro-me, tento escondê-lo, não sei o que fazer, mas sei, logo me enfio debaixo do lençol. Esquento-me de umas brasas e ardências de calor, os minutos viram o inferno e entornam seu fogo sobre meu corpo, dou um salto, retiro toda a roupa, exponho-me à própria nudez, volto para a cama e cubro somente o pé direito.