31 maio 2009

encerrando a série

IX

(dando um tempo nas possíveis explicações,
voando no chão, um cavalo)

Os poetas andam reservando seus poemas.
Fazem bem se desejam
economizar o ar que respiram. Faltará.
As formigas tem razão. Mas...

Ele, tu,
(repare que o eu e o tu tem u)

o ele de mim, eu, o não-poeta
se hiperventila e tem delírios. Vive
com o que se fala, estende-se pelo capim,
criança, e bebe, e se engasga, e tosse, e bebe

e escarra as estrelas

que caem de certas palavras,
arde, amargas todas, doces depois,
doce que passa e fica ruim
como adoçante na boca que se quer cuspir,

mas tem que aguentar

até o filme acabar. Acabou?
Não me fez, não me faz,
não me fará: repare a letra esse
que traço, abre-se demais, não é assim

que escreve um poeta.

28 maio 2009

(tentativas de explicação: ser um não-poeta, afirmar a poesia)

VIII

Escrever poemas
não me faz poeta, mas me faz
percorrer o pequeno caminho
entre a sala e a cozinha por onde atravesso
vales, planícies e alguns precipícios.
Me dou de cara com o vento e me vejo arraia
numa fieira de palavras que escorregou
das mãos de um menino.

VII

Escrever poemas
não me faz poeta, mas me faz
buscar a dose parca de remédio que me alivia
da loucura que me roubaram.
Se derramam enquanto isto as canetas
daqueles depósitos de pensamentos.
Desdigo o bem-te-vi antes que ele
me tome a próxima dose.

VI

Escrever poemas
não me faz poeta, mas me faz
olhar no sentido contrário ao por-do-sol
para ver na luz rebatida nas coisas
os movimentos antecipatórios
de quem se prepara pra nascer.
A cruz quebrada não deixa
de marcar a saudade.

V

Escrever poemas
não me faz poeta, mas me faz
fechar os olhos e tocar a campainha
de uma biblioteca,
uma casa, a minha,
onde encontro o abandono.
Nele me deito e leio
todos os livros do teto.

27 maio 2009

(tentativas de explicar o que é ser um não-poeta)

IV

Escrever poemas
poeta que não sou
é embarcar num trem num caminho gelado
e esperar com um livro aberto nas mãos
o sol que se esconde no poema japonês
e se levantará ao lado do ideograma
traduzido como coração. As estações
do amor são distantes, mas são várias.

III

Escrever poemas
poeta que não sou
é arremessar uma pedra do alto do morro
e se desprender dela, não se importar
com sua queda e as ondas do mar embaixo,
mas ir com o olhar atrás do risco do barco
e supor o que Deus canta com tintas azuis
nessa linha incerta de viver.

26 maio 2009

(tentativas de explicar o que é ser um não-poeta)

II

Escrever poemas
poeta que não sou
é tomar um ônibus amarelo
em dia nublado
e procurar entre os passageiros
uma flor cujo nome é bom dia
e ter a aura fotografada
por seu leve perfume.
I

Escrever poemas
poeta que não sou
é uma tentativa de criar intervalos
na ininterrupção das horas.
Voam das gaiolas estranhos pássaros
que semeiam milharais, arrozais
em terrenos onde estou fincado
como espantalho.

24 maio 2009

(quinto elemento: TnUaDdOa...)

Houve um tempo
nos dias do predomínio do TnUaDdOa
em que minhocas de veludo excretavam as galáxias.
Na medida que soltavam suas dejeções ficavam invisíveis,
e sumiam. Restaram seus buracos em nossos corações.
A mãe na caverna acordou assustada, deu um pulo, verificou
cada um dos filhos adormecidos, e pos mais lenha no fogo.
Como não tivesse mais sono, pos-se a desenhar nas paredes.

23 maio 2009

(elementos: água...)

Houve um tempo
nos dias do predomínio da água
em que o canoeiro largava o remo e, descendo, levado,
olhava o trem que ia, ou que vinha, em seus trilhos.
Certa vez o canoeiro viu do outro lado do trem,
no pasto, perto da cerca, um olhar revelador do mundo,
um olhar de leite, uma vaca, sozinha.
Ela olhava. Há sempre um adeus pra se dizer.

22 maio 2009

(elementos: terra...)

Houve um tempo
nos dias do predomínio da terra
em que os ventos frios que sopram nas planícies
mudaram de rumo e envolveram um coração com vagalumes.
Muitos vagalumes. Os insetos, que ainda não tinham lumes,
passaram a ter, ali, enquanto dançavam ao pulsar do sangue.
Há desde então as mais variadas questões.
De onde veio a luz? Era um coração de dor ou de alegria?
(elementos: fogo...)

Houve um tempo
nos dias do predomínio do fogo
em que os patos selvagens migravam para as estrelas
onde faziam seus ninhos. Mas o menino sumiu,
e não há mais quem faça o plano de voo das aves.
Muitas estrelas já se apagaram,
devido a carência de ninhos.
Há que se traçar novos rumos. Onde está o menino?

21 maio 2009

(elementos: ar...)

Houve um tempo
nos dias do predomínio do ar
em que os cavalos guardaram as asas.
Vejo em seus olhos,
eles sabem onde elas estão,
mas simplesmente
não querem voar.
Gostam da música que suas patas fazem no chão.

19 maio 2009

(eis o nono capítulo - últimos fragmentos - do que estou chamando de
evangelho apócrifo de Cafarnaum. Mais adiante voltarei a publicar
aqui novos capítulos. Obrigado. Publicarei agora uma outra série.)

9
1Anuncio-vos o anteontem, o dia
que passou. Para o Pai nada passa,
todavia. 2Ainda é tempo. Edificai
sobre um coração puro o vosso destino.
3Eis que vos faço próximos do Reino,
esta fonte de ser feliz.

4O eco já não vos importa.
5O que vos garante a vida
é o grito que agora vos purifica.
6O limiar do fogo pode ser o sopro
do espírito ou a quentura infernal
da perturbação que vos oprime.

7Então ele se dirigiu a mim e disse,
volta à poesia dos campos e
à inocência da margens viçosas de um rio.
8Manifesta-te a ti mesmo e reconheçe
a serpente que se insidia em teus pomares,
se és sincero no desejo da felicidade.

9Mestre, eu disse, sois áspero com as palavras,
quem poderá ouvi-las? 10Ele virou-se,
e o olhar era o de sua mãe,
tomou um cálice de água e o deu a mim e disse,
doce é a uva, fruto da bondade do Pai. Tomai,
é vinho. 11Todas as existências estão unidas.

18 maio 2009

(eis o oitavo capítulo do que estou chamando
de evangelho apócrifo de Cafarnaum)

8
1Pelas coisas divididas
o fio da espada desenha
os episódios e as sombras da vida
dos homens. 2Eis que se esgotam
em disputas pelos campos
que jamais verão em flores.
3O que há? O que é a vida?

4Nada mais do que um lírio
que ao amanhecer se embeleza
de brancuras e logo declina
em silêncios no brejo da noite.
5Uma vila entre as montanhas frias,
onde acontece um casamento,
e o vinho veio a faltar.

6Amai-vos. As plantações de sonhos
se expandem para além das colheitas
que os vossos anos vos permitem fazer.
7O Pai vos entregará outras frutas
e vinhos, dos amores que lançastes,
e que cresceram em novo jardim.

8Eu vos teria dito
se não fosse assim.
9Uma linha de tudo sobrevoa
os campos das promessas.
10O todo insemina tudo
às escondidas da retina.

17 maio 2009

7
1A beleza na noite fria veio
por um risco de fogo no céu.
2Ele teve nome humano.
3É preciso saber esse nome
sem ter de ninguém a pronúncia,
senão de si mesmo. 4Cantam-no
os trigais dobrados pelos ventos
que também sopram a luz por dentro.

5Até os animais selvagens, as aves,
os ossos, o sangue e as rochas
convidam à felicidade, ele disse,
mas estais embriagados e não percebeis.
6A mansidão dos lagos e a coragem
dos mares formam as palavras
que bebereis da minha boca.

7Quem tem ouvidos
recolha o som das pétalas
da rosa amarela,
e separe os espinhos
para o fogo do incenso.
8Insensatos, há poesia espalhada
por todos os lugares. Por que estais
parados ao lado de cisternas secas?

16 maio 2009

6
1A mulher se aproximou,
uma sombra torta. O sol a pino
não lhe correspondia por dentro
em candeeiros e luminares.
2Os olhos caiam em poentes
de tristeza. 3Ele a considerou

com uma palavra, nem doce,
nem amarga, mas reta, impar.
4Tu perdes teu sangue
em passos oblíquos. 5De onde tiro
os meus pés porás os teus, enquanto
ainda há brasas, e serás feliz. 6Creia,
és passante. Vieste e retornarás.

15 maio 2009

5
1Quando cantou o rouxinol,
o mesmo canto que se ouviu no Jordão
naquele dia, ele me mandou
acender luzes no quarto do silêncio,
ainda que no meio da tarde,
e ali ficar. 2Havia uma amargura
no ar dos meus respiros
que fazia arder meus pensamentos.

3Balbuciei palavras à luz da lâmpada
e respirei pensamentos de pedras,
montanhas, vales e estrelas.
4Entoei, sem recordar muito bem,
os misteriosos cantos dos Essênios.
5As palavras que pronunciei
repetidas vezes foram:
bebi nas fontes borbulhantes.

6Mais tarde ele se pôs ao meu lado
no recinto do silêncio
e disse: 7eu alastro o fogo
para que ele se exale em incensos
em muitos corações. 8Tenho ânsias
de caminhos e de encontros.
9Vens comigo?

13 maio 2009

4
1Por causa da tristeza deixei de ver
o riacho, deixei de me refazer
na sua forte ventania saciadora.
2O shofar será tocado, ouça.
3Há um buraco bem no meio do corpo
de cada peregrino, acima do umbigo.
3Medidas com o número fi
encontram ali o desaguadoro
do absolutamente maravilhoso.

4Quando me aproximo dele,
não sei dizer o que o coração me traz,
se é sangue ou se são sílabas.
5Há um gosto férreo. Ele fala
e sinto na minha boca o que ele fala.
6Uma palavra completa escorrega
na saliva. E outra, e outra. Vou
engolindo tudo. 7É dele
o pensamento: o amor
tem que descer para além do fundo
do estômago.

8Na encruzilhada entre o ceu e o mar,
no mel ou na pedra que me oferecem,
tenho dúvidas onde vou encontrar
o que ele chama de Reino. 9Entre as casas,
as de dentro e as de fora, não sei ainda
aonde ele mora. 10Há uma festa lá,
por isso ando calado, pois que daqui
desejo ouvir a música que se toca lá.
O vinho é o melhor, já me falaram.

12 maio 2009

3
1Nao se pode esquecer
que as ardências se alastram
pelos prados. 2Brotam pedras
do chão tingidas de vermelho.
3Sofrem os que respigam
em pequenas vasilhas a vida de um dia,
e os que fazem caminho no próprio suor.
4Os salteadores aproveitam-se
da secura dos descampados.

5Não se pode rachar uma madeira
sem que a vida dele seja atingida.
6Reconhece-o quem se veste
com olhos de girassol.
7Da colina escorrem seus passos
em riachos. 8Remédio é o que está
no lado de dentro das letras.

11 maio 2009

2
1Talvez isso: avançar parte da noite
caminhando, enquanto ainda na mente
há uma luz resvalada do dia.
2Depois escolher um lugar
para por o coração em descanço
e deixar os pensamentos soltos
para que estiquem suas asas.
3Então meditar antes do cair no sono
sobre a incapacidade de escrever a flor
ou o astro que a ele seja semelhante.
4Foi longe o grito cheio de flores
e ninguém viu. 5As crianças
naquele momento brincavam de estrelas
e pararam. Prestaram atenção
no vento, no tempo e se entreolharam
ainda mais vivas. 6Depois voltaram
a jogar as sementes umas nas outras.
7As de peito voltaram a mamar.
8Ele disse. Olhe. Há uma porta ali.

09 maio 2009

1
1Estava ali. Seu rosto
(nele algo meu)
tinha vários espantos,
uma beleza, e o peso do dia.
2Foi um tempo curto,
o mundo,
um e outro. Eu.
3O estranho. Quem era?



4Ele falava coisas pequenas.
Seus olhos são grandes.
O sol muito quente.
O que ele falava tornou-se
um mundo.
5Meu coração se enxergou.
Vi meus passos curtos
e mesmo assim desejei
atravessar o deserto.


6Naquele olhar ouvi:
é uma voz que te protesta
que te elabora em planícies,
vales perdidos. 7Estas montanhas
ainda não são as mais altas.
Vai-se por entre elas
teu caminho. 8Dai por diante
não entendi mais nada.
9De tudo ficou, todavia,
que eu devia olhar os pardais
e as cambuciras com mais atenção.

08 maio 2009

O que dá na telha e nas feiras
(sexta-feira)


Inconclusos versos,
sextos passos
incompletos.
É obra a vida,
inacabada. Inacabado
sempre, inquieto, sigo

***

a arte de dobrar as esquinas,
as quintas e as sextas,
em ângulos de amor,
tento. Escultor
também quero ser,
quero martelo e cinzel,
pedra já tenho. Os dias,

***

os que se passam,
um comboio,
viram páginas. Outro
verso me inicia
em novas perplexidades:
outros dias,
páginas para outros livros
(sem ponto final)

07 maio 2009

O que dá na telha e nas feiras
(quinta-feira)

A sinceridade do que se diz aqui
é forjada no fogo, dobrada pelo ferro.
Mas é pouca. Do mais tudo é mentira.
Invenções reais de um coração brincalhão,
e de um mundo cão,
deixadas por aí, pelas estradas e feiras.
Pensando bem, as palavras que expoem
minhas sinceridades ficam ao lado
da estrada. Quintas sinceridades.

***

É a cerca, o mato, uma casa perdida,
uma pessoa estendendo a mão. Não se sabe,
daquela pessoa que acena, que caminhos faz,
que caminhos fez, que caminhos fará,
porquanto os caminhos são feitos dentro,
por dentro, em frágeis conduções.
O aceno de mão, sumindo, sumindo
é uma performance. A poesia
sugere e ensina que é, assim,
um modo verdadeiro de dizer amor.

***

O amor que na quinta se colhe
é representação do que escorre por
dentro do caule espinhoso e que
nunca será colhido. O que é
de dentro em parte vira, fora, rosa, gesto.
Joga a quinta aos meus olhos seus jogos,
e me pega. Tudo que falo é ficção, talvez
autoficção. Até os mais reais sentimentos.

06 maio 2009

O que dá na telha e nas feiras
(quarta-feira)

No chão amanhece, demora,
mas há amor no que se levanta,
mesmo que ausente amor, pequeno.
O silencio - quando se acorda -
incita à rebeldia, não sei bem,
a vida é luta, acho que é. Festa

***

tomara fosse em todas as feiras. O que
ficou sobre a mesa do dia, evidente
cartas jogadas, quartas segredos
desfeitos, me divulga, me vende,
me comercializa, me esquarteja, fico
reduzido a um grito: meu Deus! A vida,
mães que choram, filhos que morrem
todos os dias com tiros na cabeça. A vida
(diem, aquam, solem, lunam, noctem....)

***

seria o projeto do universo? Esse frio infinito
cansado de solidão se arranjando pobre em nós
em olhares, desejos e feiras a se repetir.
A memória da poesia era - ou é - a beleza
do que coube em palavras, o temporal,
o vendaval, o roseiral de onde se colhe.
A rosa quarta tenta escapar da palavra
escrita que lhe extrairá seu exíguo perfume.

05 maio 2009

O que dá na telha e nas feiras
(terça-feira)

Terçar pedras e fazer estradas.
De tanto desafiar as sombras,
as rosas e o fogo se irmanam
em vermelhos delicados e em
hastes dobradas. Sim,
já sei, andar. Vou tentar
interligar caminhos, formar
traçados, criar jardins. Mas não sei
remover o peso das horas,
libertar-me dessas neblinas.

***

As profundidades explodem,
por fora o mundo fica ainda mais
estranho, sendo casa, todavia.
E pergunta-se, onde estamos.
Bronze o sino, antigo sol, espírito
que se invoca sem saber os ritos
em sôfregas tentativas de dizer luz.
A luz está nas letras que ainda
não formaram palavras.
As ruas tomaram os meninos
das escolas. Altera die.

***

O relógio corre. Terça tédio,
indiferença, lenha de incêndio fácil
para a maldita fogueira
que esquenta o mundo
e queima a floresta.
Sofrimento e primavera
se articulam em estranhos laços
na generosidade de quem
barqueia os dias com amor.
O dia é um rio lindo que vaza.

04 maio 2009

O que dá na telha e nas feiras
(segunda-feira)

Escorre a água no chão.
Não escorro, nem me deito,
me peito de forças que não tenho.
A água vai, o cansaço não
escorre para o ralo. Não.
Não deve ser cansaço,
deve ser fado, enfado,
porre às avessas, não ter
aproveitado o tempo, a segunda,
para beber, beber, encher
a cara, a alma. Falta
... poesia.

***

Será a segunda-feira
aquela tua preferida
flor que o jardim perdeu
nos braços da Eva.
A segunda é um eu
virado em começos.
Mesmo segunda à noite
a menina vai para os bares
perto do cais.
Um poeta chinês é descoberto
e a segunda umidifica-se.
Dies imago vitae.

***

O dia pode ser lugar
de exílio de onde se grita
para que volte o gavião-rei,
pássaro que já me pertenceu.
Depois me hospedei na ansiedade
e voei
para ontens e amanhãs.
Bati com as asas em pedras.
A física quântica me alcança ,
e desejo,
ser mago de viver agora novamente
nos cumes do coração do gavião
de onde avisto cavalos soltos.

02 maio 2009

XV

Um último cântico, de acre voz de pranto,
é entoado diante da alameda ao entardecer.
A promessa
escondida no fundo dos versos tristes,
já se levanta. A penumbra que persiste sobre
a ponte,
se perceberá depois, era só uma nuvem

de uma noite que também passou. Os altos
segredos das horas serão entregues mais
uma vez:
mais um dia. A vida se dá nos dias,
não nos anos, nem nos séculos.
Palavras
e versos são estes inexatos mapas

dos seus territórios. O que saber?
Há muitas coisas fechando passagens,
relógios
insanos, bússolas desmagnetizadas, produtos
que se grudam nos corpos e nos desejos.
A poesia
esteia pontes, ainda que precariamente.