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Uma música que se ouve de longe, eu, longe, assim vou descendo o rio Santa Maria. Ouço nas margens do rio pássaros de três tipos, os que cantam me ignorando, os que cantam estranho canto debochando de mim, bem-feito, bem-feito, bem-feito, e os que cantam em consolo de Maria Júlia. O sol se alegra avançando pela manhã mais conforme o ânimo da senhora e dos barqueiros. Estes, dois na frente e dois atrás e mais o mestre, remam e conversam seus assuntos de todos os dias, seguem cada trecho do rio conhecido, cada curva mil vezes feita como se nada mais fosse a vida senão remar, remar. Uma cobra cai de uma árvore que se debruça sobre o rio e serpenteia, infeliz, pelas nossas águas e um dos barqueiros lhe mete o remo com força de raiva, uma, duas, várias vezes e lhe tira a vida. A senhora esposa do dono da companhia grita. O canoeiro traz a cobra para perto da barcaça levantando-a com o remo, era das grandes, ela pende para um lado e para o outro. A senhora patroa manda se desfazer imediatamente do réptil. Ele arremessa-a, e ela cai não muito longe sobre as árvores das margens, escorrega para o chão, onde ninguém vê. A água da cobra arremessada respinga sobre a barcaça, sobre todos uma aspersão. A senhora com sua sombrinha com certeza não recebe os respingos. A cobra fica para trás. Mais adiante inclino-me, molho a mão direita e levo-a ao rosto, repetindo algumas vezes o mesmo gesto. Ao final sinto um cheiro nas mãos, como se fosse o cheiro do reptil morto, logo já não é um cheiro, mas um gosto, engulo a saliva, arrependo-me, cuspo fora o que já não era a mesma saliva, o que engoli, engoli. Pergunto aos barqueiros sobre o que há para beber, alem de água, Tenho um amargo na boca. Deram-me uma garrafa de cachaça. Serve senhor? A senhora patroa olha-me com estranheza. Bochecho a cachaça e arremesso o líquido ardente para as águas do Santa Maria. Pigarreio forte e dou uma cusparada longe. Desculpa senhora, desculpa, digo. O senhor está branco, passa mal? ela pergunta-me, e sem esperar resposta ordena à empregada que me ofereça algo para comer. Não, não, obrigado. O gosto da cobra desce-me ao estômago, um gosto misto de água salobra, peixe cru, taioba cozida sem tempero. Ao dar por mim negando o que a senhora me oferecia vejo a mão da empregada me estendendo uma laranja já descascada. Avanço sobre a fruta como um faminto e chupo-a, ritual cítrico de salvação, sofregamente.