31 dezembro 2009

O último porto do rio

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Uma música que se ouve de longe, eu, longe, assim vou descendo o rio Santa Maria. Ouço nas margens do rio pássaros de três tipos, os que cantam me ignorando, os que cantam estranho canto debochando de mim, bem-feito, bem-feito, bem-feito, e os que cantam em consolo de Maria Júlia. O sol se alegra avançando pela manhã mais conforme o ânimo da senhora e dos barqueiros. Estes, dois na frente e dois atrás e mais o mestre, remam e conversam seus assuntos de todos os dias, seguem cada trecho do rio conhecido, cada curva mil vezes feita como se nada mais fosse a vida senão remar, remar. Uma cobra cai de uma árvore que se debruça sobre o rio e serpenteia, infeliz, pelas nossas águas e um dos barqueiros lhe mete o remo com força de raiva, uma, duas, várias vezes e lhe tira a vida. A senhora esposa do dono da companhia grita. O canoeiro traz a cobra para perto da barcaça levantando-a com o remo, era das grandes, ela pende para um lado e para o outro. A senhora patroa manda se desfazer imediatamente do réptil. Ele arremessa-a, e ela cai não muito longe sobre as árvores das margens, escorrega para o chão, onde ninguém vê. A água da cobra arremessada respinga sobre a barcaça, sobre todos uma aspersão. A senhora com sua sombrinha com certeza não recebe os respingos. A cobra fica para trás. Mais adiante inclino-me, molho a mão direita e levo-a ao rosto, repetindo algumas vezes o mesmo gesto. Ao final sinto um cheiro nas mãos, como se fosse o cheiro do reptil morto, logo já não é um cheiro, mas um gosto, engulo a saliva, arrependo-me, cuspo fora o que já não era a mesma saliva, o que engoli, engoli. Pergunto aos barqueiros sobre o que há para beber, alem de água, Tenho um amargo na boca. Deram-me uma garrafa de cachaça. Serve senhor? A senhora patroa olha-me com estranheza. Bochecho a cachaça e arremesso o líquido ardente para as águas do Santa Maria. Pigarreio forte e dou uma cusparada longe. Desculpa senhora, desculpa, digo. O senhor está branco, passa mal? ela pergunta-me, e sem esperar resposta ordena à empregada que me ofereça algo para comer. Não, não, obrigado. O gosto da cobra desce-me ao estômago, um gosto misto de água salobra, peixe cru, taioba cozida sem tempero. Ao dar por mim negando o que a senhora me oferecia vejo a mão da empregada me estendendo uma laranja já descascada. Avanço sobre a fruta como um faminto e chupo-a, ritual cítrico de salvação, sofregamente.

28 dezembro 2009

O último porto do rio

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A senhora esposa do dono da companhia de navegação fluvial em oposição ao que se passa comigo parece ainda mais feliz a cada curva do rio. Se bem que eu nem diria que a cada curva do rio minha infelicidade aumente. Feliz e infeliz não são parâmetros com os quais no momento faço cálculos em meus dias. Todavia, não posso negar uma dor. A descida agora sem nenhum propósito se vai constituindo como uma tentação de não voltar mais, de me arriscar em novas empreitadas, de fazer, refazer a vida no porto do mar. Tentação talvez não seja a palavra; quem sabe desejo, aspiração, subterfúgio, refúgio, salvação. No tempo de descer um rio sobe-se e afunda-se por muitos pensamentos, alguns ficariam melhor se não viessem à tona, mas vêm: recordo as cartas que escrevo, o destinatário desconhecido, o portador-barqueiro de cara não amigável e sinto certo desconforto. O que já disse de mim mesmo nessas cartas, verdades e invenções, fatos e fantasias me introduzem numa luz de ver, e vejo, a ausência de solidez, a vulnerabilidade, a fumaça da vida que vou queimando em fogo miúdo. Balanço a cabeça tentando negar o que penso, tiro e ponho o chapeu, olho para o sol, procuro o grande monte na paisagem, acerto a meia na perna do pé preto. Desenvolví uma habilidade tão grande de prestar atenção nos outros, nos que me mandam e nos que me obedecem, que transito facilmente entre os próprios pensamentos e os assuntos que se vão desenvolvendo ao meu redor. A senhora patroa não imagina, nem os canoeiros, que além do colóquio que se dá na barcaça há outro em que falo de Maria Júlia, em que me lamento do fracasso do plano de irmos juntos ao Porto do Mar.

26 dezembro 2009

O último porto do rio
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A impossibilidade de ficarmos juntos se repetia em cruel suavidade na cena, uma barcaça descendo o rio e ela, no cais , parada, com sua sombrinha sem giros, um mundo sem sol. José Bento Caetano já me avisara, Maria Júlia já não é a mesma. Algo acontecia, nem ele sabia, seu amigo que era, apenas imaginava causas que preferia não me falar. A alegria nela, rio encachoeirado e borbulhante, era nos últimos tempos uma poça d'água sobre pedra quente. O pedido que desce comigo pelo Santa Maria, tão simples, tão inesperado, agora me dói ainda mais. Ela me disse Posso confiar em você João Francisco, posso? Tantas vezes ela confiara... Por que ela me apresentava assim o seu pedido, com este preâmbulo? Por que não entrava direto no assunto? Por que acrescentar aquele posso confiar em você João Francisco? Tão estranho quanto simples, o pedido bateu sobre mim, um jequetibá em tombo depois de muitas machadadas. Ela me convidou para sair do salão e eu, insensível, disse, Fala aqui mesmo, posso te ouvir. Ela me levou para um canto da sala de dança e me fez o pedido, Me leva ao Porto do Mar? O que você quer Maria Júlia, perguntei. Não perguntar O que você quer no Porto do Mar?, era como perguntar O que você quer de mim? Ela bem entendeu e disse, Nada, não quero nada. Levei-a para fora. Desejava lhe falar o que nunca fora capaz de dizer, mas apenas repeti a pergunta, agora mais específica, O que você quer fazer no Porto do Mar? Antes que ela me respondesse vi as palavras em redemoinho na minha mente, palavras suas por direito, palavras jamais ditas, sementes que perderam o dom de germinar; de nada adiantaria arremessá-las ao chão rasgado de dor pelo arado. Fiquei em silêncio. Então ela me disse o que queria no Porto do Mar.

21 dezembro 2009

O último porto do rio

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O destino desfavorável faz misteriosas parcerias com certas pessoas em certas ocasiões. Uma dessas estranhas sociedades se deu com a senhora esposa do dono da companhia. Se já me doía a tentativa de, pelos pensamentos, encontrar as palavras certas para dar à Maria Júlia as devidas explicações, ainda mais me dói um sufoco no peito e uma dor sem lugar certo no corpo quando ouço da senhora para os barqueiros a ordem de passar ao largo do cais dos pretos e apressar a descida. Maria Júlia, distraída pela felicidade, não me vê, mesmo me olhando, sem pensar me ver naquela barcaça, de fato não me vê; espera procurando as barcaças de café. Mas então me vê. A sombrinha que ela girava, um mundo feliz cujo eixo se apoiava no seu ombro e na sua mão, descontinua de rodar. Parada ela olha sem entender. Faço um leve aceno com o chapéu, ela imóvel. Peço aos barqueiros que parem no cais dos pretos. A senhora desordena-me. Digo que lembrei que tenho negócios do interesse da companhia a resolver ali, ela não me ouve e manda os barqueiros prosseguirem com a viagem. A curva do rio logo encobrirá o cais. Uma linha de anzol lança-se do seu olhar triste, último arremesso, talvez, meu Deus. Lembro-me do seu pedido que não serei capaz de atender. O que farei agora no Porto do Mar, pergunto-me. A linha estica-se, estica-se, a barcaça desce, desce, o anzol rasga a guelra do peixe.

19 dezembro 2009

O último porto do rio

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O cais da curva dos pretos entre se aproxima e se distancia. Se ajudam ao rio os barqueiros empurrando a barcaça para baixo, não precisariam. O rio se encaminha misterioso para o desenlace dos fatos para além do que as sempre tênues vontades determinam. Quanto mais perto do porto da curva mais distante eu do mundo ao redor, naufragado em fluxos contrários, correntes onde nadar agora é perder forças, e melhor é deixar se levar até quando se oferecer por sorte um galho, se se oferecer, ou um barranco mais firme, uma margem favorável. O dia seria lindo de azul, e assim parece ser nos comentários da senhora patroa do dono da companhia, mas em mim o céu de azul e as margens de verde não tem mais tais cores, senão uma acinzentada nuvem e uma leve e anestesiante tristeza a encobrir-me. E respondo e sorrio arriscando-me em ser cordial aos comentários da requintada senhora, requinte levemente diminuído pelo ainda perceptível modo alemão de falar o português. Ao nos aproximar do porto dos pretos, subo em recurvos da memória até à venda no casarão dos suíços, ponto de encontro dos tropeiros. Ali conheci Maria Júlia, quase uma menina, assustada, perdida dela mesma, trazida pelos tropeiros para servir na cozinha, dstante de todos na postura e no olhar, livre já, não obstante ainda escrava no destino de viver dias alongados na aflição. Para ela eu olhava, indo, na ilusão, por uma estrada só de ida. Mas me assustei quando percebi que era ela que vinha, com modos de enxergar muito mais acurados que os meus.

14 dezembro 2009

O último porto do rio

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Escolho um paletó cinza de finas riscas sobre camisa branca, conto um dinheiro suficiente e enfio no bolso. Olho no espelho, acerto os bigodes e vejo a dúvida ainda a me provocar, ali, no revés da luz do lampião sobre o meu rosto, mas reafirmo, olhando em desafio os meus próprios olhos, a decisão tomada. Aquele pedido da Maria Júlia não poderia ser negado. Puxo pela corrente o relógio, ele vem de sobre o peito de onde vem também a lembrança do seu olhar, como se me mirasse agora com a mesma tristeza que me banhou ao me fazer o pedido num canto do salão de baile. Se a alegria adensa o corpo de fibras e forças, a tristeza faz líquida a alma, cheia, a vazar nos olhos, várzeas de inundação. Apresso-me, recoloco o relógio no bolso, tomo o chapéu e sigo pelas ruas escuras na direção do cais. Tive a permissão de ir ao porto do mar sustentada por argumentos não tão verdadeiros, mas bem sinceros na intenção. Desceria numa das barcaças do amanhecer de sexta-feira e no fim da manhã de segunda-feira já estaria de volta, em nada prejudicando o trabalho. O meu jovem auxiliar cuidaria de por em prática pequenas orientações. Maria Júlia espera a barcaça no porto da curva dos negros. Assusto-me quando vejo que também desce os degraus do cais, no suave escuro da madrugada, a senhora esposa, jovem esposa, linda, do dono da companhia. Manifesta-se ela admirada da minha viagem, elogia minha distinção, dizendo quase não me reconhecer, o que me deixa sem saber o que falar, o que os homens do cais percebem, e me convida para tomar um lugar na sua barcaça. Quero dizer que viajarei muito bem acomodado numa das barcaças de café, mas ela insiste, enfática no convite, espontânea no modo de falar, e, inesperadamente preso, assanhaço em alçapão, não me sobra outro jeito senão aceitar. A senhora e jovem esposa do dono da companhia me diz que decidira de véspera fazer a viagem. Teria lhe contado o marido sobre o minha ida ao porto do mar, é um relâmpago de pensamento que tenho. Sinto-me alterado nos batimentos do coração pensando em como resolver a situação no porto da curva dos negros, onde Maria Júlia me aguarda.

12 dezembro 2009

O último porto do rio

10


As horas me batem, ventos endoidecidos que batem portas desprevenidas, e fico sentido por um tempo, depois pensativo, sem grandes proveitos do pensar. A hora de agora, três horas, por volta, é de sol tão forte e ar tão quente e parado que algo no mundo parece ter acontecido para que outro rumo seja dito, ou visto. O rio de viver a vida devia ser, nesse momento, de águas bem lentas, quase paradas, para que eu pudesse ter como contar e organizar os rumos, assim do jeito que conto as sacas de café que chegam ao armazém, e as que descem o rio, sem nada deixar passar. Mas elas me imprimem na pele, nos olhos, na alma o cansaço de cada canto do armazém, a poeira e o cheiro adocicado enjoativo do café pilado. Nestas horas, entre outros e diversos pensamentos, invejo os caixeiros viajantes que se colocam numa sombra de árvore boa à beira da estrada e deixam a vida passar. Olho da janela, os homens sobem e descem a rampa do cais, molhados de suor, cantando, sem pensar a vida que vivem, preparando as barcaças que partem para o Porto do Mar logo nas primeiras luzes da madrugada. Dobro-me sobre meus papéis, livre de escrever cartas, por enquanto. Foi-se a última, em branco, e por agora resguardo-me das preocupações do que escrevo e para quem. Voltam em círculos as lembranças do baile, Maria Júlia, o pedido que ela me fez. Meu Deus, eu não esperava tal pedido. Reparo no rapaz que me auxilia no escritório, ali tão sujeito aos meus mandos, e ao mesmo tempo tão livre de mim, tão próprio em seus caminhos. Parece feliz, decidido. Talvez seja a felicidade natural da juventude, quando se é feliz mesmo não sendo consciente dela. Ele ergue os olhos percebendo uma ordem no meu modo de levantar da mesa e já pergunta, Sim senhor, o senhor precisa de mim? Invento um trabalho e o chamo para que me siga, fugindo de pensar o pedido da Maria Júlia. Tenho por ele, num instante, um leve pensamento e um estranho carinho de pai, apesar de que pai não sou, mas suponho o sentimento. Senhor, ele me diz, O senhor ficou sabendo?, estão contratando homens para subir para as matas das terras frias nas montanhas com uns engenheiros que vão demarcar terras para os novos imigrantes que, dizem, estão chegando. O Porto do Rio vai se movimentar com os imigrantes. Que imigrantes? pergunto, e afirmo, Já vieram suíços, pomeranos, luxemburguenses, alemães. Dizem que chegarão muitos, responde, agora chegarão os italianos. Senti no tom de sua voz o ímpeto para a vida e o desejo de um novo trabalho, de fazer a vida, e pensei que talvez também fosse bom subir em tal empreitada, me embrenhar pelas matas.

10 dezembro 2009

O último porto do rio

9

Assim, mais branco por dentro que a folha de papel, não branco de puro, mas de vazio, apesar de que talvez o vazio seja escuro, sem conseguir escrever, mesmo que abarrotado de pensamentos, é que dobro a folha de papel sem nenhuma palavra e coloco-a no envelope. Não me furto de pensar, ainda que em rapidez, que a folha vazia seja o que mais eu poderia falar, o ponto mais distante neste caminho de entendimentos do destino. Recolho a folha ao envelope, como já disse, prenhe de pensamentos, mangueira que não segura frutos em terras frias, besunto com abundância as bordas da carta e pressiono uma parte sobre a outra selando de vez, sem recuos, a brancura e o vazio em seu interior. Nem sei a razão, mas o gesto de dobrar a folha em branco, selar o envelope e enviar para alguém que não sei quem, me arrepia por dentro, as veias apertam o sangue e um frio mina na pele. Nego a palavra a quem me pede, ou digo tudo no branco da carta vazia. Surge um pensamento amarrotado de sentimentos, de que fosse minha mãe, uma mãe desconhecida, uma mãe que ainda me quisesse, apesar de ter me dado aos outros, de ter me abandonado, e que purgando suas culpas, admitisse não poder mudar o feito, mas, ainda ligada ao filho, quisesse dele pelo menos as palavras. Sigo com a carta na mão. Palavras no papel são coisas que ficam por um tempo a mais. Um tempo a mais. Lá fora o insano grita mais exigente. Duvido da atitude que tomo, titubeio mas não desisto. Desço apressado ao cais e entrego a carta ao sujeito. Miro seus olhos com firmesa, um jeito de recusar, ou admitir, o perigo que ele representa.

09 dezembro 2009

O último porto do rio

8

Dizer o que digo me foi difícil, não é mais, sem ser fácil. Sou movido, ou levado, por uma força fria, dessas que se adquire quando decisões importantes já foram tomadas, ainda que não de todo assimiladas, e descem da mente para os dias na forma de um vamos ver no que vai dar. E digo me perguntando que sinal é este, ou inicio de doença, ou moléstia de velhice antecipada a se manifestar no meu pé, este alheio pé preto, que além de ser o que já é, apresenta tremores. A tremura vai do momento em que recebo do José Bento Caetano o convite para o baile até a hora em que piso no salão. Maria Júlia. Maria Júlia me faz esquecer tudo. Mas o amparo oferecido por ela é um abrigo que não me sustenta por não mais que poucas horas, e logo vem um desalento de viver a vida que vivo, subir o rio, voltar ao cais do último porto. Maria Júlia já não é mulher senão para estas coisas de baile e noites de festa no porto da curva. Do mais é história passada e futuro perdido. Durante todo o dia preciso tomar cuidado em manter meu pé alheio bem firme no chão a impedir assim o seu tremor, tremor que sobe e estanca no joelho, onde o suporto, apesar de mudar o meu andar, o que não percebo. Dizem que em certos dias ando com ar mais decidido, livre. Não imaginam o que se passa comigo. Quando em tais dias me distraio e cruzo as pernas a vibração da tremura fica visível no sapato e o presidente da companhia das barcaças do Santa Maria & Vitória já me inquiriu a respeito, tendo por suposto alguma coisa errada que eu tivesse praticado. Difícil, de fato, é entender tremores em situações tão corriqueiras, funcionário que sou, e sempre fui, da sua confiança, apesar de que, confiança de quem tem muitos negócios, sempre é uma confiança incompleta.

08 dezembro 2009

O último porto do rio

7

Ele tem por mim uma amizade, água limpa e transparente em pedra de cachoeira, que não tenho por ele. Não me nego ao seu bem-querer, mas em certos momentos me incomodam aqueles seus sentimentos que são assemelhados aos de parente, coisas de primo, irmão, uma ligação que não se explica. José Bento Caetano é o seu nome, pomposo demais, luva maior que a mão. Talvez o nome Bento fosse, da tríade, o que mais lhe conviesse, mas ele faz questão de ser chamado pelos três, e assim é conhecido em toda redondeza. Coisa admirável, não vou negar. Alguns acrescentam o negro. Tentativa, parece, de diminuir a nobreza que o nome lhe confere. O negro José Bento Caetano já suado de muitas sacas de café corretamente dispostas nas barcaças, ao me ver, acelera os passos na minha direção, e, respeitoso para quem visse de longe, e íntimo no pequeno sorriso e no brilho e piscar do olho canhoto, vai rapidamente me passando a notícia, dando tudo já por certo e combinado, Hoje tem baile dos pretos no porto da curva dos pretos. Retira-se então da minha presença assoviando como se nada tivesse falado, já vivendo a felicidade e as forças readquiridas no baile daquela noite que lhe duram por dias como disposição para a vida, ou para o trabalho pelo menos. Com certeza ele sabe das minhas esquisitices, e faz-se meu cúmplice no segredo que nem mais segredo é, de ir ao baile dos negros no porto da curva dos pretos, e no Último Porto do Rio, tendo-me por importante, sem ser, freqüentar apenas o baile dos brancos no clube da cachoeira. Dou-me contra estes pensamentos, pedra de topada e de desorientação momentânea, surdo a todos os ruídos do cais, e logo ouço, passado o tempo do confronto comigo mesmo, apenas tendo entrado no escritório, o insano barqueiro gritando meu nome precedido do usual senhor, mais alto do que seria necessário, acrescentando o pedido, a ordem, de que não demorasse com a carta, pois que já ele ia descer o rio.

01 dezembro 2009

O último porto do rio

6

Estranhamente ganho ânimo, uma mescla de tristezas e alegrias, quando alcanço a rua e atravesso os movimentos característicos do dia que amanhece. Tento entender, não entendo, sinto, talvez. Se latem os cachorros nos quintais, os rumores interiores forjam um assovio sem graça, de melodia repetitiva em meus lábios. Quem me vê passar até pode pressupor ali um homem pacífico e reconciliado com seus rumos. Se nas portas as crianças pequenas choram, se águas são arremessadas das janelas das cozinhas, se um cheiro de café e esgoto se levanta forte no ar aquecido pelo primeiro sol, acelero os passos sem perceber, quase correndo, como a levar uma boa e inesperada notícia para os barqueiros. Se dálias brancas brotam de terreno lodoso e dobram-se sobre cercas de madeira, a vida, a minha, se vai resvalando do destino que devia ser. Ser feliz. Bem vestido, altivo, sigo para o armazém no porto do rio. Sapatos bem engraxados, meias limpas resguardam-me de ver aquele alheio pé preto. Esqueço-me dele e me encorajo para o trabalho. A gritaria dos barqueiros acertando suas cargas, e que logo, sem demora, vão pelo rio abaixo, redescobre dos meus ouvidos uma voz, a própria, mansa, insistente que diz quase com entusiasmo juvenil, junta-te aos barqueiros, abandona este porto decadente, desce para o porto do mar, procura a mulher que te pede as cartas, viva a vida que se abre à tua frente. Esconderei dela o pé negro, depois, se um dia ela descobrir terei um argumento bem pensado. Ela com certeza se faz de pele branca, faces rosadas e cheira a água de colônia parisiense. Mas quem me pede as cartas eu não sei. Bem que acho que me engano, mas é insistente nas voltas da mente a esperança de que seja tal mulher. Há outro engano aqui, não sou eu este que me construo nas ilusões das cartas escritas, com olhos melancólicos, nos intervalos entre o rio que vai e o branco da folha de papel.

29 novembro 2009

O último porto do rio

5

Acordar, sinto saudades dos dias em que acordar era o natural abrir dos olhos e da alma para o milagre de viver. Agora acordar é dar-se com um sufoco no peito, uma pressa e um pulo, mesmo aos domingos e dias santos. Acordar com a alma deslocada, um vago no lugar deixado, uma dor inexplicável. Em tal situação não há outro jeito senão esperar que o banho frio, o café, o abrir da janela, a escuta de barulhos comuns do quintal, da mata ao fundo, convençam a alma a reocupar o correto espaço no peito. Acordo, mas me engano, o dia ainda não amanheceu. Estou estirado sobre a cama, vestido com as roupas, o peso e a poeira do dia anterior. O lampião aceso ilumina o buraco do deslocamento da alma. Que sofrimento é este, deslocamento de alma, dor que dói mais que luxação de ombro, de dedo polegar. Com um pé forço o sapato do outro e arranco-o. Repito o processo e o outro cai ao chão. Usando o mesmo procedimento retiro as meias. Esqueço-me do pé direito, negro, diferente de todo o resto do corpo branco e vejo-o. O lampião aceso ilumina o pé direito negro. Apavoro-me, tento escondê-lo, não sei o que fazer, mas sei, logo me enfio debaixo do lençol. Esquento-me de umas brasas e ardências de calor, os minutos viram o inferno e entornam seu fogo sobre meu corpo, dou um salto, retiro toda a roupa, exponho-me à própria nudez, volto para a cama e cubro somente o pé direito.

28 novembro 2009

O último porto do rio

4

Na medida em que os passos me fazem próximos de casa, quando na noite escura os cheiros são visíveis, o que se aproxima na verdade são recordações. Recordações insignificantes, nenhum acontecimento merecedor de vanglória. Uma esperança vã aqui, uma ilusão bonita acolá, uma casa abafada e um cheiro de mofo depois da porta. Pegar uma barcaça e descer o rio, quem sabe arranjar um novo emprego no porto do mar. Virá, logo mais, no meio da manhã, o insano, gritando e pedindo a nova carta. Escreverei que abro os braços como asas e rodo no pequeno espaço de liberdade que o círculo consagra. Tão hábil no uso das coisas da casa no escuro, agora tropeço na busca do velho lampião, meu Deus! Encontro-o, acendo-o, nem sei mais o que pretendia fazer com a luz, jogo-me na cama e desisto de levantar para apagar a chama. Dormir, no entanto não durmo logo, o cansaço é que me vence.

27 novembro 2009

O último porto do rio

3


Ir para o bar é ir para lugar nenhum, onde, suponho, apesar de me enganar algumas vezes, uma mão pesada não me apertará o peito. Ali me caem certas palavras para as cartas que escrevo sem saber para quem. Ficar ali entre uma dose e outra reverte o poderoso fluxo do mundo, força o nada. É nadar em suas águas frias como se fossem mornas. As horas ali também passam, claro, mas a lâmina é tão fina e incisiva que o tempo sangra, e, nem se percebe que há um corte. Depois, quanto tempo não sei, ao voltar para casa, fica o bar ali como se nunca tivesse existido.

25 novembro 2009

Logo mais retomo a atualização do blog.
Por enquanto fica o meu abraço para
aqueles que por aqui passarem.

21 novembro 2009

O último porto do rio
2
No pequeno escritório no segundo andar do armazém principal do porto é que escrevo as ditas cartas. Retiro delas o bem e o mal. Nelas me ocupo por um tempo, quando, acho, me permito ser o que não sou, ou, quem não sou. Tenho tido muito trabalho, pois que para mim viver tem sido trabalhar, e o tempo que durante o dia me sobra ocupo com as cartas. Mas se gasto tempo com as cartas, sendo sincero, nem é tanto tempo assim, pois que sou treinado na escrita. A maior parte, quando posso, e a despeito do olhar curioso e disfarçado do rapaz que me ajuda nos papéis, é olhando da janela para o rio e pensando pensamentos de futuros, outros, diferentes daqueles que vão se abrindo diante dos meus passos. Nas últimas cartas, pelos rascunhos que releio, percebo, ando forçando a alegria. O resquício desta empreitada se manifesta no tom de voz levemente alterado que surpreende os barqueiros e carregadores de sacas de café, sempre acostumados ao meu modo controlado de lhes dirigir a palavra. Quando dou por encerrado o dia já em noite fechada, como se tivesse trabalhado mais do que trabalhei, vou para o bar. A cada noite as ruas revelam-se em pesos turvos nos passo que dou. Ainda seria tempo.

20 novembro 2009

O último porto do rio

1

Há aqui agora, sem horas para chegar, um barqueiro que vem quando nunca se espera, e me impõe cobranças de umas cartas. Do cais grita impertinente, me chama de senhor, e exige que lhe entregue sem demora as malditas cartas. Fico em dúvida se não deveria chamar-lhes benditas. Fala-me como se me fizesse um favor, eu que tenho que descer ao cais, mal me toma os envelopes e atira-os dentro de uma bolsa velha de couro sem me olhar, voltado que está para os seus afazeres, os que lhe são importantes. Lido com registros, todos sabem, do que chega e do que sai neste ultimo porto no rio, tudo tenho que por no lápis, sem esquecimentos, desonestidades ou distrações. Cobra-me tão seguro as cartas o sujeito, talvez, por me tomar por quem não sou, e como parece sempre muito apressado, não me ouve as explicações ou tentativas. Também não distingo por qual grito por dentro, mais forte do que o deste endoidecido que sobe e desce nas barcaças, é que me dobro sobre a mesa e deixo ir este rio de insignificantes desejos de dizer o que vou dizendo.

14 novembro 2009

vertere seria ludo XIII

Tarde após tarde é o seguimento
de tentar desenhar casas
numa pradaria longe desabitada.
O franzido do sol caindo

sobre o olhar

evoca a matéria verbal
na qual se converterá
a luz do desenho. Além de que
entre outras regras

a ramagem da brincadeira

deverá atravessar o deserto.
Todavia, sabe-se, ele é demorado,
e o que se dá a encontrar ali será,
talvez, pela linha que se encaminha

pela esquerda da paisagem onde

ruas em luas crescentes
seguem pela noite de novas cidades
e depois avançam
pelos quadros de Escher.

12 novembro 2009

vertere seria ludo XII

Pode ser que a vida
se faça de duas metades:
uma consiste em tornar-se,
a outra em inventar

novas sensibilidades

para cada respiro. Cair,
fora do próprio destino,
quando acontece, acontece,
e se vai onde

não se queria ir. O muro

é alto demais, constatam.
Preso, o desejo de asas
se desfaz pelo chão mesmo,
ao som de latidos. O cão

tem o pior grito. No entanto,

a idéia forma um repuxo
e um amarrotado movimento
no desejo antigo: sair por aí,
se reencontrar, e ver no que dá.

11 novembro 2009

vertere seria ludo XI

Os dias, frágeis louças do serviço
do prazer, se contam em somas
de prejuízos. Jogo que se impõe
viver, a se querer ou não: lançar

pétalas ao fogo até restar a haste

nas mãos. O limite do número de pétalas
tornar-se-á sentido e significado quando,
por entre as equações de rosas desfeitas,
se levantar em geometrias lindas

o inumerável amor. As pétalas se vão

ao fogo, a haste guarda-se no bolso.
A espionagem amorosa dos entendimentos
dos segredos desenhados na louça,
não desprezará, no cômputo geral,

o peso do perfume.

09 novembro 2009

vertere seria ludo X

O peso de uma pedra
se dissipa (há uma chance)
na luz de um olhar.
Pégaso atravessa a tarde

em corpúsculos invisíveis.

Quem irá cavalgá-lo não
será a pergunta, mas
como abandonar-se ao seu voo,
pela densidade de cada coisa,

de cada dia. Não restará

da transparência um vidro estilhaçado,
o tédio. Há de ser (espero)
o dia comum um imenso livro
amarelo, o tratado da dança

e do canto, aberto na página que versa

sobre a teimosia deste jardim resseco
que naquela rosa se transubstancia.

08 novembro 2009

vertere seria ludo IX

Um ciclo de gritos, fracassos, ensaios
de admiração do belo e espanto: códigos
ainda, poemas depois. Alguns cães
ladram diante do hábito amarelo

do monge do farol que vai (ou que vem).

Lâmpadas, labaredas, amor
criam luzes, sinalizam rumos
e mares a se navegar. Se há
uma ventania nos lados de dentro

o vento é um impulso

para a cor dourada do sol. Viver,
invenção de fazer resumos de mares,
pedras, flores, átomos num
rubro mundo pulsante no peito.

O jogo de entendimentos das coisas

firma-se em letras e no preço de dizer
cada uma pelo doce do nome. Espinhos
e vinhos são barcos que passam. Um traço
no fim de tudo mistura no mesmo vaso

o auge do voo das gaivotas e das constelações.

07 novembro 2009

vertere seria ludo VIII

Uma fragata produz poesia
nos temporais e tempestades
com uma porção de prazer
e outra de sustos. Viver é

cair num abismo, e amar

é o sentido oposto, subir.
O abismo permanece, todavia.
No transverso da sede de falar,
a música ensina o que ainda

não se sabe, ouvir. O fundo

do fundo do coração deve ser escuro,
com pequenas e preciosas luzes,
onde é provável se encontra o verso
que mansamente constrói estrelas.

06 novembro 2009

vertere seria ludo VII

De qualquer modo é melhor
um trovão de susto e descobrir
o dia, ainda que tarde, do que
acompanhar a sombra do tempo

e ajudá-la a barganhar seus mofados pães

com os chacais. A coragem não virá
dos lamentos em fins de outono
sobre a bondade da palavra renasço
que não foi usada na frase do amanhecer.

Enxergar será lindo, a flor

surgiu do chão resseco, e é única.
A balança que pesa o coração
é regida pela mesma matemática que soma
a claridade, o calor (amor) e a leveza

na longa(?) viagem dos raios do sol.

05 novembro 2009

vertere seria ludo VI

O que vale no acúmulo
é o tesouro
que do monte foge.
Amontoar só vale

pelo riozinho que

por entre os montes corre.
Beber sua água,
correr por suas margens,
descer nas corredeiras

faz uma riqueza por

dentro, entre os amargos
de viver. Dá um estalo
de desprendimento
soltar do bambuzal

a poesia que jamais foi pega

pelas palavras que por aqui se acham,
ossos descobertos pelos ventos.

04 novembro 2009

vertere seria ludo V

O tempo de dançar estima-se
é o prazo de um fogo. A vigília
já termina. O tempo é de ir.
Ignora-se as roseiras floridas.

A presença querida se avista

ao longe num outro jardim. Rosas
amarelas e poesias de amor.
Mas, desconhecido é o poema,
o autor e o título do livro. Será

preciso ler a primeira página e encontrar

a tradução de cavalos indomados
na língua virada dessas palavras.
Se assim se der, a festa recomeça.

03 novembro 2009

vertere seria ludo IV

Mesmo o melhor olhar,
o de amor, sempre acontece,
emudece de ver, ainda que
no dia mais azul.

De que vale a limpidez do dia

quando o passo de ir e a
vontade de dizer te amo
assombra-se em reviravoltas
de incertezas da hora.

O fogo avança, e é,

e seja o que possa significar,
um tanto é pouco, tal
é a ânsia. O que por dentro anda,
anda mais do que se pode ver

do alto da montanha. Talvez

em círculos. Porque também
se perde o passo quando se ama
e se fica dando voltas
no próprio coração.

O bem-te-vi rascunho

traz no bico a flor dourada
de benzer a noite,
para se ter um sonho lindo, apesar.

02 novembro 2009

vertere seria ludo III

Atirar ao vento as palavras
mais solenes e amaciar
com o refugo dos sonetos,
que é a melhor parte deles,

a sola dos pés e as curvas dos caminhos.

E, a seguir, na hora da noite que convier,
arremessar a pedra dos sonhos no fogo
e deixar ir aos céus as faíscas da liberdade.
Poderá assim nascer um desejo

de cantar os salmos do amanhecer.

Nada é certo, todavia, vai que
o peso do dia como água
caia sobre as asas do beija-flor
...e tudo seja outra coisa.

01 novembro 2009

vertere seria ludo II

As outras cores do sol se vão,
escondidas, para debaixo
das asas da coruja.
Enquanto ela voa e, se

no chafariz correr água

bem limpa, as cores
aparecerão no rosto
das crianças que ali brincam
explodindo água em versos.

Dir-se-á que é noite
abrindo-se em belo dia.

31 outubro 2009

vertere seria ludo I

Por exemplo,
é importante notar
que o inventário do mundo
incluía um verso,

que se perdeu.

Pelas veredas transversas
sabe-se que
o tal verso
foi apagado. Raspou-se a folha

procurando rubís.

No impulso do entusiasmo
removeu-se, por distração,
as cascas das letras. O espírito
expandiu-se e saiu.

Quando isto se deu

houve um estremecimento
que virou a página e
o dia amanheceu.

29 outubro 2009

Sacolas plásticas IV

Verde e aveludada
em veludo eriçado
a lagarta verde alaranjada
escorregava-se como sentimento
rejeitado, sentido, ressentido
na superfície lisa da sacola azul, poema
sacola, lágrimas palavras,
vírgulas viradas em dia de chuva
em sacolas cheias de lixo aos pés
da árvore de onde caíra
a lagarta. Verde luminosa
a larva viva definia
sobre o azul cerúleo plástico,
definição sem muita clareza,
um mundo, qual não se verde,
cinza talvez, e melancólica voz,
linda música ao fundo da cena,
cinema de retinas, manias
de ver.

23 outubro 2009

Sacolas plásticas III

Veio um vento
de onde não se sabe. Frio
não era, não era do sul
portanto. Nordeste de todo dia
também não. Era
um vento do chão. Subia
levantando uma sacola.
Ela se ia cheia, poeira
pra todo lado, poeta num livro
enfeitado. Ela subiu, subiu,
asas de um pássaro assanhado,
alma feliz sem saber
que morreu. De repente
o vento doido juntou
os lados plásticos da sacola.
Murcha ela desceu
torta, tonta, vazia. Quem
passava viu.

20 outubro 2009

Sacolas plásticas II

O resto de suas asas se espalhava,
películas plásticas, pretas, colabadas,
uma nuvem assustadora enrugada,
caída, presa num destino, coisa
triste de se ver. A água seguia,
de um modo ou de outro, ao modo da vida.
Suja mas seguia. A água escapava
até evaporar-se ou cair no ralo e seguir,
mas a sombra ficava, ainda mais enrugada
velha, assustadora. A sombra, a sacola,
grande, preta, agarrada por uma ponta
na pedra do meio-fio não ia, não ia.

19 outubro 2009



Sacolas plásticas I

Rasgava-se em partes brancas
quase pele artificial, hímen
do mundo, a sacola.
Saiam grãos empapados.
Arroz. Atroz rumo, atrás um cão,
magro, correndo. Um caroço
de manga, saliva seca,
laranjas sem vida,
distintas flores vencidas,
corrompidas de cinza se largavam
pelo mesmo rasgo.

16 outubro 2009

V

Também pássaros
e a árvore solitária
num campo que passa.
Uma rua à noite, papelões
e passos vagos. Longe,
olhar que se perde. Então
as horas sondam
as asas dos sonhos
e dizem impossibilidades,
e penduram aflições em seus
voos.

... talvez seja cansaço.
IV

No meio o ponto de início,
uma ocasião. Possível
caminho. A pedra,
uma outra atitude.
O futuro não absoluto, nem senhor,
mas presente ali, na manhã.
A manhã que se vive
mesmo já sendo tarde.

... talvez seja ternura.

15 outubro 2009

III

Recorre-se a si mesmo
e não se é. Escora-se
em muro áspero,
destituído. O conhecido
estrangeiro fica,
e o limite.
O presente torna-se dia
a dia. O que se vê
é o que não pede mais
para ser visto.

... talvez seja tédio.
II

O que se falou foi apenas
um desvio. Amor
que faltou, ou sobrou.
Depois da curva
sentiu-se pendido,
mesmo estando bem ereto.
A ferida: um longe, perto
no aperto.

... talvez seja saudade

14 outubro 2009

(talvez seja é a nova publicação
de poemetos a partir de hoje)

I

Dizer dias seria
dizer morrer. Há
portas que se abrem
para que se possa escrever
outra frase: dizer dias
é dizer romper, quebrar
os olhos vidrados.
Transfigurar-se
do medo ao festejo

... talvez seja gratidão.

08 outubro 2009

Acho que vou encerrar esta série
de poemas - o que contais? - hoje.

VI
(O que contais?)

Ele teve um sonho, mas... ter
é punhado de areia na mão.
Logo a mão e a areia serão um.

Ele sonhou
que poderia ser deus,
no entanto, apenas
enquanto dormisse.

Ao acordar até poderia usar o excesso
do ser deus. Poderia
retirar da pele fragmentos de luz
e fazer assim uma limpeza
da poesia grudada no corpo.

Sapatos, asas, destino,
tudo seria deixado
na soleira da porta de entrada,
e tudo tomado de novo, na saída,
depois do amor.

O que se conta,
incertas verdades, é lâmina
afiada em pedra corisco,
algo que verte:

poema
não carece disso ou daquilo,
basta interromper um rio
e romper-se líquido em outro.

07 outubro 2009

V
(O que contais?)

Ali esfaquearam muitas palavras,
puro amor de transformá-las
em carnes de sustento. Mas

aquele não lhe parecia o lugar.
Avistavam-se as ânsias
de dar ao dia o que lhe bastasse.

Olhou a última página,
a mente do poeta entre
as exigências e o tédio;
o espírito do cientista entre
nuvens de gás e o abismo do cosmo.

Por fim o emblema na escolha:
um cristal, a tarde
e o canto de um passarinho.

Na porta de ir embora lhe esperava,
ao lado do sentido possível,
a experimentação de outra pronúncia.

Uma ponte inexplicável
incompletava-se
entre o sol e o coração.
Faltava-lhe um vão.

06 outubro 2009

IV
(O que contais?)

Ele tremia. As palavras
lhe ofereciam uma perturbação.
Talvez uma viagem, do medo
à esperança. As exigências

ancoravam alguns de seus navios.
Imprescindíveis portos.
Prescreveram-lhe poesias.

Aborreciam-lhe as rimas e o mormaço.
Sabia do morno que corria pelas horas,
mas não das orquídeas amarelas
do jardim, ali. Seria a loucura de apenas

um novo olhar. Bach em alemão
significa riacho. Beethoven diz que Bach
deveria significar mar.

Onde deixar que pousem
os pássaros dos olhos?

04 outubro 2009

III
(O que contais?)

O que ele lembrava,
mais do que das exigências,
era de um desprender-se de uma estrela,
e da queda
na inexplicação de si mesmo.

Mas, ao mesmo tempo,
era por dentro,
nas correntezas de dentro,
que um sentimento sem solução
se lhe aparecia.

Inclinou-se e pensou
no que fazer. Havia vários
corações para aquele gesto
de inclinar-se: qual deles
tomaria para viver aquele
ínfimo momento?

02 outubro 2009

II
(o que contais?)

Ele se lembrou
das exigências
que se lhe tinham sido feitas.

Haveria de plantar
o fogo do fogo
e alimentá-lo
com o vinho do desate.

O diamante do horizonte cegou-lhe,
para que pudesse sentir
a superfície fria do tempo.

Ao fim do dia
voltou-lhe a luz
e as hesitações.

Haveria de, por ofício,
afinar o violino
com o peso
ou a ternura das horas.

Ou, tatear sob o dorso da língua
indícios de novas pronúncias.

30 setembro 2009

(com esta série iniciada hoje
afirmo ainda mais, e com prazer, minha condição
de não-poeta)

I
(O que contais?)

Uma fina pétala
teria lhe feito voar.
Exigia-se, todavia,
que aceitasse um pássaro
na cabeça.

Que despertem,
era a ordem,
no clarão da estrela errante.

Os olhos assustados,
metais de fronteiras,
limites gelatinosos entre mundos,
nada viam.

Teria que criar
a modo de poesia
dois caminhos
que chegassem ao mesmo lugar.

E três versões, ou mais,
de uma única dor.

29 setembro 2009

(Encerrando a série de poemetos "...," )

...,

de falar se faz um campo,
se constrói uma casa,
e se vai por uma estrada.
Mas, de falar
se colhe o cansaço.
Vem o assombro de que
não falar
seria mais poético.
Nisto o universo é melhor:
de voz esvaziado, deserto.
...,

se no céu brilham os astros
por bilhões vezes bilhões de anos,
outra luz
no tempo de um olhar
define a infinitude do amor.
Se é a noite que avança,
também é o dia
que vem.

28 setembro 2009

bem, não sei

...,

pois que limita a vida
o poema que se escreve.
O poema parte
e reparte em mil partes
o que deveria ser um: amor.
A infinitude do universo é perfeita
mas é a poesia
anterior ao universo.


...,

O número engana. Palavras,
tantos poemas, nada.
O tudo antes,
o pleno depois. A busca
incessante: poesia.
Nenhum múltiplo alcança-a.
As estrelas incontáveis
se perdem.

27 setembro 2009

Sei e não sei,

...,

voltar - um convite -
do só ao um. Os dígitos delineiam
o (um) caminho. Não
nas estrelas está o rumo, talvez
no coração que fala entretendo-se
com coisas partidas,
no olhar que cria na retina
o ícone do todo. A poesia
exagera-se em vastidão
para além das bordas
de qualquer galáxia.

26 setembro 2009

...,

se a vida turva,
não é para que se enxergue
estrelas na escuridão.
Nos brejos
e noites a poesia também
surpreende.


***

a poesia se contorce
nas pradarias dos sentimentos
anônimos. O olhar leucêmico
de despedida... Não se fale disso.
O poema fica incompleto
para sempre, enquanto
as estrelas brilham orgulhosas.

24 setembro 2009

Não sei se digo,

...,

mas o sol é apenas
o começo do dia. Todo
o meio e o fim, o dentro
e o fora são feitos
de poesia e morte. Morrer
valoriza a poesia. A imensidão
se engana com
o poderio de seus astros.


***


Se digo, não sei

...,

o que era loucura
agora é luta,
e é a poesia que desígna
a diástole e a sístole.
O cavalo das palavras
leva rápido
ao fim do poema.
A estrela cadente
não sabe nada sobre o coração.

23 setembro 2009

(nesta nova série de poemas jogo com a oposição universo e homem,
o poderio do universo e a finitude do homem, a frieza da imensidão
e a poesia. Por aí...)

Não sei se

...,

o precário tempo de viver
secas, ventanias, erosão,
faz maior, bem maior o leito
do sonho que margeia campos
de girassóis semeados
em eitos e versos.
O universo quer acordar em nós
do pesadelo dos seus planetas estéreis.

***

Não sei se digo,

...,

pesa a vida
e é pois sob o esmago
desta gravidade
que germina,
rompendo-se em asas,
a poesia.
O firmamento ludibria-nos
com a aparente leveza da lua.

22 setembro 2009

Ah, não sei

....,

e dói dizer que um verso escrito,
pode ser a rasura
de um momento do tempo,
o tempo do tempo,
do qual se teve consciência.
A poesia é a faísca
que surgiu dessa dor,
não do fogo da estrela bonita
que explode no frio do universo.


***

Não sei,

....,

A poesia recolhe respiros
incessantemente, e força-se
como acontecimento
na rebeldia dos gritos.
No mais belo passo
da sua dança infinita
o universo tropeça
e deixa cair no nada
o tudo de uma vida.

Não sei o que

...,

às vezes confundo poesia
e amor. A poesia
arrebata: amor.
O amor distingue:
poesia. Ou o contrário.
O firmamento desmedido
distribui sílabas. O homem,
palavras.

21 setembro 2009

Não sei o que digo,

...,

o retorno absoluto da poesia
se dá
no dia da morte.
O universo poderoso se vê
infinitamente incapaz
frustrado, vencido.
O coração humano
que para de bater
declama-se.

19 setembro 2009

VIII
(fim desta série, acho que sim)

Abandonei-me e fui
(ou fui forçado a ir)
para campo aberto,
quadro sem tela.

Passei ao largo dos alcances,
deslimitei a razão para ir
a estes mundos onde

os mundos revolucionam os mundos
e constroem uma estrada
que sobe a montanha de onde se cai
nas correntes prateadas de ar,
em asas desacreditadas.

Abandonei-me, fui,
(as asas funcionam)
e pousei no lado da noite
em que se enxerga (penso)
a voz que grita na própria boca,
tão estranha e conhecida.

No fundo da voz, nos seus escuros,
nos seus sub-tons brilha,
eu vi, um brilho pequeno,
sim,

um amor de me fazer de frases,
um amor que pinta meus olhos
com anoitecimentos poéticos.

(O anoitecimento prepara
os escritos diários que me leem).

18 setembro 2009

VII

Nas casas, nas ruas,
nos campos onde o destino
encontra-se comigo,
artista faço-me de mim.

Retiro o peso
que comprime o nervo
das estradas que doem.

O arremesso que me joga
pedra, lança, longe, longe,
além do que meus olhos previam,
pode ser o amor.

Que me adoeço de mim,
sei, quando os passos
desencontram-se do horizonte,
do sol, da noite, do vento,
da flor selvagem que pende na tarde
e do rio lento
que vai.

Amar não vale a pena,
aconselha-me, corre, corre, espera-te
cansada a felicidade. Amor,
digo. Titubeio, mas digo.

Condena-me. Quem? Pois,
haverá outro modo
de curar-me?

16 setembro 2009

VI

Uma angústia estrangeira
me amanhece. Desce
dos mesmo barco que
me atravessa. contrata

alegrias e abismos,
dos dias. Olhos lentos,
coração acelerado. Semeio
pensamentos depois
da boa chuva dos sonhos.

Penso. Penso é modo de dizer.
Penso porque me violentou
o amanhecer. Penso e desejo,
quero um dia bom. Será

que descobrirei o amor
pássaro certo para
soltar das mãos. Aperto

o lápis, mas sei, há
tantos modos de desenhar
na folha dos dias o amor
quantos são os raios que fazem
o sol do relógio.

Meus estrangeiros, sentimentos,
explico assim, silêncios
que acordaram. Um vento
rompeu a janela e
me voltou para mim.

15 setembro 2009

V

Difícil dizer o amor.
As palavras têm cortes afiados;
quando dizem, repartem
ossos, tendões, músculos.

As flores são ditas,
as orquídeas, os vasos,
os orquidários, mas não
as florestas, as fontes,
os montes e a neblina das cachoeiras.

Ah, se pudesse acontecer
um alargamento do tempo
no exato momento
do mergulho, entre
o jogar-se e o cair, talvez
eu enxergasse com o olhar de Deus.

Óleo que sou
derramado em filete espesso
na água, afundo
e retorno. O amor
é o que me pesa
e o que me faz subir.

14 setembro 2009

IV

Engole, retorce-se
o estomago, vomita,
deixa ir este fluxo, a feiúra,
palavras, ervas
que se multiplicam,

espinheiros que se espalham.
De que falo, disso,
jogo sem graça, mas feliz
(ou contente, senão feliz),
jeito de encontrar a rua
na cidade estranha

onde se vive
perdido. O amor se associa
à poesia, amasiados
em laços selvagens
e espirituais

ao mesmo tempo. As palavras
são jogadas, pedras, astros,
I ching, oráculos que
me predestinam ao sonho

de dizer, enquanto vivo,
tantos amores e mundos quantas
estrelas há no céu. Ah,

amar, a melhor brincadeira,
máquina que para o tempo,
remédio de esquecer a morte.
Porquanto digo sem causa,

sem grandes histórias
a me conduzir, por prazer.
Estranho. Dizer,
quem sabe, seja morrer
e ressuscitar com mais fome.
III

Que força bate
e rebate o metal
que se dobra no fogo
para fazer uma rosa de bronze.

Bato e rebato-me
enquanto persigo
esta forma. Penso.

Mas,
desejarei vender
a flor, inútil rosa?

Talvez a saudade,
misteriosos desejos, ou a poesia
manuseie as lâminas em brasa
nos redobres das pétalas.

De metais e lâminas
me esvazio, no entanto.
Arremesso punhais, espadas
e elmos na caldeira.

Aguardo do rei
bons acres em fértil província.

A flor em demoras fará sementes e
os dias persistirão seguindo os
passos de sonhos e ansiedades.
O amor me suportará
enquanto.

Se me limitar a aspereza do chão,
ampliar-me-ei
para além das montanhas
em olhares de fazer arte comigo mesmo.

12 setembro 2009

II

Amar é quase, apesar
de que. Completar
a frase... é difícil.

Ocupar-se de amor
pode ser um modo
de preencher-se de.
Bem, de quê não sei.

O ontem de amor
e o amanhã ainda vazio
deixam entre eles um vão,
um quase. Nele
se respira
e se sufoca.

Vão poderia ser um vaso,
outra realidade,
uma dimensão do universo,
terra boa e úmida
onde se colhe flores,
feijões,
hojes de folhas grandes.

Mas, ai meu Deus,
amar é quase,
quase,
quando só se colhe
hojes de folhas miúdas.

11 setembro 2009

I

Ardem,
segundo consta,
na folha branca
as vontades de
poemas e orquídeas.

As linguagens,
filmes sem paisagens,
oferecem visões
de setembro.

Tempos,,
flores sem jardim
aqui. Enquanto
estou, o sol brilha lá.

Os gritos e os
engasgos
se querem palavras.
Jamais serão
belas frases.

O que cai
nos ensaios e nos anos
é um teatro, e o engano
de versos, nada mais do que rabiscos.
São circunstâncias.

Páginas e
orquídeas. Mas, ai,
sinto, inconstante,
o sol vai surgir,
outra vez vai surgir a poesia (matriz
de contra-poemas).

Poesia é seguir. Poemas
são pegadas na poeira
que o vento apaga.

(Vai se deletar isto aqui, senão hoje, amanhã)
uovorpa aramâC A
iel ed sotejorp siod
soirálas so matnemua euq
FTS od sortsinim sod
.acilbúpeR ad lareg-ordarucorp od e
Lear – E tu, trovão de tudo abalador,
achata a espessa redondeza do mundo.
.R$25.725,00 orbmetes mE
.R$26.723,13 0102 ed orierevef mE.

09 setembro 2009

sadagluvid maroF
ad snegami
,atelobrob alubéN
oãhlibrut mu
,ság ed
elbbuH olep satief
.soraper sod sioped
Porque, se foram capazes
de conhecer tanto,
a ponto de pesquisar o universo,
como não encontraram mais depressa
o amor?
adnubmirom alertse amU
áste
ortnec on
.oãhlibrut od

08 setembro 2009

eãM
ed adasuca
a ragoj
on ahlif
oir.
Amai-vos.
ahliF
uerrom
adagofa.

07 setembro 2009

IV

Enquanto de volta sigo o rio
extraio palavras ainda quentes
do bafo de suas cavernas
por debaixo das águas.

Elas se negam, se negam,
outras línguas desejariam,
outras frases, outros ditos.
Mas nos uniu um destino torpe
de dizer o desnecessário
pela teima de sonhos e mãos

em hieróglifos que, se na manhã
eu os leio e compreendo, no sol
quando se põe, só lhes aparecem
os defeitos, a rouquidão,
o descompasso, a solidão, os ventos frios.

Ah, mas me basta saber que
a luta poderá arrebentar modulações
de antigas curvas que o rio já alterou
há muito tempo, e surgirá,
defeituoso, como sabeis, mas novo,
este hieróglifo desvaloroso.

O valor da luta é encontrar
o novo fio do jogo na viagem
e o molde da brincadeira.

Ágon é o nome que se desenha
no flanco esquerdo do barco
com que retorno ao Cairo.
No direito, necessitando reparos,
escreveu-se um dia Eleutéria
com pigmento vermelho de alizarina.

05 setembro 2009

III

As nuvens,
se cobrem o sol,
antes cobriram o céu,
no interior dos territórios do sul.

Esquece-se a promessa de festa
em dias de céu encoberto,
e canta-se (ou ouve-se)
como melodioso e triste
o rumor do barco singrando as águas.

Se o possível comerciante de fragrâncias
ainda desliza longe
descendo as águas do Nilo,
o encontro vai demorar.

Sendo o possível ainda impossível
algum deus foi que se intrometeu
no conducto do tempo, e desviou
dos seus eixos as asas das aves.

Os pântanos se tornam longos, longos,
silenciosos,
sem segredos bons
a se decifrar.

O ganso assado
perde o sabor, e a alegria
a bebida a mantem
por breve curva do rio.

Os barcos quase param.
Os pensamentos
na carência do perfume sobre a cabeça
se debatem em cordas
e espaços apertados, mesmo
que ao vento de tão largas paisagens .

03 setembro 2009

II

Olhei para os caniços dançantes
nas margens do rio.
Entre um vento e outro
cruzei com o olhar
do escravo recém adquirido.

Ele me viu? Se me viu,
de que mundo me avistou,
e a que perigo me acenou
com os fachos daqueles faróis?

Voltei-me para a princesa
que comigo descia o Nilo.
Sua doçura e o sol que brilhava
em sua pele me aqueceram.
Mas ainda assim, o que eu queria?

Eu queria me acercar de escribas
e artistas, e com hieróglifos,
pedras e pigmentos traçar
nas páginas dos dias,
no verso e reverso das horas,
a beleza e a melancolia
de cada beira do Nilo.

Mesmo que tudo seja sem sentido
o que importa mais é o que faz
o pensamento fluir para o mar,
fertilizando os campos das margens
a cada extensão do olhar.

02 setembro 2009

I

Bati à porta de mundos,
outros, dentre tantos, e
fui recebido. Logo
sem perceber, fui perdendo
o que não sei que perdi.

Quis dançar, mas
a vacuidade das suas estradas
não me permitia senão
passos marcados.

Minha vocação eu sei, ou sinto,
é para os substratos dos dias,
aqueles encobertos
pelas areias do costume das horas.

Agora vou viajando
pelos Egitos. Os dias
e os seus hieróglifos me desnorteiam.
Suas teias, no entanto,
me prendem no que irei aprender.

Ah, então subi o Nilo
à esquerda,
para a Etiópia,
por me sentir
na falta de alguém.

Encontrei-a,
e, nos seus olhos
os meus reapareceram,
na sua pele a minha tez,
na sua alma o fogo da minha.

Mas, ao me ver nela
fiquei doído de muita dor.
Seu olhar era o seu,
e o meu o meu.

01 setembro 2009

A cena já se distinguia.
Outros elementos,
tais como a tradução,
já se mostravam.

Eis pois que
traduzir os cotidianos
é uma impossibilidade.

Assim acaba por ser
a desterritorialização dos dias que passam
em poemas. Os issos
no lugar daquilos.

Mas o que vale,
o fóssil, ouro não sei,
é o que se inventa: ele
cansado da aula,
dominou-se plenamente por um longo
e prazeroso bocejo.

Neste momento,
por transfiguração poética,
veio-lhe um cheiro de capim
e de outras coisas no chão
por onde passa o gado.

Apesar de que
quem vier a ler
esta escritura verá
o perigo para os olhos:
ela não
tem fundo.

31 agosto 2009

Vou cuidar do que escrevo,
e cuidar descuidando,
cuidar sem cuidar,
cuidar deixando.

Meu poema anda
despoemando a poesia,
amor.

Bem,
não sei que amor é este,
nenhum amor que aprendi,
um amor que foi assim
me deixando por aí
nas estradas
do que se pode ler. Gibís,
Gilles Deleuze, Tereza,
Machado de Assis.

Tem resto de terra
no descuido das minhas mãos.
As tintas e os teclados
se partem em despoemações do
mundo. Desdigo-me.
Das coisas
desaprendi tantas.
Algumas me falaram livros,
outras me comeram nomes
e me deixaram
em frases incompletas.

Das coisas, outras vezes,
me enriqueci,
foram boas.
Boas coisas.
Mas também me empobreceram,
quando pesaram
como ouro
e me impediram voos.

Afinal sou coisa,
mas não aceito ser mais
coisificado. Os sonhos
e a poesia trazem-me à tona.
Meus desejos transcendem-me
de uma coisa para outra

luz.

Abraço,


A curva no fundo escuro,
iluminada, arquitetura
de inspirações
e expirações, albergues
de vísceras e pulsações,
fomes e desejos. Costelas.

Elas, as flores no jardim,
sem saber, ancoram meus olhos,
e sustentam minha coragem.

Meu peito doi, minhas costelas
apertam meus sonhos. Minha
ansiedade por tua volta
me torna bem maior
que minha caixa toráxica.

Espero-te.

Os prazos me atormentam.

Um abraço,


...habitamo-nos
no desvão da matéria
e no peso da alma.

A face é o reflexo do devir,
do que há de ser
(e talvez não seja).

O coração é o que fica
entre o que se planeja
e o que se executa.
Ânsia. Uma flor ontem

caiu antes que a lua.
O dia de hoje ficou incompleto
mesmo, e apesar,
do amor.

Um abraço,
(comentários, intertextualidades)

28 agosto 2009

(aqui) faltam letras, inarticulam-se
palavras em sangue escorrido em lamínulas.

As vertentes da mente pendem
para o coração. Acelerado
cavalo solto em pasto amplo,
peito apertado, pensamentos
e imaginações. Sobressaltos.
O braço sobre o apoio.
A moça de branco depois do bom-dia
virou-se em seus eixos,
tubos e seringas. Fina,
bem fina, introduzida na veia, a agulha

sem linha. O olho costurando tudo,

vendo o que não se devia ver.

Comum, era assim, o azul
da veia estufada bem no meio
do braço, um riacho na curva, novelo
desfeito, um riacho em cheia,
subterrâneo. A azul
nobre vida vassala, ordinária,
ali, misteriosa. Glicose
colesterol, tri. Triglicerídeos,
sustos e anos que passam.
A infância ainda perto
dos sonhos, a infância tão longe (...)

sempre tão perto nos medos.

27 agosto 2009

(aqui) faltam letras, inconstituem-se
as rimas em versos desarticulados.

A sala apertada, a ânsia e a esperança na
sala apertada. Olhos de expectativa, entrevista.
Falar o quê, mostrar-se quem.
O vento levou as folhas, embora secas.
Ocupavam o coração com ilusões de
uma pequena fogueira, um sol de boa luz.
Deixou um vazio, um limpo vazio.
O que alguém pode ser quando
não se tem um trabalho. O pão.
Submeter-se em vôos sem resistir

às nuvens de tristezas, frustrações. Sonhos

de um dia. Um caminho bonito, um salário.

Quando o que se tem é uma roupa boa,
um sapato bem engraxado, mas a voz
embargada. A resposta, a porrada.
A entrevista foi mantida, mas a vaga,
a vaga já foi preenchida. Espera. Quem sabe
surge outra vaga. Vago amor de continuar
a acreditar. Um choro num sorriso.
Aperta. Dizer obrigado e sair da sala.
O universo não tramou, rabiscou
traços, raios, raios no destino (...)

É hora do almoço. Só o dinheiro da passagem.

26 agosto 2009

(aqui) faltam letras, incompletam-se nessas
ruas de versos bueiros e inseguros cruzamentos.

A rua molhada, o asfalto com olhos
de fogo, brilhantes nadas no chão,
fila interminável de volta pra casa.
Lá fora, fora do carro um olhar se vai
e se perde em pequenos pedaços
de sonhos, ânsias grandes por dentro,
alma, almas perdidas de um tempo
que se quer pra rir num bar, num café.
O que se quer, o que se quer, é, talvez,
ir sem sentir tanto, sem sinto de segurança,

sem multas, sem contas. Mesmo que só

por uns dias. Férias, feriados que passam

como o ar do bailado do beija-flor
nos jardins dos anos, distantes.
No fim de uma quarta-feira qualquer
a singularidade da vida no semáforo, parado,
sem ser, sem ser, sem ser
nada mais do que um a mais, isso, engolido.
No sinal vermelho ouvindo uma música
sem ouvir, ainda distante de casa,
peso, fardos, quadro pendido
na parede com manchas, mofo (...)

Pra dormir. Ai meu Deus. O remédio acabou.

25 agosto 2009

Um sentimento, um incômodo,
a ferida latejando. O sino de outro dia
anunciando a alma à beira do desfiladeiro do coração.

Mais um dia que se levanta contra a eternidade.

O cenário invadindo os olhos ainda fechados,
o sol pedindo a palavra
que não se consegue, não se consegue dizer.

A estrada da volta para si mesmo.

Apertar ainda mais os olhos cheios de palavras,
forçar o atraso do sol mantendo-se sem dizer nada.
O corte se abre, a janela, o tempo segue,

o poema se perde nessas palavras nubladas.

A escolha certa da flor errada,
espinhosa, a mais bela, amarela. Será
um dia bom pra se amar, mesmo assim.

Novas horas para se redoer de poesias.

21 agosto 2009

Talvez uma tristeza seja, uma alegria,
só o tempo de uma música.
O olhar dobra-se com o vento sobre os montes.

O sol brilhando o fim do dia atravessa o amor, vai.

A marca seca de sangue na faixa
recorda um passo, um tempo, um espanto.
O alívio vem em gotas.

A lentidão da vida é só para a dor.

Ainda é possível atravessar o rio,
colher abil e ficar com os lábios colados,
cheios de palavras doces. Ainda

nada é. Tudo é. Brincar é o que importa.

Um emplastro sobre o furúnculo,
uma lâmpada muito fraca para a sala
na noite de chuvas, quando todos dormem.

Como e onde se pode guardar um momento?

20 agosto 2009

Fragmentos de momentos
mundos que giram nos mundos de mim, palavras
e conflitos, ambição de dizer qualquer coisa.

O que vai longe vai sem asas.

O brilho do vagalume
não ilumina caminho nenhum.
É urina o que na escada escorre.

O odor de um poema pode ser dourado.

Haverá de parecer nobre o azul
de certas palavras, em versos,
mas o cobre no chão é outra coisa.

Isso é uma atadura que se soltou.

O que se põe com letras por ai
não representa sentidos,
mas bifurcações.

Escorreu o que foi dito e logo secou.

19 agosto 2009

Represei as palavras
para ver no que dá. Elas se espraiam
sob as sombras das árvores.

Fiz um barco e pus no lago.

Delineia-se agora
na gaze sobre o corte
uma palavra de sangue.

Lancina-se a alma em caminhos.

O que foi dito
há muito tempo, latejou
e escorreu da tumefação purulenta.

A vida dói, mas é a única poesia do cosmo.

Brilha um sol tímido
no retiro, nas planícies.
O monge manca.

Não há vômito sem revolta.

14 agosto 2009

Não ando deprimido,
nem triste,
ando calado.
Calado me afundo
nessa mansão
e adentro por um salão
onde tudo o que é frágil
fica mais frágil ainda,
o que é denso fica tênue,
o que dura se corroi.
Quero escrever a gramática destes tempos,
dias em que calar é uma imposição
de algo, de alguém, de algum
outro eu mesmo sobre o coração.
Perco a língua, ganho olhos.
De tanto olhar, olhar, tudo
o que pelos olhos entra,
pelo olhos começa a vazar.
E o que vaza, traindo-me,
talvez escreva um sofrido entendimento
do que se passa, do que me passa.
Envergonho-me de mostrá-los, todavia. Sei
que faltam letras
no meu alfabeto de olhar.

13 agosto 2009

Vai-se
na noite áspera
um desejo de poesia.
Magma na pele rasgada,
palavras explodem
no impacto com pesados volumes de anseios
que viajam sem rumo pelo espaço.
No início um grito por dentro,
um grunhido depois, um pormenor.
Uma frase, um ponto,
poeira no fim.

10 agosto 2009

Uma flor
é uma flor,
perfeita por ser
uma flor.

Cada flor é um sol
com outras cores,
o fogo desdobrado
em muitas manhãs.

Mas um poema
não é um poema; é
imperfeito por ser
um poema (de um não-poeta).

Cada poema é uma sombra,
cinzas palavras,
carvão e rabisco
de um sol que se pôs.

09 agosto 2009

Sair calado,
sorrateiramente,
e dizer aos ventos
palavras cambaleantes.
Ganhar mais um pequeno e contente momento
somado na conta de muitos.
Riscar versos nas páginas e ludibriar
os poetas. Se aproximar deles
só para roubar-lhes os olhos de ver,
e gastá-los,
às tortas e às direitas,
na maior farra.

07 agosto 2009

A rua e a cidade,
qualquer coisa
me fala de uma luz
bem no fundo do que há em mim.
O que há em mim?

Eu mesmo, eu mesmo dentro de mim,
uma luz-treva,

uma luz que ainda não é
luz-luz. Será? O olhar é vago. Nublou,
não chove, nem relampeja. O olhar
cortou a noite em claro,
separou o ontem do amanhã

e eu,
nem me pergunte,

passeio bem no meio
de uma música triste,
linda. If you knew how
I missed you. Acabaria com meus versos
se pudesse viver sem dizer nada.

Mas não posso. Ainda não.
Não tenho suficiente luz.

05 agosto 2009

A solidão suave e invisível,
amiga e debochada, como fantasma
segue o impacto dos passos, das mãos no teclado,
letras, fragmentos de decisões, escolhas,
curvas e pedras, palavras. Vida, trilha, sigo
o rumo de estrelas desconhecidas, versos,
reversa bússola, tino. Destino? Olhares em saudades,
gestos melancólicos de buscas sem fim
compõem esta canção, queixa, exclamação.
Clamo, canto, engano-me feliz de poesia,
encanto-me e desando em passos tontos,
sem chegada. A morte é parada, fria,
mas não é chegada. Passo por ela escrevendo
uma carta que ela nunca vai ler, um
poema, sem poeta ser. Trilha, vida, vou,
desencarna-se alguma disciplina dos ossos dos erros,
meus, becos e vias sem saída. Resta, a herança,
uma possível via, uma florada de frases
insignificantes, poesia sem poeta, poemas,
tremas esquecidos das intranquilidades,
mares, estradas por onde se tenta alcançar, é isso,
depois, bem depois de muitas milhas,
algum amor.

04 agosto 2009

Rasgar as páginas
não significa lamento;
não acreditar nos poetas,
escrever qualquer coisa
com cara de poema, pão e grão de feijão,
é uma mania de brincar contra as claridades,
um modo de apregoar
primaveras, alheias e belas,
ainda que na boca da noite.
Pode parecer estranho, é
justo modo de tomar outras estradas
e amigar-se do anteontem e do depois
de amanhã. Hoje correr pelas margens,
entrar noite adentro para, quem sabe,
encarar seduzindo o que faz nascer de novo as casas
que dormem. Ver no escuro talvez,
amar mais...

03 agosto 2009

Um tempo foi
I’m going to.
Cantei enquanto ia
e... quando voltei,
o destino, esquerdo,
me atropelou no coração,
com um pensamento, o amor,
de não ir mais going to,
mas só ir go away.

(Ei... let’s go?)
Estou correndo de mim,
das palavras. Há
um pássaro amigo chegando,
pra me levar por ai. Voltei,
no entanto, aqui. Tem um nó
na madeira que usei
para esculpir o anjo. Voltei
para te avisar isto. Quando
teus olhos arderem
em algumas das minhas palavras
saberás que foi
a asa trincada. Perdão.

01 agosto 2009

.


16:15 ela falava, falava, reclamando do serviço dele. Ele via uma imagem sem som, com um olho só, preso que estava no reflexo que vinha do prédio em frente. Ardia.


.
.


14:10 o café estava bom. Olhou o céu lindo de agosto lá fora. Tomou do copinho o último gole. O relógio ainda marcava 14:12 e o café já não tinha sabor.


.

31 julho 2009

.

12:30 entretinha-se com o telefone celular sentado à mesa bem defronte à entrada. Almoçou sozinho, comeu pouco.

.

.



04:05 acordou, antes da hora. Meu Deus, o peso do dia já lhe batia no peito.



.

29 julho 2009

... momentos
soltos,
felizes. São ventos
que tocam flores
arremessadas por amantes.
Lindos, caminhos,
perfume que no ar se dissipou.
Outros,
tristes,
escorregam lentos,
um fio de seiva,
espesso óleo de madeira,
resina de aroma e dor.

28 julho 2009

... procura
um poema,
encontra muitos,
não se agrada de nenhum.
As montanhas lhe vêm à mente,
mente pra si mesmo
pra não sentir
o poder da queda,
a força da pancada
da tarde em seu fim,
perto da noite
dentro do próprio coração.
Lá onde o mundo gira
é bem longe,
e o livro
está em Paris.
Do mais o que o quintal tem,
um pé de jaca, algumas
laranjeiras, uma jabuticabeira
e cacau. É lindo o cacau,
mas o chocolate que se quer
é o suíço. Escurece
e a oficina mecânica fica linda
no escuro. Das unhas
a graxa não sai.
Acender uma
fogueira
dentro dos olhos
é o melhor
que se tem a fazer.

24 julho 2009

.


A gota,
a gota está
atravessada.
O mar, o mar está,
o mar está,
atravessado.
O grão,
o chão também,
o grão e o chão, o grão está
atravessado.
O sol, o sol está
e o universo, o universo,
o universo está,
está
atravessado.
A mão, a mão está, a mão e o pé,
a mão e o pé
estão atravessados.
O coração,
e o que nele há,
tudo está
atravessado. Nada sobra,
ninguem sabe,
só o coração,
só ele sabe
que está
atravessado.


.

22 julho 2009

Ao se falar em Brasil
nao se imagina o Espírito Santo.
Quando se diz Estados Unidos
não se pensa em Kentuchy. Mas o lugar,
o lugar mais, é onde há a casa.

Uma palavra aberta
esparrama navios no porto.
Certas dores se tem, só por viver,
mesmo em dias derramados de azuis.

Tremor de água fria,
tremor de querer ser feliz,
desperta num segundo a vida.
O que era importante deixa de ser.
Um poema é só uma virgula.

O que se diz,
se diz,
palavra escrita a giz,
um leve contentamento.

21 julho 2009

Quando se encontra
a palavra certa
sobe-se uma montanha. Mas,
de lá se avista
a feiúra da frase.


Já se é tanta coisa, e a vida
é escrita em tantos papéis.
Poeta não,
basta o revés.


A vida despagina
outros livros não escritos, sopra
poeiras sobre a flor,
e é isso um poema.
A flor espera a chuva.


O que se diz,
se diz
sem efeito duradouro,
um leve contentamento.

20 julho 2009

Entardecente é a música,
a mãe que diz,
vá meu filho, vá. Se
não der certo,
você volta.


O que se tira, e se retira
do fundo do poço é agua.
Pode também ser mágoa,
ou outra primavera.


A estrada na foto
é ainda mais nostálgica.
Congela a hora
na dor mais aguda.
Só é possivel ir.


O que se diz,
se diz
pelo engano de dizer algo,
um leve contentamento.

19 julho 2009

Um choro ou
um cachorro
são dobras
do mesmo papel
onde está escrito amor.



Repartir
a saudade em pedaços
é parte da receita.
O resto eu esqueci.



Onde os olhos se perdem
é o horizonte.
Olhares perdidos no entanto
não amassam o pão.
Talvez encontrem ovnis.



O que se diz,
se diz
pelo sabor da pronúncia,
um leve contentamento.

16 julho 2009

.

Uma voz longe canta uma despedida num jardim:
me aquieto num canto.



A sala, a orquídea sozinha de tão linda faz a casa:
fria, fria.



Um raio atravessado de lua pela janela me esvoaça de saudades:
não consigo dormir.



Deparo-me cansado com o sol nas mãos, sem você:
amanhece.




.

15 julho 2009

Desajeitadamente procuro chamar sua atenção:
me deleto.



Nas telas por trás dos meus olhos a cena clichê:
o mesmo amor.



Redobro palavras em e-poemas nas paredes:
você não me lê.



Quando você me enxerga com um canto de olho pergunto:
seu olhar me cria ou me revela a mim mesmo.

14 julho 2009

Debruço os olhos sobre lembranças:
uma única cor, blue.



Imagino seu sorriso diante daqueles desenhos na tv:
fico fora do ar.



Me caem pensamentos sobre o seu corpo no chuveiro:
me torno aguado.



Já vivo alegre, mas o olho no seu retrato me revive triste:
ne me quitte pas.

13 julho 2009

Olho para você e penso:
meu Deus!



Reparo a enorme distância entre nós:
viajo.



Encontro ruas e ruas em seus poucos olhares:
me perco.



Seus lábios serão asas:
me sinto um zé bird.

12 julho 2009

Busco poesia, quero crer,
encho,
pretendo encher
meus dias de... podem ser lindos,

campos.

Não tem nada que me fascina mais
do que estradas. Não chegar,
ir

e pensar, sentir,
olhar os campos, o descampado, a plantação,
viver a ilusão de dar todos os passos
e fazer todos os caminhos. Nada
melhor do que esta
evasão de si mesmo levando-se em asas,

as mesmas que cansadas
não me deixarão cair senão
em mim mesmo.

O prazer de viver é,
publicar livros de poemas não. Me sugerem,
nem pensar,

só me darão trabalho, e o incômodo
de vê-los empilhados, o constrangimento
de dá-los aos amigos. Que é isso,

fazer isso com a poesia, de jeito nenhum,
poeta não sou mesmo.
O tamanho das asas
é suficiente para voos sobre lindas montanhas
e para o avistamento das estradas,
inclusive daquelas
que não vou fazer.

Sorrisos importam.
Escrever será somente a saliva invisivel
que escorre no canto da boca
enquanto se fala
ou gotículas de hálito que voam.
A mão traça poemas
quando dança no ar com uma xícara de café.

11 julho 2009

Localizar palavras viajantes,
na velha casa de janelas altas
é estranha tarefa agora, jogo serio.

Sombras de um cão atravessam o vidro
e se projetam sobre meu coração.
Movo-me de lugar. A sombra pega
no meu pé.

Uma incomum e benéfica presença no vitral
entrelaça corpos e sonos nos quartos,
vários sonos, os meus inclusive,
aqueles que ainda hoje vou dormir.

A volta da sala, a curva da escada
coloca-me ao telefone
por onde ouço uivos, longe,
talvez onde o que se quebra
seja exatamente o que
se hesita em quebrar: o verso.

O que foi deixado para trás,
na casa forma paredes e rachaduras,
belos quadros, retratos
que escondem o endereço
das verdadeiras palavras,
as que viajaram. Faz tempo.

No quarto de costura, atrás, uma luz de prata
desfia um suprimento de sedas,
pensamentos lentos, lã, aconchego
com muitas letras, de alguem
que me deseja encontrar. Acho

que uma rosa no jardim cheio de matos
anda derramando seu perfume, me embriago,
na ponta de um lápis torto
por onde seguem poemas cambaleantes.
Não passei pela cozinha ainda, mas, por agora,
boa noite. (O relógio canta onze horas).

10 julho 2009

Há um assim,
e assim,
e depois outro
desejo de distinguir o mundo,
tomar-lhe a casca
e descobrir seus gomos...

não os sabores. Estes se sabe
a cada hora,
e os odores a cada instante.

Há um assim,
e assim, e depois
outro tempo.
O de agora aponta pra setembro,
no Espírito santo,
os dias de azul mais bonito,
perto do mar. Logo ali,
pula um e chega. O amor,

a vida que vivo, frágil
flor do desejo, saboroso
fruto do tempo,
desde ontem até amanhã,
tanto faz para o universo.

Ele segue
em suas imensidões. Vejo,
antevejo, beijo o ar e sinto, beija-flor
que me anuncia: vem setembro.

Teimo então,
digo não ao que sou,
digo sim ao que quero ser,
mais, um pouco mais do que
a junção de certas poeiras do universo:

ver o verso da luz mais bonita
no Espírito Santo,
a de setembro. Eu retrato

a estepe, disse
Anton Tchéchov. Eu...

sei lá, eu...

eu criei essa fantasia
de esperar

setembro.

08 julho 2009

Reconcebo-me,
assim como vês.
Penso, imprenso-me, imprimo-me.
Me lês?

Apraz-me essas asas que nao cessam,
movimentos em danças de ar, poemas.
Assim como vês,

passa o mundo,
passa por mim como agulha
e me costura
por dentro, na lapela, onde fico
sobre o coração (de Deus?)

Refunde-se no gozo da escrita
a nave com o planeta,
surge um gameta
e me faço eu,
eu, insignificante fogo de sangue
no meio das estrelas. Tu
me gostas assim, não é mesmo?

Quando me fecundo asas num poema vagabundo, o útero
é o instante. A cada um,

no entanto, me faleço antes
com todas as tristezas e lutos. Então me nasço
e tudo vira. Pergunto-me
se estou te amando novamente.

Da barreira sobre o rio me lanço
com as asas fechadas,
por brincadeira,

e tu vais comigo.
Um pulo, o mergulho,
a água se esparramando.
Haverá de ser assim
viver...

Haverá de ser...

É festa? Claro,

é. Só não sei se o universo sabe
que a minha vida é a festa dele.
Bem, no mínimo tem que ser a minha também.

06 julho 2009

Se há poeta,
por aqui é que não há. Andam
essas palavras,
tem passos em seus pedaços,
Roland Barthes não viu.

Me esbarro na corrida dos meninos
soltando suas arraias
nos terrenos baldios.

Se há não vejo,
o que escorre desses dedos,
corre desengonçado, corre,
voa, nada, peixe que não serve para aquário,
nada. O papel
foi picado e me alegro em jogá-lo pro ar. Talvez
um gozo, um olho, um modo de olhar,

só o olhar pode parar
o mundo, o universo, o tempo.

Se há,
é um reverso
o que se levanta na estrada
a cada passo. O que se levanta
e não se vê, atrás dos passos, a poeira,
o que gruda nas sandálias,
mesmo depois de sacudidas. O que escorre,
destilado da vida em cada bago
que se pisa, caminho que pode fazer o vinho
de melhor sabor. Pode. Não há
garantias.

Se
o labirinto da mente
pocou o sol em dois,
agora sou hóspede
num mundo que orbita estrelas binárias.

Ah, o quê?, tu te confundes?,
é que as palavras
as vezes,
pastilhas fortes, são de hortelã,
na boca que espera
um beijo. São outras coisas ainda, as palavras,
muitas outras,
que não posso dizer, por incompetência,
não sei pescar. Pesco.
As vezes pego um lambarí, uma piaba.

Há uma linha prateada na piaba. Do
início ao fim. Um
pássaro de vinho sobrevoando um coração.
Um beijo. Tchau.

03 julho 2009

Ah, o que me consterna...
não sei, não sei se digo,
se sei dizer...
apesar de estranho,
digo: é
no chão que se ondula em campinas,
terra arada para plantar milho,
ou capim,
ou feijão,
naquela pedra perdida,
ali,
jogada sem destino,
parada, parada,
com marcas de pancadas
do arado,
...é nela que me consterno.
Pedra sem nada,
sem história nenhuma,
sem valor, sem mão que a tome
para ser pedra onde se lava roupa,
pedra de esfregar sujeira
no riacho perto,
e a torne lisa. Pedra
que ninguem toma
pra calçar caminho
ou para decorar jardim.
Longe da casa que está
não vale a pena ser levada.
Pedra feia, pedra pedra,
bonita assim, fica,
a pedra abandonada. Pedra
parte coberta,
parte aberta para o meu olhar
que desce sobre a paisagem
e nela se esbarra... se empedra
de uma ternura descabida. A vida,
o céu se dobra no baque do olhar
na pedra, em luzes
da tarde. Luz amarela
que anuncia um vento fino,
soprador de arrepios,
quase medo, o destino. Pedra.

02 julho 2009

Tornar luzidio o poema ao amanhecer,
um poema espelho novo pra se ver
por dentro.
Deixar que o levante defina no chão
a sombra da casa em que se vive,
os rastros dos passos passados,
passos mal dados até, muitos, e...
sorrir, rir da beleza do caminho,
ouro de viver.
Recolher as cinzas dos porões do navio,
velho vapor por onde se vai
ao largo, aos horizontes azuis,
novas terras de lutas e trabalhos.
Soprar de novo as brasas
do sol,
estrela feita de gritos,
acreditar que rebeldia não é pecado
e pensar o dia todo bom,
herança mais valiosa.
Esperar o café com a amiga que volta
em pleno meio da tarde.

30 junho 2009

(encerrando estes poemetos de estrada)

O escuro
do universo
pinta estrelas

na noite da estrada.

Há nas cidades
por onde se passa,
em cada lâmpada que pisca,
uma esperança

de uma voz que me chame

e me retire da garganta

o nó. Quem sabe

o que se ilumina no céu
não se ilumine também,
abundância de estrelas felizes,

na estrada que me corta.

***

A madrugada
me ultrapassou,
um fantasma,

e me acordou.

Acolhi com mãos de susto
o coração acelerado

e pensei no sol,

órquídea amarela,
que demora. A viagem

pode ser a poesia

ou a água de pedra
que abrirá a manhã
em rumores de pequenos
filetes formando riachos.

***


Olhar, olhar,
olhar, em silêncio
andar, não me canso de olhar.

Olhar é bom

mais do que falar,
...e cantar.
Por isso ando por esta estrada,

talvez,

para olhar,



olhar. Meu olhar,


a unica coisa em mim que ficará
a cada dia mais intenso até...

até se apagar... como um sol

andar, amanhece
nessa estrada. O que todos fazemos


são esgarçados sonhos de um lugar no mundo.

29 junho 2009

O que vale
e o que não. Os dias

passados coabitam com os futuros
na estrada. De surdina
aquela lembrança e o anseio
de amanhã
se combinam. O dia

paralisa-se numa dor, um vazio de dor,
um buraco onde havia uma. A alma

como uma casa que passa,
fica longe.

O vento corta o pensamento,

um que fica,
outro
que vai.

28 junho 2009

Paro na estrada,
escrevo luz no bloco de notas
com os fios
dos teus olhos
e amor
com as linhas da tua voz.

Evoco

o trinado de um pássaro sozinho na cerca ao lado.
Lindo pássaro que não me atende.
Ele não canta, me olha, penso, me vê escrever, quero que me veja,
mas ele não me vê, só enxerga o céu e as campinas além de mim.

Na ocasião apoesio-me dos horizontes

... e sigo.

O que canta a estrada, canta bem alto
give-me strength.

27 junho 2009

Passos dou,
umas vezes,


sem querer ir.


Vou...

e nessas vezes vou
para não ouvir
a música
que canta uma saudade,
aquela,
exatamente aquela
que não sei explicar.


Na estrada,
ainda bem,


encontrarei com o sol


mais cedo ou mais tarde,
e serei certo de um dia...
Agora,
nessa tarde com chuva
só o barulho da estrada
ouço. Sei,

sim,

sei,



o acaso da estrada



é uma das riquezas
de quem vai.
Ouço crossroads,
olho o cenário
e insisto,

sim,

insisto nos passos.

A cada dia
a estrada fica mais...
mais...
sei lá. Mais bonita,


apesar.


Mas tanto quanto ela
a cada reta, a cada curva,
acho que se embeleza algo em mim
que ainda não sei encontrar.

26 junho 2009

Ouço san francisco bay blues


e admito:



é,



sim,
é verdade,


tenho uma estrada
dentro de mim.

24 junho 2009

(depois do romance japonês)

Os dias seguem rotas curvas.
Caravanas pelas janelas
atravessam o olhar de quem volta

por uma rua tortuosa.
Nela um velho monastério
onde se confecciona instantes

com fios de seda, ao som de sinos.
A boca seca ainda umidece
a pronúncia do seu nome

mesmo quando não se tem mais certeza.
O risco neste mapa é vermelho,
sol escorrido, testemunha

de passos de amor. Os dias
desenham linhas no centro do peito,
desejos de refazer o jardim.

22 junho 2009

(lendo um romance japonês)

O que se escreve fica no lugar de...
uma pedra no lugar do sangue,
viagem no lugar do amor,

templo no lugar do êxtase.
Um lugar no lugar do outro.
Um aceno no lugar do abraço,

deserto no lugar do vale,
carcaça de camelo no lugar do oasis.
Um sino no lugar do beijo,

quadro no lugar do sol,
retrato no lugar do sorriso.
O que se escreve mancha

outro mundo nas cavas,
nos vagos recintos, onde
o que já é pouco se vai, e se esvai.

20 junho 2009

(lendo um romance japonês)

Um leve sono, um cochilo com a cabeça
encostada no vidro, na janela, na paisagem.
Passa, o que passa? Acorda-se por tímida luz,

mesmo que caia a noite. A vida. O vento frio tocando
o vagão vazio, um coração cheio de jazz, uma cadeira
a girar. O encontro será lindo. Um olhar

sobre a paisagem é moeda de ouro que se lança ao ar
sem usura. Só a poesia sabe, mas guarda segredo
das tristezas. O que fala é o livro, beleza e tristeza. Sinos.

Não mais amar assim. Amar sem resistir, ou, desistir.
Um desejo puro que não faça sofrer, um desejo
sujo de amor que se quer reviver. Só ver, basta.

Não. Revira-se em movimento um parágrafo,
o coração. O coração num parágrafo, preso.
A leitura não chegará ao fim antes da última estação.

19 junho 2009

(lendo um romance japonês)

O dedilhar confuso destas contas das palavras
faz escorrer oliginoso e ordinario perfume,
de paisagem em paisagem, viagem de incerto rumo

seja para Kyoto ou no Estado do Espírito santo.
O que se é nesta palha página, o fogo ou a fuligem
na casa ao longe que se avista. O amor

seria um modo de dizer que o livro tem todas
as páginas. Nada se perdeu. Tudo se leu. Nada.
A vida pode ser bonita e escrita na primavera. Um modo

de dizer convence-nos mais do que outros. Nuvens.
A ameixeira floriu, Deus! e a montanha eleva-se a mesma
desde os olhos do velho imigrante que a seus pés rezou.

15 junho 2009

(lendo um romance japonês)

No trem o tempo. O vagão vago, na janela
o olho vazado. Uma volta, uma ida
a paisagem que pesa de invernos e passados.

O livro na mão, o encanto, uma história,
a vida, a viagem. Na verdade a verdade
é a dor que inventa um sentido.

Passam, pesam, pesados fardos, olhares de desejos
que não se tornaram visão. Os sinos, sinos ao fim,
a cada ano é o que resta, sombras de esperas,

felicidades que não chegam. Uma, algumas.
Não basta. Versos são vagões que se vão num trem
que segue e leva, leva ou traz... uma história.

Não diz good-bye o que o coração carrega.
Sempre pesa, de um modo ou de outro a lembrança.
Afunda o verso no tempo, é fundo o que doi.

Por isso os olhos pela janela se perdem.
As paisagens: são gostos pessoais
como o amor que se tem, que se teve,

que se quer reviver. Rever as paisagens
da janela do trem, do vagão panorâmico
reforça o amor, renova a dor.

Talvez parar na próxima estação,
tomar a volta e fazer a ida para a aceitação,
o amor, ah o amor, não se revive.

Outros amores vem. E se misturam com os primeiros,
com os dias terceiros, dias de adeus. Segundo
é quem ama, o primeiro é sempre quem se ama.

Sinos, vozes sem sentimentos. De que adianta
ouví-los. Os ouvidos sofrem o repique na mente.
Recolher versos, acolher uma certa poesia,

a sorte. Se boa, se não. Mas. Nas páginas
sempre são incompletos aqueles poemas.
A vida chega logo na estação de destino.
Estive vendo uns vídeos
com novos autores da literatura nacional.
Me bateu
assim
um sentimento que eu não esperava.

Fui, ao invés de motivado,

demotivado

por eles mesmos para ler seus livros.
Alguns eu até ja tinha lido. (E me perguntava
o motivo de não ter gostado da leitura.

Forcei-me

para encontrar gosto, afinal, são os novos
autores)

Então, eu que acabara de ler
uma seleção de poemas
de poetas chineses contemporâneos,
voltei à literatura do oriente.

Leio um romance japonês.

(os poemetos desse não-poeta
que virão a seguir são decorrentes
do contato com esse livro.

É um novo exercício. Ficarei
zen? rsrsrs)

13 junho 2009

(avulsos)

...outras vozes
exortam:

salmodie.

Reparo as voltas da lingua
para salmodiar...

não salmodio. Mas me ponho a andar.



...novas vozes
exortam:

dance.

Reparo o movimento dos pés
para dançar...

não danço. Mas me ponho a cantar.



...mais fortes vozes
exortam:

ande.

Reparo os caminhos que me apontam
para os pés...

não ando. Me ponho a compor os próprios salmos.

10 junho 2009

(avulsos)

Não,

esta cara não é minha.

Os traços que perfilo
são caminhos.
Este rosto não me cabe.

O que faço...
bem o que faço... se faço,
é um pequeno esforço,

um jogo
preguiçoso.

Quebro as pautas,
faço versos dos sintomas,
compenso-me das linhas da mão
que me derrubaram do destino.

É uma espécie de síndrome normal,
algo que me talha o rosto,

e me define assim.

Tenho cá minha beleza,

olha,

este rosto que me trazes
não me cabe, por favor.

09 junho 2009

(avulsos)

Lí,
salvei tuas palavras
enquanto ouvia uma música
triste. Saí.

Juntei
o que disseste e segui
para a rodoviária
sentindo a alça da mochila
machucando um ponto
nas costas, no ombro
onde carreguei
no passado
coisas tão lindas
que perdi. Acho que perdi.

Seguí,
encontrei um sentido
nas tuas palavras. Inventei

um poema em três rosas amarelas.
Uma eu levo, é tua, outra eu fixei
na lapela do meu casado cinza
e a outra... a outra eu joguei bem alto,
o mais alto
que eu consegui.

Tu me vês? Corro para te abraçar.