05 maio 2008

Destempero de quietude mineral

O tempo lento se ia, escorria,
vazio como se voltasse
e me causava na sombra da casa
e ao mundo que me cercava
um destempero de quietude mineral.
O sol queimava tudo naquele janeiro e meio dia;
o infinito céu variava, febril, de tanto azul;
o calor, o refrigério da sombra, o silêncio
me hipnotizavam com o prazer de não sentir
necessidade de gesto, nem de palavra, nenhuma.
Só havia, absoluta, libertadora, uma realidade
como uma imensa e transparente nave espacial
sobre as pessoas, as galinhas, o curral, o pomar
e quebrava em refração a luz como a água
quebra o raio do sol numa prateada bacia.
Ah! Uma única coisa era imune e rompia
com a aquela sedutora e profunda imobilidade.
Foi nele que me agarrei com um canto de olho,
desesperado, afundando no brilhante lago.
Ele me salvou. Um gato... que se lambia.

12 comentários:

Anônimo disse...

É desafiador esse "destempero". O torpor afunda o ser na irrealidade do real. E há a aventura de se embarcar para outro mundo, outro planeta, numa "nave espacial"...É a liberdade. Mas, há um perigo nela. A realidade é aqui. E o gato faz o gesto, gratuito, existencial, que expressa a natureza profunda dele: ser gato.
Percebeu que estou filosofando, não? rs
Mas, esse gato é real, e torna tudo "real", sendo gato e se movendo num espaço físico, no gesto atávico do felino.Ele realiza um chamado: foi uma salvação, mesmo!
Nossa! Vai supor-me doida! rs
Abraço para você.
Dora Vilela.

Vanessa Leonardi disse...

adorei
acrescenta !
Vai pro meu varal.
;)
.

lula eurico disse...

"Gato que brincas na rua
como se fosse na cama
invejo a sorte que é tua
porque nem sorte chama..."

Fernando Pessoa tb viu o Gato, mestre Dauri, e, no gato, um resgate. Um certo Ortega y Gasset nos apontava a necessidade de olharmos para as minudências em nosso derredor, a circum-stantia, que nos trazem de volta ao mundo imediato, tal como encontro aqui nesse Gato.

Muito fecunda, muito fecunda a Poesia.
Ave, Poeta!

Anônimo disse...

narrativa densa, envolvente e de convidar a reler. belíssimo. abraços.

Anônimo disse...

Darli, tenho vindo sempre e sempre me encantando. Mas infelizmente não sei comentar poesia. Sei sentir, sei entrar nela e permitir que ela entre em mim. Como agora, aqui. Onde seu poema me traz referências da velha "Cidadezinha qualquer", ao mesmo tempo em que me faz pensar que nem sempre há (ou não enxergamos) gatos a salvar o nosso olhar!
Beijo, poeta!

Mike disse...

Nostálgico...
... o menino inebriado de seu mundo que se perde nas lembranças do homem maduro. Uma realidade libertadora que não mais se faz presente e quando recordada traz novamente beleza e encanto. Porém esse menino cada vez mais se perde e se afoga no lago...
quanto ao gato, quase um deus da terra, mágico... que enfrenta seu medo de entrar no água para salvar o menino (qual é o maior desafio? perder-se nas águas? ou enfrentar seu medo de mergulhar?)

Jorge Elias disse...

O final inesperado!...
Esse gato ficou fantástico; um belo desfecho;um convite a seguir pensando no poema.
Dauri, como sei que gosta de poemas sintéticos, deixei um outro no Blog aguardando sua visita.

Um abraço,


Jorge Elias

L.C. Logan disse...

eu vivo o oposto, não aguento mais o movimento louco de tudo ao meu redor é como se eu girasse em torno de mim e dos outros e tudo girasse mais uma vez, eixos e mais eixos que não me deixam respirar... quero comprar exatamente aquilo que não me querem vender, tempo....

Grazi disse...

Não sei como a noção de tempo pode quietar alguém: ela me desespera! Mas adorei a sonoridade do texto e também a imagem do gato, levando-o de volta à inquietude.

Simone Iwasso disse...

curiosa figura felina, que quebra a combinação de destempero e quietude do poema. elemento chave. bem escolhido.

belo blog,
beijo
simone

Luciana Cecchini disse...

Fiquei inquieta aqui. Arrepiada com o tempo que não passa...

Bjo,

Luci:)))

fjunior disse...

não sei por conta de quê, mas este teu texto me despertou uma vontade imensa de fugir pra algum lugar bem tranquilo, sentir uma brisa soava batendo no rosto, varrendo o mato... um lugar de descanso...