30 maio 2008

Sombrinha vermelha

A moça bonita cansada Maria
comprou uma sombrinha vermelha.
Não era o vermelho que ela queria,
mas era o vermelho que mais se parecia
com a outra sombrinha do tempo passado,
tempo perdido, tempo que corria
quando era cheia de sonhos menina.
O doutor andou preocupado
com os gastos de energia.
Ele ganha muito dinheiro
mas muito mais ele queria.
Por isso ele desligou as luzes da própria vida
e tirou as lâmpadas e a tevê do quarto da Maria.
O Peão de rodeio, sem pai e sem mãe, vaqueiro,
juntava um dinheiro pra comprar uma casa.
Em maio no fim da tarde linda ele casaria.
Caiu do touro, campeão que seria,
levou uma pisada no peito, morreu.
... e a Maria? Sofreu, sofreu
... por um tempo,
depois encontrou outro rapaz e casou.
Um sujeito esquisito que lhe proibiu de sair
com a sombrinha vermelha.
Só com a amarela é que podia.
Assim tudo seguia...
Até...
Até...
Até que o mundo acabou.

29 maio 2008

Dança do fogo

Haverá para este caminho uma melodia
que me faça dar passos de dança?
Ando atravessado de incertas estradas
e desconfio sofro de encruzilhadas
que me enfraquecem as pernas e me derramam águas.
No que vou, no meu tropeço, ainda delineio um insano desejo,
uma esperança de outro ritmo, passos, danças.
Mas para os caminhos, cruzes,
para o titubeio e o vacilo, acho,
não haverá compasso melhor que o do ardor do fogo.
Esta é a dança: amar sem fingimento e seguir.
Deus, não me decepcione, mesmo sem fé ouso pedir,
não me deixe passar, não permita que minhas águas
se voltem ao mar sem umedecer uma semente qualquer.
Meu coração já foi pedra, seja fogo antes de ser ar.

26 maio 2008

Colhendo ostras

Homens e meninos nas pedras colhem ostras.
O sol se reparte em fracos reflexos de despedidas
nas ondas que se rebatem nos rochedos.
O cheiro da maresia,
a luz do fim do dia
marcam como um sino
o desate de certas amarras e cordas,
o acolhimento das aflições.

Se sobe ou desce a maré,
não importa, a hora será
a da Virgem Maria,
a dos afogados,
a da necessidade de tragos,
da dor silenciosa que se sofre sem alarde
e sem busca de remédio
... que não há.

Melhor calar,
um momento que seja,
sem que ninguém perceba,
e além das ostras, colher pensamentos,
aqueles que jamais, jamais
se tornarão palavras,
pois os oferecerei como alimento
para os anjos que me levam e trazem.

Desde os anos de menino
em caminhadas solitárias
buscando o ponto mais alto
para olhar o mar
acostumei meus anjos
a ouvir rosas fechadas,
palavras em botões.

25 maio 2008

Sílabas

Sinto-a
atravessada na garganta
amarga na língua
querendo tomar voz
dizer-se em palavras
e reclamar tua presença.
Meu orgulho em saliva ácida
quebra-a em sílabas
tentando impedir-me
de dizer o que sinto.

Sau

da

de.

Vou devagar
olhando a paisagem.
Já sei que teus caminhos
se vão bem longe dos meus.
Não há como te encontrar.
O entardecer me entristece
mas depois que aceito tua decisão
o adeus do dia em seu fim me acalma.
Meu olhar e o sol
se guardam para outro amanhecer.

23 maio 2008

Numa rajada de vento

Desejo um vermelho, um afogueado céu amanhecido
no horizonte dos caminhos que me levam embora,
numa aventura que começou de madrugada numa rajada de vento
quando a noite gemia em despedidas
com suas sombras filhas renegadas de sol.
Tomei um velho mapa apressado que de nada serviu
e com o dia bem alto já estou aqui, longe, não sei onde
num restaurante de beira de estrada,
triste, sentado na calçada, olhando as pessoas
sem saber a que horas chegará outro sopro de alegria
para me por de novo na sorte, no rumo, no destino.
A vida toda tem sido assim.
Sou levado por lufadas de alegria,
ventanias tão ligeiras que me levantam
como palha queimada e me deixam cair cinza.
Outros dias, os pesados, sem ventos,
se alongam por séculos mesmo que em poucas horas
e dominam meus pulmões, controlando o ar que respiro,
oprimindo os meus sonhos, alquebrando-me o andar.
Nem bruxedos, nem rezas, nem ervas, nem fármacos resolvem.
Só as lufadas de alegria, só elas me põem a andar bem.
Vou... mesmo sem rajadas, vou andando a pé.
... são três horas da tarde. Adeus.
Anoitecerei noutro lugar, mesmo que logo ali.
Fica com Deus.

19 maio 2008

Uma possibilidade

Um silêncio grande veio sobre mim
como um espírito ou algo assim que desce.
O que falo, quando falo, me custa,
estabeleço prejuízos irreparáveis,
gasto fortuna que não tenho.
Não há sabedoria, nem escuridão, só mudez.
Um anúncio me foi confiado,
mas recolho o impulso que me formaria a voz.
Guardo o ar que respiro para o que sinto,
algo como amar por amar e rir por viver.
Fez-me o silêncio um estranho,
mas me acostumo assim, outro feito de mim.
Fico fora de um eixo, alterado, crucificado sem dor,
grudado em lentidão nos instantes,
hipnotizado pelas insignificâncias do cotidiano.
Ao mesmo tempo vôo, pássaro ligeiro,
asas com penas levíssimas de prata,
para talvez pousar sobre o girassol de um dia diferente.
Me deixe assim, em silêncio, não me tente animar;
há uma possibilidade de não ser tristeza.

16 maio 2008

Foto de Adolfo Neto
Vitória

Porto.
Minha cidade é um porto.
Parte-se,
chega-se,
além das coisas que vão
e que vem nos porões.
Os navios,
tão lindos no porto,
nem parecem ter porões.
Parecem prenhes de poesias,
grandões,
prontos para dar a luz.

15 maio 2008

Jogado rio abaixo

Eu não tenho canoa;
agora eu não tenho.
Minha canoa foi despedaçada
e eu fui jogado rio abaixo.
Eu não me salvo
senão por um tronco de árvore.
Nele também uma cobra se vai.
(pelo menos por enquanto)

Deixo-a
num canto
(pelo menos por enquanto)
e danço
como se a vida
jamais
fosse acabar
comigo.

14 maio 2008

Aos pés da montanha

Está ali no norte a montanha de-onde-avisto-longe.
Cresce o trigo que plantei como um sonho
nos campos férteis que se estendem
no sopé da querida montanha.

Há na vila uma linda menina, minha noiva.
O oficial acordou-me, chamou-me
... e me mandou para a guerra.
Ao sul ficou a montanha

e os sonhos que avistei.

12 maio 2008

E eu respondi sou um olhar

Tu me perguntaste quem sou
e eu respondi sou um olhar.
Sem compreender perguntaste quem sou,
eu respondi um olhar de olhos sonolentos
que enxerga menos e vê o que não se vê.
Em maior inquietude quiseste saber quem sou.
Sou um olhar de olhos franzidos, fixos, perdidos,
que transita entre a altivez do vigia
e o sonho do aguardador de auroras.
Ainda com mais realce perguntaste quem sou,
eu como um menino em brincadeiras
ou um homem apaixonado em carinhos
disse que sou um olhar de olhos semiserrados
que procura uma poesia,
aquela que foge da luz em demasia,
se esconde dos olhos que espiam tudo
e se distancia do olhar capcioso, interesseiro,
apegado à superfície plana dos panos.
Tu me perguntaste e eu respondi sou um olhar
que escorrega pela tua pele, enxerga os poros, grãos de pólen
das flores que ainda vão crescer nos ocultos jardins
do teu veludo, caminho, porto.

Meu amigo, amiga,
se você se dispusesse a continuar escrevendo
depois do meu primeiro verso, de que modo
o faria?
Tu me perguntaste quem sou
e eu respondi sou um olhar.
...............................................

Obrigado.

10 maio 2008

O destilado frutal dos pensamentos

Ando dirigindo sem ouvir música.
Mãos no volante,
asas prontas pra me soltar e pensar.
Estou cansado dessa invasão,
sons que ouço como por feitiço,
radio, CDs, malditos, até sem gostar.
Sondo-me e quero ouvir a música
que se executa em mim enquanto penso.
Desato a andar por ai, a seguir meus pensamentos
pelas ruas e avenidas, pelas pontes da cidade enfeitiçada.
Eles falam, falam e enquanto falam, dançam.
Acreditem, meus pensamentos dançam.
Dançam por uma música que nao ouço.
Dançam e planejam vôos sobre os campos
e empreitadas no mar;
constroem estradas e escrevem histórias;
dançam bonito, num ritmo alegre, até feliz.
Mas a música que me compõe,
a música do meu pó e do meu ar
dos meus oceanos e dos meus vulcões,
que faz dançar meus pensamentos
...não ouço.
Há uma esperança,
quero ver se encontro, depois da terceira ponte
no alto do monte, um pensamento mais forte,
uma emoção, um rompante, uma sacerdotisa
que me espete em circuncisão a língua
e exponha o rubedo, o silêncio da vida em sangue
e me permita desgrudar do céu-da-boca
o destilado frutal dos pensamentos,
a salmodia do meu próprio coração.

09 maio 2008

Abrir uma brecha

Quando eu te amo... já amei
e o amor... foi. Tu passaste e eu também.
Seres perecedouros, sem presente, presos numa interrupção;
um acidente entre mentes, entre tempos.
Voltarei a te amar, sempre, pois que sobrevivo quando amar.
Mas já não sou, fui, já não amo mais.
O amor... é outro. Amarei novamente.
O amor parece ser assim como o que escrevo aqui: gesto.
Movimento de mãos, pensamentos passageiros, olhares viajantes.
O jeito é inventar amor, criar amor, fazer um para cada momento,
e se alegrar e forçar a vida a abrir uma brecha cada vez maior
entre a estrela que nasceu e a que explodiu.
Forçar, forçar, forçar o absurdo, o milagre
entre o nada e o nada a mais

08 maio 2008

Se anda

Palavras
são marcas que ficaram
de passos que já vão longe
noutro caminho.
Não se faz poemas,
se anda.
... só isso.

05 maio 2008

Destempero de quietude mineral

O tempo lento se ia, escorria,
vazio como se voltasse
e me causava na sombra da casa
e ao mundo que me cercava
um destempero de quietude mineral.
O sol queimava tudo naquele janeiro e meio dia;
o infinito céu variava, febril, de tanto azul;
o calor, o refrigério da sombra, o silêncio
me hipnotizavam com o prazer de não sentir
necessidade de gesto, nem de palavra, nenhuma.
Só havia, absoluta, libertadora, uma realidade
como uma imensa e transparente nave espacial
sobre as pessoas, as galinhas, o curral, o pomar
e quebrava em refração a luz como a água
quebra o raio do sol numa prateada bacia.
Ah! Uma única coisa era imune e rompia
com a aquela sedutora e profunda imobilidade.
Foi nele que me agarrei com um canto de olho,
desesperado, afundando no brilhante lago.
Ele me salvou. Um gato... que se lambia.