30 abril 2008

Caminhos e escolhas

À tardinha quando a luz do sol vira tristeza
dei de cara com um passarinho,
um pequeno de peito amarelo,
parecia que ia falar... de tão perto.
Olhou-me pelos olhos adentro
e mais do que devia descobriu
o que eu não sei... ou o que sou.
Desviou o olhar e se foi em retirada.
Eu, cá, que fiquei, não compreendi
que sorte de amor ele me ia falar,
pois de amor só podia discorrer
um de peito amarelo, ave tão pequena,
que de resto, de resto, além das penas,
ele só era mesmo um coração a bater... ou a olhar.
Mas um outro de peito azul logo se aproximou
e me olhou chilreando o que compreendi
como se com voz acabasse de falar.
Chamou-me de tolo e me mandou escutar
os porcos que de fome grunhiam ao me redor.
Pensei, quer saber de uma coisa,
vou-me embora para o Wyoming.



Agarrada na garganta

Há uma palavra aqui
bem aqui,
agarrada na garganta.
Já falei o que penso
mas ela não saiu.
Já falei o que sinto
ela não saiu.
Já gritei e pigarreei,
nada aconteceu.
Já rezei um Pai-nosso
e ela nem se moveu.
Escrevi isto aqui
e ela nem se tocou.
Não me dói, nem me incomoda
só me provoca e me incita
a escrever outra palavra.
Mas outra agora é que não quero.
Se eu beber água ela vai ver...
Amanhã sem ninguém saber

vou mijá-la... e não direi
absolutamente nada.


Um fio de...

Estou com preguiça,
uma preguiça danada,
uma vontade de nada. Fazer?
Fazer o quê? eu não planto soja;
eu não planto coca; eu não planto cana.
Eu cato sementes na estrada do porto.
Mas ando pensando em plantar
uns pés de algodão.
Eu preciso de um fio.
Preciso fazer alguma coisa, eu sei.
Resistir e fazer é ser solidário,
é até ter prazer
com aqueles que ainda nascerão
depois que eu morrer.
Estou com preguiça,
uma preguiça danada,
uma vontade de nada. Fazer?
Fazer o quê? Acho que ainda acredito em saídas,
por isso essa idéia de plantar
uns pés algodão.
Eu só preciso de um fio.

28 abril 2008

... e quando digo

Sou infeliz.
Mas posso dizer,
escuta: Sou feliz.
E quando digo sou feliz,
sou feliz

Sou infeliz
pois há muita coisa ruim
por ali no mundo
e por aqui em mim.
Mas posso dizer,
escuta: Sou feliz.
E quando digo sou feliz,
sou feliz.

Sou infeliz
pois não sei bem ainda
ser feliz.
Mas posso dizer,
escuta: Sou feliz.
E quando digo sou feliz
estou compondo um poema
que nenhum infeliz sabe compor.

24 abril 2008

Fim do coração

Preciso construir uma estrada
bem larga
que vá do meio da testa
até o fim do coração.
O fim do coração fica logo ali
onde dói
virando à esquerda
depois do amor
que perdi.

22 abril 2008

Da mesma cor, outra dor

Será a cor a dor da flor
de se sentir só e viver tão pouco
para disfarçar e esconder a semente
dos devoradores de grãos?
A semente sim, parece, vive e geme sem medo
de cair na farra do vento e dançar na terra,
talvez lutar contra os escuros do chão
ou com eles tramar arranjos e barganhas
e partilhar segredos da vida e arcanos
até quando esgotada em orgasmos
rompida e livre das cascas
puder desaparecer no tempo
de uma outra flor da mesma cor,
outra dor.

18 abril 2008

Me alivio precariamente com olhares

Pelas aflições de saudades
embarco num navio qualquer,
velho, sem reparos, como um fugitivo.
O mar me força a dizer qualquer coisa
ou a cantar um hino doce à Mãe de Jesus,
Senhora de quem sai pra navegar.
O pior, meu amigo, acontece:
por não saber cantar, nem saber o que falar
ele me rejeita, me mareja, me salga,
me balança, me lança de novo na praia.
Recolho molhadas as aflições
aquelas que vou aprendendo a levar
e semeio, pelas trilhas da ilha,
aquelas que imagino sejam sementes,
embora não saiba de quê.
Assim mesmo semeio, amigo,
pois o gesto é arte de amar, talvez.
Com as outras vazo para o outro lado da ilha
e subo num ponto bem alto, arrastando-as,
e me alivio precariamente com olhares,
destes que a gente olha, olha, olha
sem saber para onde olhar.

17 abril 2008

Vazios cheios de azul

Tudo fique claro amigos:
o poema que virá amanhã ou depois
será uma sombra alongada na tarde,
lançada da minha disforme alma

que vazia se enxerga cara-cara com um forte sol
a me surpreender em fins de dia nublado,
a me encher de outros vazios,
mesmo que cheios de azul.

Minhas obscuridades, eu anseio,
pelo menos sejam projeções dos desejos,
ainda que feios,
... de poesia.

14 abril 2008

Nas margens do córrego ele se sentou...

Nos arredores do alambique velho
nos idos de 1972
no que restou da ponte de madeira,
naquele dia pesado,
ele se foi esconder.
Pedra e marreta seu coração
a bater. Reagir? Gesto inútil
a tocar a margem por ali
como um lambari branco,
rasgado pelo anzol na garganta. Pensava,
pensava, pensava sem querer lembrar
das crianças no primeiro entardecer sem mãe,
casa e coisas largadas; breve vida.
Vontades de cachaças sem querer beber.
Pela centésima vez ânsias,
perguntas, perguntas, muitas perguntas.
Tragar lágrimas era a resposta única.
As águas do córrego de nada sabiam e se iam
assim, como sempre, melancólicas, por entre os matos
e, quem haveria de saber, um outro universo no fundo.
... presa numa garrafa uma piaba se debatia.

11 abril 2008

Fragmentos apócrifos - doc. de Paris 110458

A dor entrou esperta
e emperrou todas as travas
de todas as portas.
Impediu-me de te encontrar
onde sempre te guardei no lado interior
onde agora dóis tu em mim.
Eu, eu fiquei preso fora
e tu presa com a dor dentro de mim.
Ah, quero viver o amor de outro jeito,
guardar-te longe da dor, do lado de fora,
a meio metro de distância, ou até onde vai
o calor do meu corpo... e te alcança.
Aprendi em Cafarnaum, é urgente viver:
o coração é o lugar da dor;
o lugar do amor é o calor
esse fora da gente ao redor
como os raios de um sol.

09 abril 2008

Uma lâmpada fluorescente quebrada

Fui marcado,
estou cicatrizado,
meu olhar ficou embaçado.
Vivi tantas coisas,

poucas coisas eu vi
preso nesses caminhos
que vão logo ali,
e já estão voltando.

Quando a máquina parou
o vento fez um movimento diferente
na árvore que na boca da noite avistei
pela vidraça embaçada do anatômico.

Parei e me admirei
de que meus olhos
fossem capazes de ver
algo novo.

Ouvi um barulho,
fui até a outra sala
e sobre o cadáver numa das mesas
uma lâmpada fluorescente quebrada.

07 abril 2008

Numa velha chevrolet

O tempo anda
e manda me seqüestrar.
Ao me levar
rindo... rindo
quase a zombar de mim
por não poder voltar
me mostra em flashes
prazeres que passaram lindos
quando menino
anos setenta
eu, meu pai, minha mãe, meus irmãos
numa velha chevrolet cabine dupla
numa longa estrada empoeirada
indo... indo...
tomar banho de mar.

05 abril 2008

Um copo d'água

Num canto qualquer da casa,
desacordada,
está a palavra alegria.
Uma outra circula com ares de dona,
inquieta, faminta, efêmera, lesiva.
Nem ouso dizer o nome,
senão ela cresce e me envenena.
Fico quieto no canto e observo-a.
Quando ela se assusta diante do espelho,
corro, tomo... e alegre levo
um copo d’água para a alegria.

02 abril 2008

Mistérios, idas e vidas

Andávamos em ruas abandonadas, ambos
procurando uma frase, uma pista, um sinal
que nos levasse à língua a doçura de um amor.
Tínhamos pouco orgulho, estima e já não sabíamos,
cada um no seu desatino, caminho melancólico,
senão forçar o gozo incompleto e dormir frustrados.
Uma saída seria procurar na cidade decadente
a resistência, outros territórios nos quais ainda
fosse permitido amar de modo novo, contudo amar.
Demo-nos de cara um com o outro, desconfiados,
diante de uma parede alta, sem portas e janelas
onde havia um lindo grafite em que um homem,
como se fosse uma mãe, tocava uma face febril,
delicadamente, com a lâmina lunar de uma faca, lembras?
Depois de tantas pessoas e noites em nossos dias
estamos a procurar juntos o amor como fio
para a trama louca de mistérios, idas e vidas
em sofrimentos de solidão a cada hora que se esvai...