28 julho 2011

Inesperado sol

73

Os meninos o acompanharam e Augusto não se incomodou, gostava de vê-los ali nos seus passos, como se fossem filhos, passos silenciosos, talvez também os meninos tivessem compreendido que a morte sempre vem com silêncios que se jogam sobre todos por um momento, os passos se cadenciavam, os silêncios vem e logo se vão, ocupam seus lugares sem muita demora os barulhos e vozes da vida, pegou o carro, os meninos subiram na carroceria e então soltaram as palavras e os risos, apesar de um tanto contidos, mas já se afastavam do peso da morte de dona Estelita, o poder da morte parecia se esvair naqueles sorrisos, naquelas palavras leves que trocavam sobre o carro, sobre dirigir, riam de qualquer coisa, de um balanço maior do carro que se dirigia para onde o padre estava, o padre entrou na boleia e também ele se ia em semelhanças com os meninos nos sentimentos que deixava à vista por entre as feiçoes e os modos, parecia aliviado de alguma dor, cantava baixinho outra música, queria Augusto sentir a mesma coisa, não sentia, não era luto o que o cobria, era a urgência de ir embora que dobrava-se sobre seus olhos com nuances de cinzas e fumaças.

30 abril 2011

Inesperado sol

72

Um ondulado toque de campainha, vento esfregando-se em algo de metal pendurado, avisava que o trem atravessaria um pequeno túnel, atravessaria uma pequena escuridão de alegria, de felicidade, de emoção, de sair de si, Estelita apoiou sua mão sobre aquela no seu ombro, o padre reergueu a coluna, levantou-se, o gerente se aproximava, Luzia e seu neto também, e outros, o padre saiu sem falar palavra alguma, padre Marcos? Luzia perguntou ao cruzar com ele no quarto aproximando-se da cama sem esperar resposta, certa da execução dos cuidados que se exigiam a partir daquele momento, ele respondeu sim e se foi pelo corredor, saiu para o quintal, andou por ali, tomou um cigarro, pôs nos lábios e fumou apressado fazendo um movimento de pássaro, erguendo a cabeça como se olhasse para o céu, como se procurasse frutas, para soltar a fumaça, depois saiu para a frente da casa, cumprimentando um, cumprimentando outro, e foi pedir ao gerente que o levasse de volta, tinha suas coisas também para arrumar, suas despedidas a fazer, uma conversa com o bispo que buscaria ainda para aquele dia, o céu carregava-se de nuvens que anunciavam chuva para o fim do dia, Dias veio correndo, disse que o padre esperasse um minutinho, a dona do bar ali por perto olhava o padre como se não olhasse, dividindo-se, o rubor do seu rosto era ainda mais forte, resignação de um lado, sonhos de amor de outro, tudo amarrado num olhar manso e simpático, seu marido, o Barroso, controlava-se de um ódio que fazia brilhar seus olhos franzidos, media cada passo do Dias, logo veio a avó Luzia e abençoou o padre com um longo e apertado abraço, te conheço Marcos, desde pequeno, te conheço, e como se falasse a um menino bateu-lhe com carinho a mão no rosto e disse, vai com Deus, vai com Deus, vou, respondeu sorrindo, sim, tenho certeza, vou com Ele, despediam-se os dois do padre.

27 abril 2011

Inesperado sol

71

Ao fim da música percebeu Estelita que lhe chamava a voz, aquela que vinha se pronunciando com ares de sabedoria, a voz que ela supos fosse a de Deus, mas não era aquela exatamente a de agora que dizia, Estelita, chamando-a quase com exageros de intimidade, havia alguma coisa nela, contudo, igual à voz de Deus, e de familiar também, ao mesmo tempo, era e não era aquela voz, tentava entender, mas se era assim familiar não seria a de Deus, Deus não se mostraria tão simples como um de casa, disse para si mesma, ou pensou, não conseguia distinguir bem, não separava a fala do pensamento, a viagem vinha influindo em alguma coisa em sua cabeça, sentiu vontade de tomar aquele chá em que misturava manjericão com algumas folhinhas de alecrim para reavivar a mente, Deus não seria assim tão comum, ele se manteria a uma distância, pensava numa distância sagrada, uma separação, algo como aquela entre o altar e o primeiro banco da igreja, e olhou, olhou e ao olhar procurando onde se avolumava aquela voz, se deu conta que todas as poltronas estavam ocupadas, não conhecia ninguém, mas sentia como se fossem todos conhecidos de longa data, como se houvessem glândulas e suores semelhantes a definir proximidades e parentescos,  a voz tinha cessado, Estelita olhou o rio e provocou uma conversa com um jovem ao lado que viajava quieto, com um certo ar de brabeza, e querendo ser simpática, ou tomada de maneiras de professora, disse, como é lindo este rio!, ele olhou-a espantado como se dissesse essa mulher está maluca, que rio que nada, senhora, falou revelando sua origem rural, o que vemos são cavalos pastando sobre uns morros que precisam ser roçados, tão cheios de mato estão que os pobres animais tem que andar muito pra comer o suficiente, se vê que tem chovido pouco por estas bandas, Estelita olhou de novo pela janela e viu o rio, lindo, o trem passava bem ao seu lado, lá se ia o rio, ainda mais largo naquele trecho,  tocando uns singelos e verdes sítios lá do outro lado, não sei como esse menino está vendo cavalos, pensou, pobre menino, Estelita, de novo, Estelita, agora ouvia aquele chamado ainda mais próximo, e antes que procurasse de onde vinha seu nome uma mão se estendeu por cima da poltrona,  tocando seu ombro, Estelita virou-se lentamente, sem susto, e viu aquela mão como se fosse uma luva de maciez, uma mão de menino numa voz de homem sobre seu ombro esquerdo, viu com cheiros, cheiro de pele conhecida, tão perto estava do seu rosto, meu Deus, tremia-se toda, meu Deus, repetia, falava sem falar, mas todos ouviam sua expressão meu Deus, e voltavam-se para ela, a mão, a mão, aquela mão, meu Deus, era seu filho, e ficou parada no sobressalto esperando a palavra mãe, e então responderia com toda a alegria e felicidade, meu filho, meu filho, meu filho, mas já não seria necessário dizer palavra alguma, bastaria virar-se e olhar seu rosto.

24 abril 2011

Inesperado sol

70

Era fraca a voz do padre no hoje é o dia das rosas que enfeitam formosas, era baixa, titubeante, como se negasse o que a canção afirmava acerca do dia, era bonita a sua voz contudo, tornando-se mais firme no ah que tristeza viver sem amor, ah que incertezas de amor nessas mãos, seu pé direito ora levantava-se nos dedos ora no calcanhar cadênciando-se na marcha-rancho, e ouvindo o padre cantar foram se retirando do quarto os que ali estavam, davam-lhe privacidade para a administração dos últimos sacramentos, a avó Luzia pedia a todos que deixassem os dois sozinhos, recolhia a xícara da mão do padre, deixava-a livre para os gestos que a oração iria requerer, os toques, pele sobre pele intermediada pelo óleo, corpo e corpo e espírito entre eles escorregando-se na testa, nas palmas das mãos, o Senhor venha em teu auxílio, perdoe os teus pecados, alivie tuas dores e sofrimentos e te conduza, alguém esbarrou-se por ali, Augustou deixou cair as chaves, o molho tilintou-se pelo chão, tinha ligeireza nos pés, Estelita nem havia percebido como voltara aquela esperteza que sempre lhe fora característica, ultimamente andavam as pernas tão fracas, pisava agora leve e ligeiro, firme, sem perder a elegância, ia pelo corredor do vagão como se por entre as fileiras de carteiras em sala de aula, da mesa ao fundo da sala, do fundo à mesa, à lousa, tantos nomes encravados nas madeiras, manchas de vidas, azuis, tantos meninos e meninas que por ali passaram, destinos desconhecidos, longe, por onde andam seus alunos?, homens e mulheres que um dia por aquelas carteiras passaram, uma aflição no rosto, olhava um, olhava outro, procurava, voltava, já estava ao lado da sua poltrona, percorrera vários vagões procurando pelo filho e, nada, sentou-se, ouvia a voz do padre, por que lembrava-se do padre agora?, gostava de cantar quando o padre vinha passar umas horas com o povo da vila, que filho Estelita? ressoava em sua mente aquela pergunta como se o padre estivesse ali na poltrona ao lado, não estava, até seria bom tê-lo por perto, como o padre não sabia do seu filho?, como?, devia contar-lhe, o padre guardaria o segredo, não era pecado o que diria, mas ainda assim segredo, não, não queria mais guardar segredo, que proclamassem para todos, guardaria somente o amor, o filho, seu filho, tivera um filho, seria bom cantar com o padre dia das rosas, o padre canta tão bem, poderia ter sido cantor, hoje é dia das rosas que enfeitam formosas, parecia ouvi-lo, o olhar pela janela pesava de saudades e de uma certa felicidade em cada recorte que o rio fazia na paisagem, por que o berço da flor vem do encanto de nós, que nascemos de nós e vivemos de amor.

21 abril 2011

Inesperado sol

69

O padre entrou no quarto, sentiu que ali o cheiro de ervas era mais forte, tudo estava no seu lugar, cada coisa no seu devido lugar, nunca tinha entrado naquele quarto, mas pelo que conhecia de dona Estelita e do restante da casa bem sabia que cada objeto, bem limpo, estaria onde deveria estar, e dentre as coisas limpas estava dona Estelita, ela mesma como uma peça daquele cenário, leve, elegante, fina, estirada sobre a cama, já como uma morta, meu Deus do céu, pensou o padre recriminando aquele pensamento de morte, mas seria melhor morrer mesmo do que ficar ali, um animalzinho embalsamado e seco como se desitratado pelas horas de meio-dia em dias de janeiro, o lençol de um azul macio levitava sobre a cama habitado somente por um manso sopro de vento, ondas brancas de calma e despedidas se aninhavam entre o colchão e o lençol em pequenos respiros, então ela respirou mais forte, tocada decerto pela voz firme e convicta do padre, queria que sua voz fosse afetuosa, calorosa, mas tinha saído mais firme do que calorosa, sua voz tornava-se bem marcada pelos sentimentos quando cantava, gostava de cantar, muitas vezes cantou com dona Estelita, formando com algumas pessoas à porta daquela casa um grupo de prosas e cantos, dona Estelita também cantava muito bem, ela gostava especialmente de Maysa, disse, oi Estelita, bem que eu estava com saudades, aqui estou, como você está?, e seguia pensando enquanto ia dizendo suas palavras introdutórias, enquanto vencia o constrangimento de não saber o que dizer, antes da administração do sacramento da unção, que pontes ó Deus, que pontes se estendiam por sobre os seus desfiladeiros e os dela de modo a tornar a conversa entre eles sempre tão agradável?, o cheiro lhe fazia bem, queria ir ao quintal num outro caminho, mas estava ali no quarto, e dona Estelita morria, a xícara também estava onde devia estar, gostava do cheiro de ervas, a xícara branca era ornada de finas e leves flores azuis e vermelhas, sobre ela o pires a impedir o chá de perder ainda mais rápido a quentura ideal, tomou a xícara e sentou-se ao lado da agonizante numa cadeira que alguém já havia providenciado, meu filho, padre, preciso falar do meu filho, disse sussurando dona Estelita, que filho Estelita, quer um pouquinho de chá?, oferecia carinho oferecendo o chá que ela não tomaria, você não tem filhos Estelita, meu filho, padre, preciso dizer, meu filho, vi suas mãos, não vi seu rosto, mas as mãos eu vi, Sim estelita, fale, eu escuto, meu filho, padre, meu filho está aqui no trem, que trem Estelita?, estamos aqui na sua casa, tentou dizer o padre, estamos viajando, respondeu Estelita, eu e o meu filho estamos no mesmo trem, padre, mas não encontro meu filho, acho que ele deve estar num outro vagão agora, sim Estelita, sim, disse o padre sem mais querer contrariá-la, descanse Estelita, descanse, agora vou ungi-la, obrigado pela unção, padre, mas cante, cante, vamos cantar... cantar?, perguntou admirado o padre, sim... cante... dia das rosas.

17 abril 2011

Inesperado sol

68


Por-se naqueles passos pela sala afora, pelo corredor no caminho do quarto onde estava dona Estelita esparramava pelo seu corpo a sensação de procurar com urgência um documento por entre papéis guardados e não encontrar, nâo encontrava o sentimento certo para aquele momento, procurava um que fosse norteador, muitos se aproximavam do coração, comprimiam-lhe as veias, a casa de dona Estelita cheirava a ervas, e a casa para onde mudaria?, tinha estado lá pra pensar, pequena casa na encosta do morro, cheirava a mofo, a poeira e a podres de madeira, cheiros que exalavam na solidão seus reclames, venha alguém, venha alguém, limparia tudo, queria aquela casa, não queria luxo, queria um lugar para viver sua solidão, onde pudesse se recolher depois da faina com peixes, tão pequena a casa, tão grande parecia na infância quando a vida sorria-lhe para além do que se vive, sorria-lhe no que a vida tem apenas naquele período, quando se vive sem se considerar a morte, vive-se a imortalidade, e agora, ao pensar na infância, tinha o sentimento religioso mais genuíno de imortalidade, nas brincadeiras, nas ingenuidades felizes de criança a vida não comporta fim, ela é, como Deus é, era alfazema? não pura, havia outro cheiro, manjericão talvez, ou alecrim, vinha aquela onda macia de cheiros da cozinha, ia pelo corredor, os retratos dependurados em parede branca recebiam-no com bons olhos, perdidos olhares de vozes sussurantes, distantes, e acima das portas, margeando o forro de madeira pintado de branco, um palmo ou mais abaixo, se ia como um caminho de fábulas uma faixa de tons bem claros de azul com uns arabescos em azul marinho e detalhes em tons róseos e verdes, sempre que visitava dona Estelita observava aquele requinte na casa envelhecida, sonhos de outros tempos, formosuras de vidas vividas em outras épocas, queria fazer outros caminhos, da sala pelo corredor para a cozinha, para a área dos fundos, para o quintal largo, fundo, fundo, quase uma chácara, queria andar por ali pelas sombras úmidas e agradáveis, onde o vento revirava-se em movimentos brandos conforme o bater de asas ou o canto de algum passarinho, era o que desejava, ouvir dona Estelita andando pelo quintal, e ao mesmo tempo procurar goiabas, pitangas, araçás, e falar, falar dos seus caminhos, da decisão tomada, da felicidade da nova vida que arriscaria viver, ouvir dela depois de longo silêncio, depois de um ou outro assunto desviante, de frutas oferecidas, toma padre, este araçá, vê, tão grande e cheiroso, quase do tamanho de uma goiaba, experimenta esta pinha, padre, vê aquele jambo branco que o senhor tanto gosta, e então, entre uma fruta e outra, como se ela fosse capaz de dizer coisas sem o uso das palavras, ouvir, ouvir dona Estelita dizer, teus passos serão abençoados em qualquer caminho, segue teu caminho, e o teu caminho, padre, é aquele para onde alumia a laterna que tens no coração, confia.

08 abril 2011

Inesperado sol

67

O ar bom resvalado no superfície macia da baía vinha-lhe às narinas como uma confirmação dos caminhos que devia seguir, caminhos, hodós, 'odós, a mente povoava-se de traços cruzados, idéias de outros tempos, vinha-lhe à mente as aulas de grego no seminário, hodós, as letras gregas tão bonitas, gostava de desenhá-las em seus cadernos, inventava palavras simplesmente trocando do português as letras por correspondentes do alfabeto grego, 'odós, caminho, jornada, o caminho seria o do mar, deixar o sacerdócio, limite que se oferece, que se entrega, que se dá zombeteiro, como a loucura se avizinha do artista, como a morte se avizinha de quem vive, a cada um o limite se entrega de um jeito, sem escapatória, não, não, não seria o limite do sacerdócio o seu abandono, não, qual seria?, não sabia, rebatia-se a si mesmo, a decisão, decidira, vinha de um bom tempo de muitos pensamentos e agora ela chegava, deixar o sacerdócio, deixar e tomar o caminho do mar, ser pescador, velho sonho, velho desejo, quem sabe até comprar um barco de pesca, contratar uns homens, ganhar a vida com o próprio negócio, beira de praia, não faz mal que se deixe, se o caminho da gente vai pro mar, cantava em pensamento, o olhar cadenciava-se aqui e ali pela estrada pelo tilintar das chaves nos silêncios, muitos olhares, de cada um ali, estavam lado a lado, mas emergiam do mar das vozes caladas em olhares, as vozes de cada um condensavam-se em olhares, o padre olhou o portão da velha siderúrgica e já se abandonava de pensar sua decisão, cansado de escrever as mesmas frases nos cadernos volumosos dos pensamentos, pronto, estava decidido, a guarita abandonada, a caixa d'água parecia ainda mais alta, a água mais abundante escorrendo, que desperdício!, mas que bonito!, o ar bom soprava um aroma azul de satisfação, de liberdade, de vida sem dor, sentiu-se leve, sentiu-se bem, como em viagem que se quer muito fazer, como dia de folga no verão, respirou fundo, queria parar ali e ir andando devagar, dono de si mesmo, nômade nos rumos, mas Dona Estelita o aguardava, sabia disso, sabia que ela o esperaria, conhecia de anos aquela boa mulher, exerceria com amor aquela visita, seria a sua despedida do ministério, era grato a Deus por isto, ressuscitaria com ela, se aqueles forem de fato seus últimos respiros ressuscitaria com ela, marcaria os sinais sagrados com a mão bem untada sobre sua fronte, em cada mão, nas conchas aveludadas de suas mãos, em gestos lentos, demorados de carinho, diria as palavras com carinho, ficaria possesso de ternura, ganhara isso da vida como padre, enternecia-se com os pobres, os doentes, as crianças, por esta santa unção o Senhor venha em seu auxílio, ficaria com ela no escuro até que fosse possível, acenderia a vela, seguraria a vela na sua mão, a vela brilharia para os dois, pavio miúdo para escuridão grande mas pavio acesso, não permitiria que se apagasse, apagaria a vela depois em silêncio, cruzaria aquelas mãos de mãe, mãe mesmo e apesar de não ter gerado filho, bondosas mãos em pouso de ave sobre o peito estático, sobre árvore despedida de folhas, sobre o coração pleno, parado, realizado, ungiria-se ao mesmo tempo do óleo do amor na decisão, teria a alma leve, os pés colocados nos passos de um tempo diferente, para o que der e vier, passos resgatados das inúmeras possibilidades deixadas para trás, por onde andaria agora se não tivesse tomado o caminho do seminário aquele dia?, passos como coisas guardadas que se redescobre novas, não faz mal que se deixe, se o caminho da gente vai para o amor.

03 abril 2011

Inesperado sol

66

Ser apenas um pescador, voltar para um destino será possível?, pensou o padre olhando longe, será possível retomar passos não dados?, a vida seria ir para o mar, e voltar quantos dias depois com o barco bem suprido de peixes, entrar pela baía feliz por voltar do mar, tudo, qualquer coisa vista como valor de vida, bom de viver, uma caneca de café, uma conversa no cais, descarregar os peixes cantarolando, receber do patrão um dinheiro e ir para casa na encosta do morro e olhar um pedaço do mar, o mesmo que o pai avistou, a mãe, ele menino antes de ir para o seminário, fazer uma prece simples, olhar aqueles retratos na parede, o olhar do pai, austero, nobre, a mãe, tristonha, meiga, rezar ao fim do dia uma única ave-maria, na hora triste, e nada mais, nenhum outro pensamento de Deus, sobre Deus, senão aquele que passava pela saudação do anjo a uma menina, como se as palavras não se separassem e formassem uma única e longa palavra dita de uma vez e pronto, a reza estaria feita, o dever cumprido, e se entregar à vida, jogar-se num sofá para ouvir Elis Regina na vitrola, voltar a agulha para o mesmo ponto do vinil e ouvir, tá na hora e no tempo, vamos lá que esse vento traz recado de partir, meneou a cabeça para dispersar os pensamentos sem convicção de querer esquecer o que pensava, beira de praia, não faz mal que se deixe, se o caminho da gente vai pro mar, cantou baixinho, os dois sem saber o que ele cantava se entreolharam, continuou, tanta praia deixando sem saber até quando, as chaves tilintando, já tinha decidido, só faltava decidir o dia, talvez agora, talvez a visita à dona Estelita fosse uma antecipação, a madurez do fruto, a decisão, se antecipavam os eventos, não tem mar que me espante, não tem não, anda, vem comigo que é tempo, vem depressa, cantou em voz mais elevada, o que você canta padre? perguntou Augusto, uma canção triste, respondeu e continuou, mas ainda assim é bom cantar, você conhece essa música? começa assim, ê, ô, tá na hora e no tempo.

30 março 2011

Inesperado sol

65

Lá do outro lado da baía, em ar de sol totalmente desimpedido, sobre o monte verde, branco como um anjo a plainar distraído sobre a terra e o mar, o Convento da Penha, e o olhar do padre que se levantou para lá era um olhar de quem queria estrada de beira de mar, passos em areias macias, cheiros silvestres e maresias, Augusto sentiu vontade de perguntar alguma coisa, não sabia o quê, aqueles desejos eram seus, talvez, o padre vencido pelos sacolejos voltou-se para a paisagem ainda com o livro aberto nas mãos, Augusto tentou descobrir que livro era aquele, fino para ser um livro de orações, manuseado tantas vezes que as tintas da capa marron já há muito haviam se dissolvido de letras em verniz para não ser um livro de reza das horas, e olhando para o outro lado da baía, mas como se no livro encontrasse aquelas palavras, o padre disse, "Senhora, cujo altar fica no promontório, rogai por todos os que estão no navio, os cuja faina tem a ver com peixe" e fechou-o com o dedo indicador marcando a página sob o ar de estranheza do Augusto, a reza era esquisita. Dias ia quieto, calado, pensativo, como se já tivesse dobrado sobre si as conclusões das vivências do último dia mas ainda não soubesse quem ser, o que ser, o que fazer no dia seguinte, o padre que já desistira de ler, já ia ficando tonto, disse, olhou para o exagero de chaves que penduradas da que estava na ignição, exatamente no momento em que Augusto vencendo o silêncio perguntou, o que padre? o que o senhor disse? as chaves pareciam tilintar anúncios, leve e suavemente, campainha de anúncios, nada amigo, repito aqui umas palavras ao ver o Convento da Penha, respondeu o padre ainda olhando as chaves, que exagero amigo!, por que tantas chaves, e tão velhas? riu um riso simpático, discreto, você concorre com São Pedro assim, e se sai vencedor!

23 março 2011

Inesperado sol

64

Um vento frio entrava pelo carro, nenhum dos dois se dispunha a levantar o vidro da janela, calados, cada um do seu lado, necessitavam daquele estímulo sobre a pele, o vento constante fazia-a eriçada, o olhar atento na estrada traçava na mente de cada um pensamentos assustados e mesclados de ternura, terno sentimento que se adquire quando se assiste a um drama, comiseração proveniente da cena, a quase morte de dona Estelita, o carro atravessou o filete d'água que na areia branca da estrada escorria da velha e grande caixa, lembrou-se do pássaro vermelho, a água espirrou-se para os lados em som agrádavel, memórias de pequenas viagens por estradas de chão em tempos de felicidade, tempos sempre curtos, filete como se fosse um córrego, mas não era, era água vazada, escorrida, procurando ela mesma ser alguma coisa entre o escorrer pela gravidade e a busca do mar, regato que avistou quando de sua chegada, passou então pela guarita e não viu ninguém, perguntou sobre o segurança, Dias respondeu que ninguém ocupava aquele lugar a um bom tempo, Augusto disse que havia um homem ali que o tinha recebido, sim, disse Dias, correu um boato de um novo gerente que estaria por chegar e alguém pode ter se colocado ali para esperar o senhor, mas ninguém recebe salário pra trabalho nenhum aqui, nem ninguém desempenha funções específicas, e estas chaves? perguntou Augusto, foi o rapaz da guarita quem me entregou estas chaves, e fez isso como se cumprisse ordem, não sei, respondeu Dias, não sei. Na volta, o padre sentado entre os dois na boléia perguntava uma coisa ou outra, mas a maior parte do tempo mantinha-se calado, lendo, ou tentando ler seu livro, um livro decerto já velho, capa dura marron brilhosa, e ao falar, falava com a boca torta, disse se explicando que um dente doía-lhe muito e um amigo dentista paroquiano tinha se dado à caridade de atendê-lo mesmo no domingo e que a boca, por isso, ainda estava anestesiada em sua metade esquerda, rezara a missa das seis da manhã suando de dores ao pronunciar as palavras sagradas, este é o meu corpo, este é o meu sangue, e a das nove, que começou por volta das dez, com a boca torta e com a sensação de babar, mas rezou, fazer o quê, as crianças riam, mas era mesmo a missa delas, e com crianças o riso sempre ajuda, falava o padre pondo a mão com um lenço sobre a boca e a voz pastosa saía entre o estranho e o solene.