31 janeiro 2010

O último porto do rio
36
Passo por letras alheias procurando, procurando, tu sabes, basta ver. Quando eu me for do Porto do Mar, o que não vai demorar, já terei o que não tive nem no Rio de Janeiro nem em Roma, soltei, o que se solta voa, e dessas coisas em voo, das suas penas caídas, palavras são aves, mesmo que aves d'argento, il silenzio è..., tanto quanto são variadas as pessoas assim as aves que lhe saem, fiz o meu nome, tive, assinei-me infeliz. Não no futuro no entanto, poderei nao ser, quem sabe serei outra pessoa. Para um infeliz ser feliz é preciso que ele se faça outra pessoa e isso eu ja não sei se consigo. Ou, por outra mão, a felicidade de um infeliz se fará pelo costume, sentir um cheiro por um tempo, virar hábito e não sentir mais, mesmo que o cheiro seja bem ruim. Mas, levarei comigo a possibilidade de me caber em minhas medidas, iludo-me, de um modo ou de outro, não me entendes bem, eu sei, mas sim, o que me mata me embalsama, deixa prá lá. Este teu olhar, este teu olhar me recordou neste momento minha mãe que falava assim, exatamente, tu não sabes ou sabes, falas pelo olhar, pelo menear da cabeça, no franzir dos olhos, no recolhimento ou na expansão de uma luz que brilha clamando o que não se sabe o quê para além do fundo dos olhos. Tu és morena, bem morena, ela branca, tu és mais corpulenta ela magra, magra, tu iletrada ela culta, mas o olhar... parecido. Falas tu poucas palavras, acredito não falas mais por concentrar-te nas tuas artes florais, mas ela, ela queria e não conseguia. Lembro quando tudo aconteceu.

Na verdade as cartas deste tal João Francisco me fazem falar em mim o que não podia ser escrito, o que se escreve marca, letras de ferro e fogo no couro, retomo, há uma mentira e uma verdade nisso tudo, mais, muito mais calo do que canto, esta música que ouves é o desafino das minhas horas, os meus anos ja se passaram. Peço-te hoje uma encomenda diferente, poderias confeccionar flores miudinhas, bem, bem miúdas, amarelinhas como calêndulas, pensamentos bem arranjadinhos, o que se carrega para os afazeres diários, a vida se compondo na repetição, quero oferecer à senhora tedesca que está montando casa ali defronte ao cais dos Jesuítas, perto da minha. Sei, ela as jogará fora, mas o que faço é apenas um pretexto de manifestar hospitalidade para aquela. Além do mais flores miudinhas são bonitas quando se juntam em ramalhete, vou gostar do buquê em minhas mãos andando pelas ruas, descendo a escadaria da Igreja de São Gonçalo, isto me será aprazível. Estranhas o termo, mas é isto, falei demais em felicidade, mais fácil é viver pequenos prazeres no seguir ordinario dos dias, e nisso não há novidade, assim, ao modo deste agrado, o prazer de estar aqui agora, presenciando o virar das cores, arames e tecidos em teus dedos demiurgos. Ah, me consolo. Mas.

Conto-te. Almoçávamos. O papai à cabeceira da mesa e todos bem comportados, cada um em seu devido lugar. Ela andava sonolenta, distraída, falava umas coisas interessantes, que eu não entendia, e meu pai, solene e austero sempre, em seus controles derrotado naquele dia, manifestava grande irritação com o que ela falava. Tu em tuas flores, me escuta, vais a igreja? Ah, sim, pertences a Confraria do Rosário, pois bem, entendes das histórias sagradas. Sabes bem que o pai de João Batista, emudeceu. As circunstâncias podem tirar a voz de um, de qualquer um, de muitos. Aconteceu, in quell'ora e ela nunca mais falou.

28 janeiro 2010

O último porto do rio
35

Chegamos ao cais dos pretos e os que estão no atracadouro param diante da barcaça admirados com o estranho passageiro índio entre nós. Explico, nada além disso, que está ferido, e que o levaremos para Porto do Rio onde as autoridades saberão o que fazer. Passo o olhar por todos os recantos, pelo espaço em frente às poucas casas, pelas portas e janelas procurando Maria Júlia. Imagino não encontrá-la ali, mas ainda assim sigo varrendo com os olhos cada viés de qualquer lugar aonde uma pessoa pudesse estar. Apresso os canoeiros para que voltemos ao rio, antes no entanto entro na venda, me encosto no balcão, peço uma dose de cachaça, menos pela vontade de beber do que pela necessidade de reerguer o ânimo, ou para me afastar das lembranças, e pergunto ao balconista sobre Maria Júlia, ele diz que ela não tem aparecido na venda e emenda a conversa indagando sobre o índio, repito o que já dissera, peço qualquer coisa que pudesse alimentar o índio, o balconista corta uma perna de linguiça seca, pendurada ali, parte um pão e coloca-a no meio e me entrega em pedaço de papel, agradeço e saio. Volto à barcaça e o mestre está oferecendo uma dose de vinho ao botocudo. Logo, adultos e crianças, homens e mulheres, os mais variados idiomas de espanto estão ali nos olhares perfilados no cais enlameado pela enchente. Partimos rio acima. Observo a perna do índio e pergunto ao canoeiro que fez o emplastro com fumo e folhas sobre a ferida e ele garante, Este selvagem logo estará bom, tem saúde de cavalo e a ferida não é grave. Olho para ele, não distinguo meus sentimentos, estou longe olhando para o João Pedro. Durante a noite os praças enterraram meus pais ali mesmo ao lado da casa numa pequena colina sobre a qual se estendia em balanços de indiferença e majestade uma jaqueira. Não exatamente embaixo da jaqueira, mas em frente, entre a casa e a enorme árvore. Enrolaram os corpos do chefe de policia e do alferes em capas de chuva, tomaram nossa carroça, colocaram os corpos sobre a carroça, e tive que ir acompanhado de uns praças pegar no pasto a parelha de mulas e atrelá-las. Ao amanhecer partiram, a carroça guinchando e dois cavalos encilhados, os dos finados, amarrados a ela como guardiões de retaguarda dos corpos. Um dos praças, aquele do olhar, voltou-se para mim e disse, Cuide da ferida do seu irmão e fiquem aqui até que alguém, uma autoridade, em alguns dias, apareça, e enquanto ia se retirando voltou e me disse, Faça duas cruzes e põe nos túmulos dos seus pais. O sol se levantava, nada respondi, meu senso se dividia entra as covas, a ferida na perna do João Pedro e o sol. Durante todo o dia o sol brilharia sobre as duas covas no pasto sobre a colina, eu pensava, mas à tarde, à tarde a sombra da jaqueira atingirá as duas covas. Ficamos na porta da casa olhando. João Pedro quis que eu providenciasse madeira para que ele fizesse as cruzes, eu não deixei, não queria pôr cruzes lá nas covas. Olhávamos para os dois montes de terra. O que ele pensava eu não sei. Não choramos senão, senão estas lágrimas que se condensam em apertados nós onde as raízes da dor e da força se entrelaçam. Mas a tarde vem, eu pensava, a tarde vem, e isso me apavorava. A sombra da jaqueira é muito fechada, nenhuma réstia de luz passa, à tarde, Deus!, à tarde, eu sabia, a sombra triste da árvore cobriria as covas. Durante todo o dia meu olhar se avizinhou dela, eu aferia e media aquela lôbrega sombra em seu inviolável encompridar-se na direção dos dois.

24 janeiro 2010

O último porto do rio
34

Existe um rio entre o olho e a carta, eu sei, e uma catraia, nenhum catraieiro, no barco atravesso sozinha, ou tento atravessar. Mas quando decido sei que vou por uma margem que abandonei no correr dos anos, ou no passar da vida. E quando leio, por este abandono de mim, ou pelo que perdi, ou na ilusao que me alimenta, sei, acrescento, somo, misturo-me. Jogam comigo quando colocam por debaixo da porta estas cartas um jogo sem regras, jogo-me nessas leituras e me apaixono. Se for do teu supor correto, dos teus baluartes, podes suprimir este apaixono-me, se sentires que este apaixono-me é palavra cedo demais, ao modo de acordar antes da hora, e perder. Mas deixemos isto de lado, por agora tenho outro caminho, vamos para o cais principal do porto ver a baleia que sobe pela baía.

Antes falo, pago-te para tecer estas flores que se juntarão a um corpo qualquer que desce à cova desnudo de ornamentação por conta da indigência. Não suporto. Um corpo tem que ter adornos, muitos, flores, folhagens de aromas, ou fitas, medalhas, cordões, rosários, crucifixos, tu me confecciona flores de tal jeito que quase não se distinguem das originais, a não ser pela ausência de perfumes, mas ainda assim lindas, e percebo, alteras as flores conforme os trechos que te pronuncio em minhas visitas, hoje noto, vai predominando em teus dedos estas pétalas que se vagueiam entre o azul, o vermelho e o roxo quaresma. O que fazes, sem ofender-te, não tenho outra intenção senão honrar-te, é arte, belle arti, mesmo que para indigentes finados. Logo que terminares estes ramalhetes leve-os sem demora à Confraria da Misericórdia, a próxima remessa doarei aos negros do Rosário. Deparei-me já em idas à Casa de Misericórdia, ali no campinho no cemitério da confraria, com restos de tuas artes junto aos ossos, covas abertas pelas enxurradas e pela maré, das flores perdurando os arames com seus volteios e pétalas de tecido. O cemitério tem que ser isolado, já se diz, no nível do mar não se pode enterrar ninguém, o sal queima os ossos, branqueia-os de uma luz quase sobrenatural. Muitos que passam por ai andam se desviando por caminhos mais longos.

Perdão, é que tive que responder à saudação do novo capitão do porto que passa apressado, bem, vamos, vamos ver a baleia que vem subindo, fato inusitado, uma baleia, a baleia entrou pela baía e vem subindo. Dizem não ser muito grande, mas vem festiva com a maré alta, como se quisesse aplauso pelos seus mergulhos e aparições na superfície. Grande multidão de povo já se junta pelas beiradas da ilha. Não devo ir?, me aconselhas?, vou sim e penso deverias ir também, e então poderíamos resolver pelo relato de vários olhos o que a baleia causou no Porto do Mar, a festa, o alvoroço, a mudança dos assuntos. O seu vômito não será um homem, Jonas, será o que vamos dizer, outros assuntos renovando-nos como um bom livro, as conversas insossas das horas já são derrubadas de suas bases por uma baleia desnorteada. E por falar falemos mais, fiquei sabendo, queres saber também?, acrescento, que o vômito cinzento da baleia, depois de muito tempo no mar e nas praias se transforma, âmbar, em delicioso perfume e infalível afrodisíaco, daquele tenho carências, dos franceses, deste não, me sobram precipitações, chuvas de. Deve-se, logicamente, a uma especial baleia a produção de tal regurgitamento, ou regurgitação, o que sugeres?, esse âmbar. Assim também será um poema, uma declaração em bela caligrafia numa carta, haverá alguém especial por detrás do âmbar das letras? Não, no caso das palavras parece-me que não.

23 janeiro 2010

O último porto do rio
33

A barcaça rio acima flui-se em enchentes de lembranças, volto ao meu pai, o retorno na contracorrente se favorece dos ocorridos, planos desfeitos, sonhos interrompidos. Recordo quando lhe ensinava à noite na sala, a lâmpada de óleo de baleia tremeluzindo, o que eu aprendia na escola, minha mão ainda não de todo flexível sobre a sua fazendo trilhas e rumos no caderno, amolecendo seus volteios, dando às letras sua características, apesar das inseguras e malfeitas formas. O mais velho não conseguia, restava para mim a tarefa, ainda que sabendo menos mais habilidade tinha para ensinar. Ganhei satisfação com a tarefa diária e com a rapidez com que ele aprendia. Ocorriam em nossa casa reuniões sempre muito protegidas por segredos, reuniam-se ali na mesma sala onde fazíamos nossos treinos com as palavras, vinham à cavalo, bem vestidos, homens de vários locais, nunca em noites claras de lua, alguns conhecidos, outros não, eu de esguela, orgulhoso, observava tudo quanto podia, mesmo que minha mãe me puxasse para a cozinha onde ela preparava bom café que na hora certa seria servido com pães e biscoitos de polvilho. Aqueles homens ali pareciam revestidos de grande importância e hoje sei que tinham-na de fato. O irmão mais velho, João Pedro, uns quinze anos, também se intrigava mas ficava na frente de casa, assoviando, pensativo, silencioso, com seu canivete trabalhando pequenos pedaços de madeira que depois jogava fora sem ter concluído nada. O pai oferecia a casa, mas não era o que mais falava, e bem ele disfarçava sua frágil capacidade para a leitura e a escrita. Nossa casa ficava no alto, escondida numa intercesão de duas montanhas a formar pequeno vale, a ela só se chegava pela frente, a vista linda, a terra boa, as noites sempre frias. Fiquei muito contente e orgulhoso numa ocasião, um dos mais lindos momentos da minha vida, quando testemunhei sua desenvoltura em ler a pedido daquele que presidia a reunião uma carta ou algo que se assemelhava. Felizes, se posso dizer assim, numa noite já fechada, mas não tarde, depois da jornada pesada com a lavoura, bem alimentados e limpos, fazíamos nossa aula quando entrou João Pedro espavorido avisando da chegada de uma milícia que se avistava já bem perto. O pai foi ao quarto e voltou, e determinou que ficássemos tranquilos. O chefe de polícia foi logo, sem licença, entrando na sala, seguiu-lhe o alferes. Houve ali uma conversa, os praças de linha lá fora no terreiro, a conversa se avolumou em razões, o meu pai indagando com que direito o senhor chefe de polícia invadia uma casa àquela hora, o chefe de polícia se referia a uma sociedade secreta que se reunia em nossa casa e ordenava a prisão do meu pai como o principal responsável. Não havia concordâncias nem entendimentos suficientes para que os eventos fossem por rumos de paz. Houve um tiroteio, lembro de ver meu pai já caído mas ainda atirando, gritando para corrermos e levarmos nossa mãe, o chefe de polícia, o alferes, cairam também. Quando, em minutos, capaz de enxergar melhor a cena, e já cercados pelos praças, o pai e a mãe naufragavam em mar de sangue. Finavam-se também ali o chefe de polícia e o alferes. Os praças assustados não sabiam o que fazer. Num impreciso tempo vi que a perna do João Pedro sangrava, puxei-o para a cozinha aos olhos complacentes de jovem praça que não fez outra coisa senão olhar-nos como que paralisado pela estupidez da cena. Dei-lhe água, lavei sua ferida, dei-lhe um pano para pôr sobre a ferida, ainda não havia tempo para chorar ou sentir qualquer coisa, apenas um frio enorme subia pelas tripas na direção do coração.

22 janeiro 2010

O último porto do rio
32

É um esfomeado o índio, não nos oferece nenhuma ameaça. Digo que o levarei as autoridades e elas se encarregarão de descer com ele ao Porto do Mar de onde deverão encaminhá-lo para a sua aldeia. Durante à noite os canoeiros querem mantê-lo amarrado e, por via das dúvidas, também concordo, não por achar que ele pudesse usar de violência para conosco, não me parecia, mas por que fugiria com certeza. Não permito, no entanto, nenhuma outra ação que pudesse infligir a ele algum outro sofrimento dentre os muitos que já tinha. Sua perna na medida do possível tinha sido cuidada. Um dos canoeiros, o mais velho, entendido em folhas e emplastros tinha feito o que lhe estava ao alcance com aguardente, folhas e fumo. No Porto do Rio seria melhor observado e talvez enviado para a Casa de Misericórdia no Porto do Mar. O mestre pelo que demonstra, além de observar tudo, não se envolve com a questão. Recosto-me cansado, a noite não me assusta. Os canoeiros cantam junto à uma pequena fogueira onde bebem e comem, e mais distantes, em cada extremidade de um triângulo equilátero estamos eu, o mestre, o índio; entre nós a mesma distância, a mesma proximidade, silêncios diferentes. De madrugada acordo, na fogueira somente umas brasas, o resto é cinza, quietude. A lanterna colocada sobre restos de paredes caídas ilumina de desolada luz a vida de cada um, os canoeiros adormecidos, o mestre no lado oposto ao que seria a torre lateral, seu ponto de observação do caminho para o cais, eu na ruína da torre e o índio no espaço mais aberto no centro do átrio. Logo que acordo nada vejo, mas discretamente vou percebendo que o mestre e o índio também estão acordados. A luz da madrugada me faz bem, levanto-me e desço ao cais, percebo que podemos voltar a navegar o rio, com cuidado, mas podemos. Tenho urgência de voltar, preciso procurar Maria Júlia. O mestre segue meus passos e sem que lhe dissesse uma palavra também entende que é hora de retornar ao trabalho, grita aos canoeiros e convoca-os. Ele por último vai buscar suas coisas, esperamos todos na barcaça, rápido ele retorna. Quando estamos prontos para subir o rio peço um minuto e volto às ruínas, lembro-me do que eu aprendera, um lugar santo sempre será um lugar santo. O motivo daquele meu repente estava no pedido que Maria Júlia me fizera. Volto, me ajoelho ali e rezo, na verdade nem rezo, benzo-me e fico em silêncio. Quando me alevanto vejo na fogueira restos de folhas de papel. Tomo as partes não queimadas, o que é isto?, são minhas cartas, quer dizer, as palavras são as minhas, mas são cópias, em letras inseguras, forçadas, malfeitas.

21 janeiro 2010

O último porto do rio

31

Falar do que leio nas cartas ou de mim, não. Sim, necessitas saber. Tenho hoje uma notícia, retornarei para o Rio de Janeiro. O marido foi designado. Voltaremos. Estes anos aqui me foram bons, levo contudo o desencontro e a obrigação de ir, e o que farei sem as cartas como consolo e ciência, consciência de mim e do seguir vivendo, tirare avanti, é coisa que aprenderei. Um livro se fecha, outro se tem que abrir. Por hora é ser e viver aqui os últimos meses. Mudaremos para uma casa ainda melhor e mais bonita, mas a beleza do lugar não me garantirá um quinhão a mais de felicidade. E para que tenhas confrmação das estranhezas destas linhas que se cruzam na vida, não invento o que digo, nem faço estradas de muitas crendices, mas vejas, ao mesmo tempo em que se tornou certeza a nossa volta para o Rio de Janeiro as cartas pararam de chegar do Porto do Rio. Se bem que exagero, este estado de alma, se vão poucos dias desde a última. Uma delas veio em branco, fiquei só com o cheiro do papel, a textura, a tentativa de descobrir marcas reveladoras. De quê?, sei lá de quê. Pensei, águas passadas, que já não é mais tempo de inventar uma viagem ao Porto do Rio, teria sido fácil e bom ir ao Porto do Rio, mas não, o melhor foi o não ter ido, na verdade o que recebi foram cartas extraviadas, bem que me forço a acreditar nisso.
Abateu-me, de princípio não, com o passar dos dias sim, a notícia da transferência, bem mais do que quando para outras cidades mudamos, nem há como comparar. Lá, naqueles tempos minha vontade era flor que desabrochava para dentro, como um figo e ninguém via, nem eu mesma. Então para cá ou para lá, ficar ou ir, Rio ou Roma não importava. Viemos, hoje no entanto vejo minhas vontades enviezadas mas já as vejo. São flores que desabrocham como rosas, mesmo que desabrochem à noite. O que te falo é um jardim de segredos.
Falo, mas por favor considera o respeito que um segredo merece. Hoje sobretudo te peço, ainda mais necessito, acredita, fui ontem à noitinha à missa na igreja da Boa Morte, fui privilegiando um convite que recebi de missa pela alma do doutor Eustáquio de Monjardim Coutinho. Minhas práticas se dão nesta ou naquela igreja, não pertenço a nenhuma confraria, mas o padre. Digo, o padre. Não sei se minhas vontades andam desabrochando por olhares e transpirações, ou por gestos ou pelo andar, mas sem ter coragem pra dizer, e, garantida pelo teu valor de guardar segredos eu digo, o padre era obsceno. É, obsceno, no sorriso, no jeito de falar, de rezar até. Tentei, a Senhora da Boa Morte é minha prova, mas a obscenidade dele me atravessava a pele, lâmina de navalha enferrujada, mas lâmina. Juro que não sei, eu duvido, serei eu a transpirar o que venho vivendo nas penumbras e nos cantos onde leio e releio as cartas. Mas tomei coragem, e para tirar a prova, acheguei-me a ele e perguntei O senhor anda fervendo a água que toma? antes que ele respondesse já lhe continuei com as exortações Tome cuidado com as febres que andam afetando os moradores da cidade, muitos morrem, o reverendo sabe. Tem o senhor um jeito de febre. Ele apavorou-se e começou a colocar sobre a testa a mão virada, desvirada, na testa, no pescoço, começou a transpirar, logo pediu licença e saiu. Mas ainda assim assustado vi que sua mente dividia-se entre o medo da febre e a obscenidade. Licenzioso prete! Voltei para casa destituída de conclusão, na verdade ainda mais túrbida. O marido me perguntou de que fui tratar com o cura.

20 janeiro 2010

O último porto do rio
30

O dia ainda amanhece mas é como se uma tarde antecipada se assombreasse na alma. Com uma vontade de não estar em lugar nenhum desço sozinho ao rio e retiro os sapatos, lavo os pés, especialmente o direito, sem querer pensar, o preto. Tanto quanto possível lavo as meias, torço-as seguidas vezes, visto-as. Calço os sapatos, firmo os cadarços, volto à ruína e determino, para ocupar o tempo talvez enquanto a enchente se esvaísse e a navegação fosse possível novamente, que revistemos o local. Se botocudo não era, fantasma também não, sucedia-se forçoso confirmar quem estivera por ali. Vamos, peço cuidado, logo encontramos vestígios de antigo cemitério, persignamo-nos, seguimos, sem tardança fica evidente que um ser de carne e osso, não um espírito, passara por ali. Continuamos pela mata seguindo o que seria o caminho mais fácil para um ser humano em fuga. Quanto mais adentramos pela mata mais difícil se torna voltar sem uma comprovação do que acontecera na noite, era a minha autoridade que agora carecia disso. Determino, vendo que a tarefa demandaria mais paciência, tempo e cuidado que um dos canoeiros retornasse e montasse guarda com o mestre nas ruínas, nós outros, os quatros, seguiríamos. Depois de largas horas de caminhada um dos canoeiros aponta-nos mostras do que seria sangue, e sangue vivo. Aceleramos a busca e não muito distante nas margens pedregosas de pequeno córrego encontramos, espaventados, armas apontadas, com o tal índio caído, lavando a perna golpeada. Entre exausto e corajoso, entre agressivo e ingênuo o olhar daquele selvagem confunde-nos e incita os homens à reação. Botoque ele não usava, mas botocudo com certeza era, a altivez não diluída pela humilhação comprovava. Jovem, menos de trinta anos, com punhos e pernas marcadas por amarraduras de cordas ou de talas de couro. Um fugitivo, mas de onde, de quem, de que situação? O canoeiro que o avistara na noite tempestiva, Manoel Fernandino, por pouco não lhe detona uma saraivada de chumbo. Procuro sem êxito me comunicar com ele. Intento com cautela o exame de sua perna e admiro-me que tivesse empreendido fuga tão longa naquela situação. Ele fora decerto alvejado por um dos tiros do dia anterior. Os canoeiros de prontidão mantem as armas apontadas para ele, a ferida é grande, e sinto que se movem em contrariedade quando percebem minha intenção. Precavendo-me de que crescesse ainda mais em suas mentes a veemência da agressividade digo, Temos que ajudar este homem, escolhendo propositalmente a palavra homem. O índio sem alternativas se deixa dominar pelas minhas decisões. Apoiando-o em revezamento retornamos pela mata, uma ventania se solta por entre as árvores, uma ventania que vai despedindo o sol de sua pujança e me arrepiando de lembranças.

19 janeiro 2010

O último porto do rio
29

O que me escreve o tal? não sei se é hora de dizer-te, são palavras. Se quiseres, pode. Olha, deparei-me com uma senhora rica lá do Porto do Rio exatamente ali no cais dos Jesuítas. Fui comprar um peixe para fazer ao modo daqui, vermelho de urucum, o marido gosta e eu também, pois bem, além da brancura alvejada, gosto mesmo do vermelho, aquele vermelhão todo na panela, o peixe embebido, rubente de perfume, e me proporcionei com sua barcaça atracando no cais. Ela tem casa lá no Porto do Rio e uma cá que está montando, ali ao lado da minha, não colada, mas bem perto. Dizem que é de Hamburgo e que veio com o marido comerciante para enricar e depois voltar para a Europa. Não sei se volta, árvores também somos onde nos planta o destino. Foi apenas um cumprimento, como de outras vezes, ela e sua acompanhante não se permitem parar no cais para um pequeno colóquio, logo descem da barcaça e seguem, e os canoeiros apressados se vão com suas caixas no lombo como etíopes escravos de uma raínha tedesca. O que digo é que também eu poderia exibir-me assim, mas não o faço, acostumei-me nesta província e o gosto disso logo passa, da exibição, exibir-se, me explico, sempre para os mesmos olhos perde a graça, além de que, e ainda mais, não estanca a sangria, quando uma incompletude de vida é o que arrastamos em nossas vestes. Dizem que todos os móveis, utensílios e ornamentação vem da Europa. Um piano! Mas o que importa nesse dito que vou seguindo é que senti inveja dela, não do piano, também na sala onde leio as cartas está um colocado. Sabes tu por qual motivo veio a inveja?, poder subir e descer o rio e, bem provável, saber quem é o tal João, ai meu Deus!, Francisco, até o nome me.

Onde vou agora? a lugar nenhum, mas me vou, questo me piace un mondo andar pela cidade, acompanhada diga-se, esta menina não me é escrava, alforriei a todos, servem-me, mas são livres. Livres é um modo de falar, quem? livre? nem eu o sou. Nem me faças ir pelas tristezas por favor, esqueças isso, não toques onde não secou ainda o filele quente de vela derramada do castiçal, podes quebrá-lo. Vamos. Bem, as cartas chegam sempre. Ora ele se dirige com galanteios de quem promete amores, ou os declara, aqui é bom explicar, os homens são hábeis e bons na declarações, não nas promessas. Eles mentem e não mentem, não me entendes, eu sei. Haverás de acelerar teus pensamentos, o que falo não é página que se vire uma depois da outra, é corda de amarras para não se perder do porto. Barco tu tens o teu, se te importa algum entendimento ter, corre, a maré sobe e desce e nem percebes, e quando pensas em água na tua vida já tens uma pedra quente sobre os pés que te faz. Ele, sim, voltemos, muitas vezes, pelo que ajunto, manifesta-se inseguro e confuso. Deve ser um poeta, mas a mim, por que escolheu a mim para dizer estas coisas que são pedaços? Nem os meus eu ajunto, agora fico ansiosa pela próxima carta e trabalho como uma bordadeira, Deus me livre, não suporto agulha desde os anos de colégio interno, trabalho como uma bordadeira, ligando um pontinho depois do outro para tentar arranjar os arabescos dos sentidos na minha cabeça e entender estes modos e estes caminhos que ele me diz, estes amores que me vem aos lábios e...

Não, as cartas não. Volto outra hora, vou agora lá na rua dos piolhos levar umas coisas para pobre mãe com filho recém nascido a necessitar de caridade. Lá as casas tem o teto tão baixo que o sufoco da vida, o que sentes, lá parece refrigério. Há uma febre correndo por ai, andam dizendo que é a água. Cuidado com a fonte onde bebes, principalmente se vem do morro da fonte grande, podes... Bem, uma palavra pelo menos, digo, ele talvez se lance pelas matas subindo para as terras frias para trabalhar com os agrimessores que demarcam as novas colônias para os italianos. Se bem que não entendi se é um projeto de fato ou se é um sonho de ir simplesmente para se ir. Por enquanto é, completes tu, pois que as cartas também me incitam nesses impulsos de ir, ir. Que não exagero eu disse outro dia, mas me desdigo hoje, exagero sim, impossível não exagerar sendo o que sou infeliz, o infeliz exagera-se nas ilusões e nos olhares, olhamos mais e mais enxergamos vermelho o sangue que escorre, o coro na catedral ouvimos mais plangente, o curió na gaiola insuportável de dor. Aquieta-te no teu lugar, digo para mim, mas.

18 janeiro 2010

O último porto do rio
28

Resolvem comer, sou convidado, do seu embornal cada canoeiro reúne num único arranjo no chão o sustento de boas coisas importadas, inclusive doces. Temos um belo repasto. A descontração me permite voltar os olhos à bolsa das correspondências do mestre jogada sobre a terra. Peço-lhe um particular, esperando que a solidariedade praticada frente às dificuldades da noite e a refeição repartida pudesse nos aproximar em entendimentos sobre um elemento comum, as cartas. Ao que ele prontamente responde dizendo ser mero portador e nada mais além do que isso, Cumpro ordem de levar do senhor estas cartas e nada mais tenho a acrescentar, pois assim é, e se o senhor tem algo a reclamar, que reclame a quem o senhor escreve, ou a alguma outra autoridade. Ademais, diz, este assunto não nos convém, é melhor encerrar a conversa. Neste momento encontro-me em minhas reflexões com um entendimento jamais imaginado, mas possível, de que o mestre sofresse de alguma deficiência nas faculdades mentais, dessas que decorrem da sífilis, ou coisa que o valha. Silenciamos, ando uns passos, penso em novos argumentos para prosseguir na conversa. Olho para onde seria o altar e recordo a quanto não rezo. Quando me levanto dos pensamentos e viro para ele dou-me com uma espingarda apontada e logo o dedo se movimentando no gatilho e um estampido. Todos acorrem e se deparam comigo mais branco do que vela, caído no chão. O mestre ri, ri sem parar e aponta o macuco morto, ali, abatido, caído atrás de mim, na mata, a uma boa distância. Vamos ter carne boa sobre a brasa logo mais, e ri, ri. Avanço sobre ele com todo ímpeto, raiva de muito guardada e esmurro seu rosto, rolamos pelo chão, os outros canoeiros custam em apaziguar-nos. Ao final e porque ele não esperava mnha reação saio-me melhor do que ele, mais assustado do que machucado, ao contrário dele. Aproveito e digo-lhe o que ele nunca ouviu de mim. Todos ficam parados, intimidados, arrogo-me da autoridade neste feitio nunca usada e imponho o comando de hora em diante à minha pessoa. Cada um desempenhe suas funções mas com o devido respeito e obediência à minha pessoa, digo. Ao contrário do que imaginei os canoeiros manifestam concordância e expressam uma certa admiração pela minha atitude. O mestre em modos mais comedidos demonstra em aparência pelo menos, no olhar, na postura, no ajeitar das coisas, o reconhecimento do abuso para comigo ao atirar na ave. Digo-lhe, De hoje em diante não escrevo carta nenhuma e o senhor não haverá de me gritar em exigências. Escrevo eu quando os meus tentos me pedirem, ou quando a vontade me estimular, que me espere quem me pede tais cartas, ou que me mostre a digna presença. O senhor não se faça de rogado, diga à pessoa o que exatamente lhe profiro, não me submeterei à nenhum outro ditame para escrever minhas palavras senão ao que me determina o meu arbítrio, no dia e na hora que eu bem quiser. Ele pouco mais novo que eu, mas não necesseariamente mais forte, senta-se no chão, mantém-se cabisbaixo por um bom tempo, a inação é de todos, e então começa a retirar as botas, tira a esquerda, fico observando, tira a direita e do mesmo modo olho. Retira então as velhas e molhadas meias e vejo, meu Deus!, seu pé esquerdo, seu pé esquerdo é todo branco, níveo mesmo, até o tornozelo, negro que é parece permanecer com meia mesmo sem ela. Um estranho sentir me percorre as veias, confundo-me de mim mesmo os pensamentos e retraio-me, sofro um desconforto, uma culpa, vou para a porta do que seria a igreja e bem no centro olho para onde corre o rio.
O último porto do rio
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O sol se levanta longe, nas distâncias das curvas do oceano, mas já agora se infiltra em alva e incipiente luz por entre as ramagens escuras da mata e atinge-nos nas ruínas tão suavemente quanto uma penugem de paina seca que o vento leva. A madrugada segue lenta, abato-me não das horas de fadiga, mas dos dias, dos desencontros, das infelicidades, do fastio de ir vivendo, descer um rio sem remo. Ainda insiste com uma pequena cintilação a fogueira que nos afervorou a vigília durante a noite, me prendo nela com o olhar e assim fico um tempo, calado. A chuva que persistiu sem trégua se vai embora. O mestre retorna do cais e diz que a velha Maria Luíza resistiu bem, mas o rio se espraiou pelas margens como um mar, Vamos ter que esperar um bom tempo, a correnteza é muito forte, ainda mais do que aqui deve ter chovido nas cabeceiras, é melhor esperar. Tem ele razão, além da correnteza, há outros perigos para as barcaças, descem galhos, bananeiras, troncos pelo rio abaixo, além das cobras. Surpreende-nos a abóboda celeste ao amanhecer completamente entregue, sem nenhum hímen de núvem, toda possuída pelo sol em desvirginado e feliz azul. Fico pensando como seria lindo estar no Porto do Mar em dia tão limpo depois da chuva para acompanhar Maria Júlia na cumprimento de seu propósito. Surpreende-nos a outro modo, mas não sem espanto, a revelação do canoeiro Manoel Fernandino, o primeiro a avistar aquilo que nos visitou durante a noite. Era um botocudo, ele afirma, era um botocudo. Olhamo-nos com um indisfarçável descrédito ao que ele diz. Olha-nos ele e escuta-nos, mas seu olhar calmo está a nos desafiar com a autoridade de quem sabe o que fala, e, sem se importar com o nosso escárnio continua, Podem rir o quanto quiserem, mas era um botocudo, estive com ele cara-a-cara no clarão do relâmpago. Clarão de relâmpago é rápido mas aguça mais a visão. O seu botoque no lábio pareceu ainda mais horrível do que se tem falado por ai. Estes selvagens se alimentam de carne humana, é preciso que tomemos cuidado, esse pagão pode voltar. Que botocudo que nada Manoel, digo eu, estes índios se encontram a muitos e muitos quilômetros daqui, lá pelas partes do Rio Doce, bem ao norte. Era um botocudo sim, afirma, eu que vou ficar atento. Rimos todos, ele também, um sujeito sempre de muita disposição e alegria. Na Maria Luíza era sempre o primeiro a puxar as toadas, e no baile na curva dos pretos o sujeito parece ter asas fechadas sobre os pés que se abrem invisíveis quando uma boa concertina se expande em seus foles.

16 janeiro 2010

O último porto do rio
26

Sim, sim. Recebo estas cartas... com frequência. Sem previsão, deparo-me debaixo da porta com as ditas. Cheiram a café e couro e um certo quê úrico, ou outro cheiro assim que não sei precisar, mas, meu Deus! Temo em falar... e desejo falar. Alevanto-me sobre as pontas dos pés em desejos que a uma alma de esposa não se deveria permitir levantar destes lugares profundos, desconhecidos, próximos são no coração de cada um o céu e o inferno. No entanto se falo é porque despudoradamente a palavra sempre quer se expor, que o recolhimento e a timidez é coisa que nao compete à palavra. Andei pensando em procurar o padre ali na São Tiago e pôr no confessionário o que sinto ao ler aquelas linhas, pôr no elenco dos pecados esta condição dos desejos, lá é o lugar, bem aprendi, em que se deve dar nome às coisas, mas abreviei o caminho e aqui estou. Não te tomarei o tempo, mas poderei levar-te, se quiseres. Um parágrafo de falas benditas vale mais que um livro de rezas que se lê sem a compostura do pensamento. Deve ser por assim que se vão Deus e o diabo em lutas.

Quando levanto bem cedo e abro a janela do quarto e olho o mar seguindo a baía adentro não penso em nada senão no cujo João Francisco lá do Ultimo Porto do Rio. E mais se avantajam estes sentimentos quanto mais próximo se coloca um devido dia. Sigo com os olhos as barcaças que sobem na direção da desembocadura do rio ou as que descem ao porto. Não hei de negar, como? o arrepio de aventuras que eu nunca vivi. O marido me tomou quando eu tinha doze anos. Nunca além do que ele me fez ele me fez. Ele nunca me fez feliz, eu até pensei que sim hoje sei que não, a felicidade de sentir em praias de prazer essas ondas que me movem as marés no corpo. Valha-me. A fala entrecortada se situa na dificuldade de respirar pausadamente, se me entendes.

O marido que nem vejo mais, nem sei se perdeu aqueles pelos todos ou se não, se se barbeou ou não, levanta-se e logo veste suas ceroulas brancas, sempre limpas, que assim é minha vida. Gosto delas quando assim as vejo nele pela brancura que me diverte alcançar de tanto alvejá-las. Adquiri receita nova de alvejo de roupas brancas com as freiras. Elas usam aquele hábito todo preto, mas sobre o peito vai uma alfaia toda branca. Sabes? Ao modo de lembrar os adornos no coração para o Bom Deus o branco sobre o peito tem que ser o mais branco possível. Tanto insisti que elas, amigas, me revelaram o segredo, na verdade foi a irmã Serafina já bem idosa, plenamente festiva e animada quando o fato consiste no desrespeito a certas regras do convento. Olho e vejo-as, as ceroulas, e gosto, pois que branco a gente vê nos outros quando usam-no, não vejo a ele, o homem marido, muito menos aquela expressão de sua macheza, vejo a brancura que alvejei. Olha que em fantasia viajo o rio acima para levar umas dúzias de ceroulas bem brancas e alvejadas ao senhor João Francisco. Tu podes rir. Mas, como eu seguia no relato, dia desses, o marido ao levantar desceu as escadas antes do que eu e não percebeu a carta, mais uma, por debaixo da porta. Se bem que também nem me incomodo, a carta eu leio eu, mas não me traz o nome, ele também poderia ler e talvez criasse dentro dele uma cidade ou outra paisagem que tornasse sua vida.

Bem, me nego certos complementos como este que deixei de falar como um jeito de respeito ao pensamento, o teu. Tu te completas de flores ou vinhos, ou barcos ou espinhos o que te confidencío. Quando sigo e mudo de assunto é um modo de não me fazer ouvir por quem não tem o ouvido certo. Ouvido certo é o quanto este que me ofereces agora. Bem, não sei explicar, mas se me entendes tu podes me dizer, apesar de que muito aprecio teu silêncio. É assim um ouvido certo é o que muda um pouco as palavras, mas não muda tanto e não prejudica com a mudança o correr das coisas. Sim, me fui ao cemitério hoje, pois que morreu o doutor Eustáquio de Monjardim Coutinho. Morreu de velhice, mas foi homem bom até o fim. Mas no cemitério fui tomada de um desejo, um desejo somado de amor que... E me desengasguei dele, ou tentei, olhando a paisagem. Do cemitério se avista ainda mais em maravilhas de Deus o mar que vai dar no estuário do Santa Maria. Olhei tanto para aquele horizonte... Ah, desculpa minha respiração funda, não exagero. No fim do dia é que foi o sepultamento, o sol caía marcando de nostalgia as montanhas longes, e aquela beleza do sol se pondo disfarçava o que na verdade eu queria. Soprou-me o vento um acanhamento nas faces, recompus-me ao lado do marido e retornamos, eu com um aperto no peito a me encher desta dor de perder o que já foi perdido e desta loucura de querer ganhar.

15 janeiro 2010

O último porto do rio
25

Na lanterna arde trêmula a chama, círio longínquo de rezas e missas, e sob sua pequena luz cada um se ajeita como pode. Recosto-me sobre os muitos anos da parede de pedra. Recosto-me sobre o tempo, em ilusão, sentindo-o preso ali, na argamassa, entre as pedras, na liga de suor das mãos construtoras. Apoio-me sobre o tempo que calmamente foge, esvai-se, fragmentando o artefato humano no vento, no sol, na chuva, esperando, tempo escarnecedor, a hora em que tudo voltará ao pó, o dia do fim dos dias. Mas quem faz os dias é a luz do olho humano, o tempo sabe, não a do sol que brilha sempre, e ele, o tempo, tem que esperar preso naquelas paredes ainda prontas para o enfrentamento de muitos anos. A luta é desigual mas a ruína resiste e a firmeza daquelas paredes, mesmo no destroço, momentaneamente me alivia do cansaço. O mestre escolhe um lugar para se assentar de onde, suponho, se avistaria melhor o caminho para o cais, o rio no entanto não se avista. O canoeiro que fora à barcaça demora. O mestre se levanta e olha o que pode ver na escuridão, desprovido dos recursos para fazer-lhe frente. Impacienta-se. A chuva é um despenhadeiro de águas desobedientes. A impaciência e a preocupação forçam-nos uma atitude, descer ao cais para procurar o canoeiro, mas então ele se delineia em aproximação no escuro e chega com o querosene. Respiramos de alívio, não um respiro que vai ao fundo do pulmão, um sobressalto segura o fundo do peito em tensão por ver a expressão que ele traz. Antes que o mestre perguntasse alguma coisa ele faz seu relato sôfrego, nervoso, Tem algúem por aqui, vi um vulto me seguindo, e não é bicho, é gente. Todos desejaríamos convencê-lo de que não era nada, que ele se impressionara na escuridão, no entanto sua expressão facial dissuadia-nos de qualquer tentativa. Recolhemo-nos nas proteções que a parede nos oferece, o mestre joga qualquer coisa sobre a lanterna, ficamos quietos no escuro total, a chuva incessante canta sua arqueológica melodia. Ficamos alertas. Não trago comigo hoje uma arma de fogo, exceção no grupo, o propósito da minha viagem com Maria Júlia não me permitia portar uma arma. Um dos barqueiros, a mando do mestre sobe no que seria uma janela na altura do coro da igreja e lá se acocora como curuja. Nada avistamos. O mestre diz que vai verificar a Maria Luíza, o canoeiro que nos avisara da estranha presença não o deixa seguir em seu intento sozinho, propõe-se a descer com ele para verificar a barcaça. Aconselho ao mestre a continuarmos no nosso ponto por um tempo e observar. Não tenho certeza se ele me ouve. Fica pensativo, espera, não mais que cinco minutos, depois desce ao rio. Desce com dois canoeiros e logo retorna. A barcaça estava segura, as cargas todas amarradas e cobertas, ninguém, nada, fora visto. O rio já vai bem cheio, diz, a enchente é das grandes. Permanecemos quietos e agachados com a arma em punho, eu com um punhal, por um bom tempo. Sem baixar a guarda o mestre derrama o querosene sobre a madeira recolhida e faz crepitar pequena mas boa fogueira. A claridade se espalha pelo átrio iluminando diante de nós o que seria o altar-mor. A fogueira se avoluma e o local apresenta-se para a liturgia das curiosidades dos olhos, e vemos. Vemos passando pelo vão que seria a porta para a sacristia um vulto veloz como um moleque de senzala. O mestre dispara e a bala recocheteia nos fundos em algum tronco de árvore. Ouvimos um assovío, agudo, longo, invulgar. Com a arma engatilhada o mestre segue astucioso pelo átrio, outro canoeiro vai pelo lado esquerdo de quem olha para o altar, eu pelo direito. Ao fundo da ruína avistamos o pretume da noite, e os fachos de luz que atravessavam pelos vãos da ruína iluminam apenas árvores e árvores para onde uns bons tiros são disparados a esmo para efeito de espantar quem quer que fosse, bicho ou gente. Mesmo e apesar da tempestade despropositada em volume e barulhos os estampidos atravessam a floresta. O mestre percebe que o antigo presbitério também está protegido da chuva por uma espécie de tosca aboboda que não ruiu, e ali alguém um dia recolheu madeira, uma pilha abandonada de muitas estacas para cerca. Exatamente no local em frente ao que seria o altar ele amontoa uma boa quantidade de estacas secas, e o canoeiro, o primeiro a avistar o vulto, despeja boa porção de querosene sobre o monte e o mestre ateia fogo. As labaredas sobem para a cruz que não está lá, nem a Virgem Maria e a luz se esparrama para longe, depois as chamas retrocedem em tamanho e se mantém constantes. Retornando ele apaga a pequena fogueira e se agacha no seu canto. Ninguém precisa de alerta, cada um sabe o que deve fazer. A chuva prossegue primitiva no seu exagero de águas, ninguém dorme.

14 janeiro 2010

O último porto do rio
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O cais da igreja velha na verdade é o que restou de antigo, bem antigo projeto de um porto. Entre dois lajedos de pedra que brotam da terra e avançam para a água num giro do rio, formando um recôncavo de águas fundas e quase paradas, está o antigo fundeadouro, uma ruina. Grandes árvores cresceram no que seria o pátio do ancoradouro, e quem não soubesse daquele sonho de um dia, não perceberia seus resquícios, o que ficou, sobejos espirituais, coisas voltando ao seu estado primevo. Muito menos os desavisados passantes do rio avistariam o que sobrou da igreja na colina hoje encoberta totalmente por árvores. Tanto quanto o mestre também eu já sabia destas ruínas sem lhes dar, no entanto, importância alguma. Muitas histórias correm sobre o lugar. Se o Santa Maria desde o Porto do Rio até o Porto do Mar é doce e manso, uma alma boa, ainda mais no cais abandonado, no cais de sonhos perdidos, um vilarejo ali que não se formou, onde o rio vira placidez de poema que canta a saudade e o que se foi. Cá estamos, vai dar tudo certo, diz o mestre dentro do rio, apalpando as pedras e procurando nas paredes do ancoradouro, no lusco-fusco produzido pela lanterna da proa, antigas argolas, como quem busca peixes cascudos em suas locas nos barrancos. Encontrei, mais firmes do que se tivessem sido cravadas pelo diabo, diz, aqui estão desde quando ninguém sabe. O que foi pensado se realiza, atracando no cais realizamos um destino perdido para o lugar. Parece coisa de jesuíta, ele volta a falar, que eram inteligentes, engenhosos, visionários, mas ninguém sabe ao certo quem fez isto. Fico admirado de estar ele tão prolixo na excecução das medidas de proteção da barcaça. Além de usar as argolas outras cordas vão da barcaça às árvores mais próximas pelas mãos dos canoeiros. Gritamos um para o outro gritos de cooperação e estímulo que a pressa e a urgência exigem. Nesse momento já estou também dentro do rio enlaçando aqueles velhos anéis enferrujados, marcas de alianças inqustionáveis dos sofrimentos do passado com as esperanças presentes. Vejo, bem próximo que estou, o nome da barcaça. Nome tantas vezes visto, nome tantas vezes anotado nos livros de registros das entradas e saídas do porto, Meu Deus!, agora me causa um assombro, Maria Luíza. O mestre confere cada corda, cada amarra, toma seus pertences na caixa, sua bolsa de couro, a das cartas, a lanterna da proa e segue por entre as árvores. Vamos em seus passos, enlameados, cada um carregando o que pode. Os raios e trovões se intensificam. Logo pisamos vestígios de antiga escadaria e subimos pequena colina. No alto, em meio à mata e tomada por ela a antiga igreja. Aqui vamos nos abrigar, diz, entrando à luz dos raios pelo que seria o frontal do templo. Aproveitando o angulo reto formado por dois paredões ainda de pé alguém contruíra uma cabana bem coberta, sabe-se lá com que propósito, suficiente para nos abrigar. Recolhemos madeira rapidamente mesmo que uns bons pedaços já estivessem molhados, e um dos canoeiros se dipõe a voltar ao Maria Luíza para buscar querosene.

11 janeiro 2010

O último porto do rio
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Seguimos em silêncio e ao que parece todas as palavras se transformam em atenção auditiva já que os olhos nada enxergam além do alcance da lânguida luz da laterna da proa. Ouvimos uns dos outros o ruído próprio da vida, a respiração ofegante, um pigarrear, uma tossida, também o murmúrio das águas, as varas de impulso sem trégua caindo sobre o rio, empurrando-nos para o olho da escuridão. Nada mais além, nem um pio, seja de bicho, de ser de outro mundo ou de outra coisa qualquer. O mundo recolhido de todos os seus sons, preso nas cadeias dos segredos de cada homem que comigo sobe o rio nao impedia, apesar da escuridão e do engendro da tempestade, a execução barulhenta do concerto monótono, cansativo dos pensamentos. Se o silêncio é sinal de que se formam pensamentos, seja por velhos padrões de repetição ou pela ousadia de inventar ilusões e sonhos para o dia seguinte, não sei. O que sei é que o silêncio nesse trecho da viagem não é escolha. Uma força maior nos amarra a ele, e sigo sem procurar assunto, pois qualquer palavra, pressinto, pesará ainda mais no chumbo da escuridão. Tento em exercício de concentração firmar-me na idéia do passo que dei, de que fiz exatamente o que eu precisava fazer, voltar ao porto dos pretos, procurar Maria Júlia. E tudo se coloca assim na noite ainda mais anoitecida pelo silêncio, por um tempo pequeno na verdade, e que se apresenta, contudo, com a duração de um século. Mas o emudecimento do mundo poderoso sucumbe, o universo é menor que o rumor de um minúsculo coração humano. Assim sempre foi, assim haveria de ser, o homem fala, os canoeiros começam a conversar, não o mestre, eu também não. Esta seria a nossa segunda arma na estranha luta, o mutismo. Falávamos muitas coisas um para o outro falando para nossos próprios vales interiores onde o eco da própria voz resvalando em montanhas de granito não nos dava resposta alguma. Assim seguimos por um bom tempo na disputa. Os canoeiros conversam, conversam, cantam suas toadas tristes e nós continuamos calados. Grossos pingos de chuva começam a cair, o mestre corre puxando o encerado sobre a carga. Os canoeiros querem ajudar e ele grita para que continuem levando a barcaça rio acima. Ajudo-o eu. Ele não refuta minha ajuda, mas não me agradece, do mesmo modo é o seu proceder quando lhe entrego as tais cartas no cais do Último Porto do Rio. Ainda estamos longe do ancoradouro de dona Leonora. Lá na escuridão, não muito longe, raios cortam a densidade do céu seguidos de pavorosos estrondos. Os canoeiros em movimentos ritmados e bem sincronizados sobem as laterais das barcaças correndo e lançam a vara no leito do rio como se fossem saltar, ou como se estivessem caçando com lanças longas e perfurantes ardilosas feras aquáticas, impulsionando assim ainda mais rapidamente a embarcação para cima. Nenhum esforço nos levará a tempo ao ancoradouro, a tempestade nos alcançará. O mestre ordena que continuem a empurrar a barcaça para cima, Há ali adiante as ruinas do cais da velha igreja onde poderemos amarrar a barcaça e nos proteger do temporal. Pela sua previsão muita água deveria descer das cabeceiras e era importante amarrrar bem a embarcação pois que a carga, valiosa, não poderia ser perdida nem em sonho, no que concordo plenamente com ele.

09 janeiro 2010

O último porto do rio
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Quando surge na escuridão a pequena luz dançante, como se a ideia escondida nos escuros da mente surgisse de parto repentino pelo estímulo daquela pequena luz esbranquiçada da lanterna da barcaça tardia e solitária a subir o rio, vem a decisão, brusca e tardia decisão, de tomar aquela barcaça e retornar. Falo ao mestre e peço que ele diga aos barqueiros que subirei com eles. Mas o mestre diz, Vocês vão enfrentar dificuldades. Eu preciso voltar, digo, esta é a última chance. Se o senhor João Francisco pensa assim, assim deve ser feito, diz o mestre Gumercindo e me dá um pequeno toque com a mão sobre o ombro, gesto que acolho como de aprovação e estímulo. A percepção que ele tinha dos fatos e das coisas do coração das pessoas ainda era maior do que a candura das suas palavras. Sua palavra era de floração simples, mas o floreio simples e bonito vinha de arvoredo cuja raiz é funda. Comunico a volta sem maiores explicações à senhora patroa, nem me dou tempo de prestar-lhe atenção na reação, no espanto, na decepção, na raiva ou em qualquer sentimento do tipo que com certeza atravessaria seu coração, retomo minha pequena bagagem e me preparo para saltar sobre a outra barcaça. A barcaça se vai carregada de muitas caixas, mas nenhum passageiro. Salto e cumprimento os canoeiros e o mestre. Como sou funcionário de relativa importância na companhia de navegação Santa Maria & Vitória tenho trânsito livre na companhia e além dela nas outras também, se necessário, dada a camaradagem que se cultiva entre os trabalhadores do rio. Quando já na barcaça, e aliviado pela decisão tomada, me deparo com o inesperado. No calor da decisao não percebi que a embarcação para onde eu saltara era bem conhecida . Vejo-me diante do canoeiro das cartas. Entreolhamo-nos. A surpresa já se desvanecera nele, em mim ainda não. Desejo-lhe boa noite com a devida deferência que os mestres merecem, ao que ele me responde com respeito, mas não com simpatia. Enfrentamo-nos com respeito, ou melhor, fizemos do respeito nesse primeiro momento o nosso instrumento de luta. O mestre Gumercindo, já se despedindo e invocando para nós as bênçãos do Senhor Bom Jesus, alerta-nos sobre as possíveis dificuldades, tempestade, muita chuva, e incentiva os canoeiros a trabalharem muito, sem folga, até o primeiro ancoradouro seguro, na parada de dona Leonora, onde deveríamos pernoitar. Logo nos distanciamos das barcaças que desciam e entramos escuridão adentro. A pequena lanterna na proa parece produzir uma luz extraordinária, maior, reluzente de poder e ilusão, impotente desejo de vingança na humilhação. O poder da escuridão engana a lanterna em sua insensata tentativa de clarear o mundo. O silêncio rompe-se sem alvoroço pelos sons, o rio bondoso em seus suspiros, os batráquios em suas canções de desespero, ou de festa, pois que tudo há de depender do ouvido neste mundo das palavras, seja de gente seja de bicho, e o sons de alguns desassossegados pássaros como corujas ou mães-da-lua que parecem ter vindo de longe, pesados do fardo de suas lamentações, deixando-as cair, uma aqui outra ali, laços de adorno sobre a noite.

06 janeiro 2010

O último porto do rio
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O subir e descer de barcaças sempre é intenso, e no percurso se encontram várias pequenas frotas que seguem em sentido contrário. A bem da verdade durante a viagem nem lhes prestei atenção, e nem dei aos canoeiros os devidos cumprimentos, conhecido que sou de todos, dividido que estava entre o sofrimento de não ter podido atender o pedido de Maria Júlia e as gentilezas e deferências da senhora Hannah para com a minha pessoa. Desenvoltura é o que ainda não tenho em dizer este nome, Hannah, posto que a língua não se dobra adequadamente, nem a consciência. Não nego, contudo, que acrescentar o nome Hannah ao senhora me estimula sobremaneira certos impulsos que seria melhor se ficassem reservados em seus recôndidos lugares. Para me distrair vou sentar ao lado do mestre Gumercindo, e, sabendo que ele percebia o meu desajeito, começo sem receio a prosa com a mais desenxabida pergunta, Quais as novidades no Porto do Mar, mestre, o senhor que vive a sua vida entre as duas cidades? A novidade é trabalho, filho, mais trabalho, logo chegarão os vapores trazendo italianos, centenas e centenas de imigrantes, milhares, e, dizem, no contrato está estabelecido que entre os benefícios que receberão do governo brasileiro está o transporte até às colônias. O patrão com certeza não perderá a ocasião para lucrar, o senhor conhece o homem. Nesse momento, pelo soar de um buzo tomamos conhecimento que uma atrasada barcaça subia o rio. O mestre estranha o fato. Mais cuidadoso ouve, ouve apurando a atenção e diz, Só ouço o toar de um buzo, é uma só, o que faz sozinha, ó meu Bom Jesus dos Navegantes, esta barcaça subindo o Santa Maria em noite tão escura e já tão tarde para ainda estar neste trecho do rio? Outra vez se põe em silêncio e diz, Já sei qual barcaça é. Eu não sabia, mas eu sabia o porquê ele sabia, mas ainda assim considerei com respeito sua fala como se fosse a primeira vez que ouvia aquela explicação, Conheço cada buzo deste rio senhor João Francisco, cada buzo é próprio e distinto, como cada pessoa é diferente, assim feita pelo Bom Deus. Então, sem mais demora, ele responde aos canoeiros que subiam em tardia barcaça com o seu toque. Meus Deus, ali estava a alma daquele velho negro canoeiro. Aquele toar de buzo recapitulava todos os seus ais, todos os seus sonhos, cada um dos seus dias. Estremeço-me em arrepios, um indistinto sentimento me aperta o peito, persigno-me.

05 janeiro 2010

O último porto do rio

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A barcaça Bela Vitória na qual descemos, neste dia reservada para conduzir a senhora esposa do dono da companhia, com suas malas e caixas, leva também umas boas sacas de café. O patrão enricado pelo comércio ficará decerto ainda mais. A senhora passará uns dias na sua linda casa no Porto do Mar. As pessoas não me entendem, mas gosto do mar, das praias, diz a senhora, O senhor já tomou banho de mar senhor João francisco? Certo é que animados pelo vinho nos permitimos avançar em assuntos menos formais. Sua beleza, seu sorriso, suas mãos, sua pele rosada pelo sol da viagem a despeito da sombrinha, parecem-me ainda mais admiráveis. Mais próximos nos temos colocado com o seguir da viagem um do outro, ao alcance de um braço estendido. Num momento de riso fácil por algum motivo qualquer a senhora toca-me com seu sapato a perna direita e desce ao pé, o pé preto. Assusto-me sem me assustar com suas intenções, que à vista disso agora me ficavam claras. O pé preto estava bem guardado, bem encoberto pela meia e pelo sapato. Assusto-me todavia pela sua afoiteza, pois que esperava que sua condição lhe intimidasse, abreviasse ou extinguisse esses escusos interesses. Mantenho o pé no mesmo lugar, esse bendito. Ela então recolhe sua perna com recatado disfarce e sorri, Pode me chamar pelo nome, Hannah, diz suavemente. Preciso tomar cuidado, isso sim, Senhora Hannah!, digo para mim mesmo, os canoeiros não são bobos, bem entendem das malícias das mulheres, muito mais do que eu. Isso pode terminar mal, para mim, diga-se, com certeza. O tempo vai, o sol me esquenta a cabeça, tiro o chapeu e umideço os cabelos com a água do rio, lavo também o rosto.

A noite já me caíra por dentro em lindas tentações de amor que se alojaram no corpo pelo desvão que o vinho abriu, cai também agora a escuridão sobre o rio, bem mais cedo do que eu, em descompasso com o dia, poderia prever. A noite fechada de muitas e densas nuvens esconde o céu maravilhosamente estrelado que, de costume, se avista ao navegar o Santa Maria. A densidade da escuridão se soma ao muro de escuridões que se levantam pelos frondosas árvores nas margens. Não me apoquento, ao contrário, sinto um destravar das tensões, um alívio nas faces de onde um anjo da noite, benigno ou malfazejo, retirou-me uma pesada e pegajosa máscara. O mestre Gumercindo tem inquestionável ascendência sobre os outros e todos lhe prestam a devida reverência por meio da obediência. Precisamos retardar um pouco a descida, grita para todos; o porquê todos sabem, chegar ao estuário com a vazante. Seus cálculos, por qual ciência não se sabe, são sempre exatos. As lanternas balançam na proa de cada embarcação e, numa espécie de reza, um canoeiro se põe a tocar o seu buzo. Uma dor de saudade, plangente, sobe do rio por entre as árvores para o céu insensível. De cada barcaça surge uma resposta, cada buzo expressando uma dor, um cansaço, um amor, uma saudade, e as melodias se distinguem umas das outras em beleza, tanto pelo espírito de quem sopra, quanto pelo chifre do qual fora feito o instrumento. Um passageiro numa outra barcaça, comerciante de Hamburgo, descendo para outros bons negócios também no Porto do Mar, grita uns versos de um poeta alemão e depois conclui, num português marcado por fortes sons guturais, com um conselho do mesmo poeta, "Deveríamos, todos os dias, ouvir uma pequena canção, ler um bom poema, ver uma boa pintura e, se possível, dizer umas poucas, mas razoáveis palavras". E então um canoeiro acrescenta E beber um bom trago de vinho e ir bater à janela de uma bela morena. Todos riem. O alemão cerimoniosamente toma a concertina sobre as pernas, sentado que está sobre sacas de café, e a música impõe-se, impõe-se impiedosa sobre todos, rompendo crostas de feridas e lancinando a dor de cada um. Mais do que qualquer quaresma ou penitência este momento vai compungindo, mas sem promessa de recompensa, a alma do cristão que em seu destino segue o rio.

04 janeiro 2010

O último porto do rio

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Descer o rio e ir, nada mais que isso. Quando se vai, se vai a algum lugar, mas agora não. O mundo parece parado sobre eixo de ferro em madeira rangente, rangente não pelo movimento que não há, mas pelo peso do viver, pois que viver em certos momentos é apenas peso. Tudo vai parado, apenas as barcaças descem. As horas passam e me mantenho aqui, consumindo-me em esforços para estar presente quando longe, bem longe, piso meus passos. Relembro a animação do meu ajudante no fulgor de sua juventude de ir trabalhar com os engenheiros que irão demarcar as novas colônias para os imigrantes italianos, e antevejo estradas, mesmo que estranhas e tortuosas. Os canoeiros tocam seus buzos e sinalizam a hora, volto e ouço que falam em comida. Mas o mundo ainda parece parado, estranha sensação. As barcaças descançam em remanso de sombra fresca. Do caldeirão me oferecem um prato de feijão frio com carne e toucinho, aceito e como sem vontade. A senhora patroa percebe meu estado de ânimo, senão triste, passado, e me oferece de sua cesta. Não aceito, mas então vejo a empregada se servindo de belo brote, peço-lhe um pedaço, e explico à distinta senhora que a escolha daquele pão grosseiro de fubá, inhame, aipim se dava por me fazer bem aos intestinos, minto. Na verdade gosto pois que gosto. O requinte de educação que tive não me dispensou de certas preferências. O mestre na proa, intuindo que o momento de um disfarçado tédio exigia uma atitude, abre sua caixa e me arremessa uma garrafa de vinho da Borgonha, Toma senhor João Francisco!, o que não me surpreende, pois que os mestres, vivendo entre portos, sempre guardam nas caixas sobre as quais se assentam, dinheiro, correspondências e produtos importados. Obrigado mestre Gumercindo! Apesar do calor a garrafa guardada tão no fundo, próximo da água, mantinha-se em temperatura ideal. Arremessa-me também uma caneca. Rio de mim mesmo, das ironias e contrariedades presentes em minha vida a se manifestar em muitos momentos, inclusive agora no tinto filete precioso, alegria divina, a ser derramado sobre taça tão tosca. Viro-me para a senhora e ofereço-lhe o vinho com leve gesto e olhar atencioso, Senhora? e a empregada antecipando-se, determinada por seus antigos costumes de escrava, já retira de seus apetrechos, desembrulhando de tecido felpudo, duas taças de cristal da Bohemia. Há uma misteriosa alegria no olhar da senhora, algo que pressuponho, mas que não afirmo. Tomo a taça, não resisto de lhe dar um pequeno toque com o dedo médio para ouvir seu tilintar, sino de reinos ocultos, e então derramo quase que em gesto ritual a intensidade líquida e tinta sobre a transparência da taça e estendo aquela beleza à patroa. Depois renovo o ritual para o meu próprio prazer, salivando, e concluo, sem prever consequências, contemplando aquele vermelho crístico, sacramental, que o mundo definitivamente havia parado em meio ao rio, mas já agora sobre outros eixos, eixos de rubi.

03 janeiro 2010

O último porto do rio
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Sai-se do Porto do Rio bem de madrugada para chegar ao Porto do Mar à noitinha, ou na noite bem avançada conforme o dia, e o mestre acelera ou retarda a descida, de acordo com a lua e com os seus conhecimentos, para dar com a vazante da maré na chegada ao estuário. Hoje ele não tem pressa, nem eu, que não tenho mais o que fazer no Porto do Mar, se bem que imagino que a senhora patroa vai me deixar em situação difícil quando desembarcarmos, e já me preocupo, e ele, o mestre, vai conduzindo a barcaça com calma, entre toadas e assuntos os mais diversos, ao contrário da senhora esposa do dono da companhia que parece levemente irritada com a lentidão da viagem e deseja chegar logo sabe-se lá pra quê. Mas na barcaça quem manda é o mestre, e não tem jeito, nem a contrariedade da senhora dá mudanças em seus planos, e além do mais ele obedece ao patrão e tem dele a confiança tanto para conduzir aquela barcaça, o dinheiro dos negócios do dia, quanto confiaça para conduzir a sua mulher. Acredito chegaremos com a lanterna da proa acesa, e o Porto do Mar pontilhado de luzes tanto no cais quanto nas casas e igrejas que lhe dão contorno. Penso o que me forço a pensar, abstraio-me do que se vai entre os assuntos, retiro do bolso um lápis e uma caderneta e escrevo umas palavras num início de carta. Imagino hoje um padre como destinatário e coloco em disfarces de metáforas a lista dos meus erros e covardias, inspirado pelas árvores que nesse ponto de um lado e de outro do rio lançam seus longos braços, arcos góticos formando uma nave por onde passamos. Se não rezo, nunca rezo, elevo meus olhos para os galhos e talvez, pelas frestas da folhagem, o Deus altíssimo enxergue meu olhar e me conceda um refrigério para os caminhos que faço em descompassos e atritos com o destino. Viro a folha da caderneta e um impulso parece forçar o grafite para as despedidas, encerrando a carta num único pecado confessado com desnecessárias palavras. Adeus é o que escrevo. E não mais escrevo, senão para um outro destinatário e sem a concorrência do lápis. Adeus a momentos, a certos momentos que fazem a diferença na vida que passa rápido pelo coração de um homem. Ponho meu nome como fim em rasuras, João Francisco, e solto na correnteza o papel amassado em pequena bola, disfarçadamente, sem entender o próprio gesto, com a mão submersa nas águas do Santa Maria.

02 janeiro 2010

O último porto do rio

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As barcaças que vem atrás logo nos alcançarão. O fato da matança do animal rastejante, atraso na descida, lado bom do mal-estar, restabelecerá o equilíbrio das distâncias que a senhora, ao não permitir a parada usual no cais dos pretos, fez crescer. Uma ilusão, uma esperança me faz acreditar que Maria Júlia entendeu minha situação, não desistiu do seu intento e nem da minha companhia, tomou a iniciativa de descer para o Porto do Mar numa daquelas barcaças, de favor, por conhecer bem os canoeiros. Pagar passagem na barcaça de passageiros é que ela não poderia e nelas nem adiantará gastar os olhos de procura. De fato o vozeirio dos canoeiros logo se faz ouvir. Cantam suas toadas, gritam, xingam, tocam suas buzinas de chifre de boi, predomina a cantoria, ouço, Limoeiro baixa a rama, quero tirar um limão, quero tirar uma nódoa, que tenho no coração. Fico a olhar para trás esperando avistar quem vem, a senhora patroa percebe minha inquietude, O senhor se sente melhor?, pergunta querendo saber outras coisas. Sim, respondo, não muito, mas melhor. Logo as barcaças despontam. A esperança que tenho de ver Maria Júlia abre-me ainda mais os olhos e percebo uma beleza sempre vista, nunca percebida, aquelas embarcações, carregadas, descendo o rio, o barulho das águas cortadas, a conversa, gritos e risadas dos canoeiros. A esperança me faz feliz por um instante. Quando os olhos ansiosos se dobram cuidadosos sobre cada embarcação, Maria Júlia, vejo, não está em nenhuma delas. Insisto num último olhar, agora mais divagante que cuidadoso, para a barcaça dos passageiros, fim da expectativa, nada. Ponho-me em silêncio, destes que processam frustrações em mais silêncio. Tanto quanto consigo em meio à festa das barcaças que descem em caravana, penso, procuro uma atitude, não a encontro, não encontro caminho, o rio dos acontecimentos me leva. Pela hora da manhã ainda nova sei que demorará o encontro com os canoeiros que com suas barcaças vem subindo para o Porto do Rio.