31 dezembro 2008

O sol me influencia de impossíveis ao amanhecer. Rejunto
velhas fantasias com insensatas alegrias e entusiasmo.
Fico feliz em ir, não sei se serei em estar. Vou.
Talvez minha alma ainda necessite de distâncias
para modelar em si mesma o rosto de uma flor,
a que lhe oferecerei, ou ao mundo, ou a mim mesmo.
Poder-se-ia viver o amor sem rotina? Adoro dirigir.
As linhas da pista me desenham desejos loucos,
e o vento no rosto me sussurra pássaros de ir sem destino.

Sigo o roteiro traçado. Ameaça chover.
Ouço “Love will tear us apart”.

30 dezembro 2008

Penso, o que viajo é o amor, ele me vai definindo,
me construindo das velocidades do que passa
por mim e em mim. Não sei, todavia, se me vejo bem,
e se me reconheço nos caminhos que faço.
Encontrar-me-ei feliz a cada dia em seu olhar?
Traduzo-me das minhas dúvidas pelas canções que ouço,
separo-me parte por parte para me clarear... e não me entendo.
Na nossa hora a luz sairá pelos olhos, acredito,
e naquela fração, há uma chance, mostrar-me-ei nu e puro.

Avisto na vastidão da noite um posto de gasolina.
Ouço “Every breath you take”.

29 dezembro 2008

As estradas me voam de pensamentos;
um vago, a imperfeição me acompanha,
todavia. Faço a colheita de girassóis
que semeei nas margens do coração, tentativas
de lavrar-me com plantações diferentes.
Reduzo a velocidade e paro no acostamento.
Sinto vontade, inexplicável, de olhar para trás.
Retomo a viagem. Há uma solidão imensa no sol.
Acolher-me-á o veludo dos seus lábios?

Ignoro-me no volante e grito, grito o azul e a incerteza.
Ouço "Love, reign o'er me".

28 dezembro 2008

A saudade no olhar derramarei
sem controle; é inevitável. Na pronúncia
da primeira palavra entregarei as intenções
de um homem em rendição. Ao seu chamamento
direi sim com as mesmas letras da palavra amor.
Feliz, acelero, perco a paisagem,
penso a chegada. Não tenho dúvidas,
sem sinceridade a distância seria maior. Ainda é longe.
Abrir-se-á a porta em sorrisos?

O ar e a amplidão das terras me rejuvenescem.
Ouço “When a man loves a woman”.

27 dezembro 2008

Será que verei um gesto cordial?
No estender dos braços as estrelas tocarão
as pontas dos meus dedos. Seu perfume
tomará meu peito e me fará manso, doméstico.
Converter-me-ei aos seus caminhos enquanto
a sorte me permitir estar em sua casa.
Ainda me faltam horas,
as lonjuras amarram laços frouxos
que se apertam a cada quilômetro.

Sigo dominado pela frágil luz da tarde.
Ouço “Your latest trick”.

24 dezembro 2008

(encerrando os poemas do desterro).

Minhas estradas se cruzam na Pérsia, طرقي,
no Pará, no Paraná, no Pantanal.
Mas não há lugar para a reconciliação comigo mesmo,
我的方式, com as frustrações da profecias,
senão ali na terra dos Guaranis, a terra sem males,
na boca do Piraqueaçu. My ways.
Ali sentado aos pés de uma velha castanheira
olhando na outra margem os coqueiros e o vento
nos movimentos de suas palmas,
οι τρόποι μου, me apanho em pleno vôo de paz.
Em paz, no desterro, mas em paz.
Frágil paz, todavia paz.
Revejo o caminho que fiz, 私の方法,
de Vitória à Santa Cruz, dirigindo sem pressa,
e especialmente refaço o encontro, le mie strade,
com os Santos Magos, sacerdotes persas
que tentaram me ensinar a ciência de ver o Númen,
de enxergar o Numinoso em qualquer lugar,
mis caminos também em ramos de flamboyant.
Confesso, não aprendi muito, nem o suficiente, preso demais
às minhas formas de dizer oráculos, meine Straßen.
Contento-me, todavia, com o que ficou das lições,
dos cálculos e modos de previsões,
da análise das constelações, do que da gente
a gente vê nos céus. Fragmentos que ficaram
dos modos de voltar, mes routes, por outros caminhos,
da beleza de presentear-se para os que amamos.
Ali recordo o que posso das poesias e dos segredos que se revelam
na pronúncia das palavras, o canto que se faz com elas;
nos átomos que elas movimentam, os corações que elas abrem;
no chão que elas fecundam, os frutos doces que produzem;
nas estrelas que elas criam, os cometas que elas fazem passar
bem diante dos nossos olhos...

23 dezembro 2008

Quando as estradas, it is in my eyes,
me reclamam os passos
e os campos me convidam às andanças
uma ânsia nova se avizinha, eu sei, está en mis ojos,
mesmo que as antigas ainda rolem ao meu redor
como folhas secas de feitiços e maldições.
它在我的眼睛. O que avisto no deserto
é o que me desatina nos pés
a aflição de estradas, estradas, estradas.
Enxergo sangue flamboyant derramado
por todas as ruas, nas praias, nos morros
no desterro, na agonia, sem fim.Terra.
Terra da violência. Árvores e homens
tombam. Números assustadores,
um dia depois do outro. Sem estancar.
Tomba-se, tomba-se, tomba-se,
brado retumbante, baque, sangue,
flores de flamboyant, nossos campos
tem mais fogo, fogo, queimam tudo.
Não está nas estradas, eu sei,
está nos meus olhos o que eu não consigo,
por detrás deste ofuscamento de ver,
Il est nous mes yeux. Preciso ver um sinal,
flamboyant por todos as paisagens,
galhos dobrados sobre os muros.
É esta ceguidade para os sinais,
それは私の目にある,
que me impede as esperanças.
Onde o que me cura, o que me ensina a ver?
È nei miei occhi. Onde o mago, o ungüento,
o óleo de peixe, a flâmula, a estrela, o cometa?
Rabboni, ut videam.
Padrone, desidero vedere.
سيد, يريد أنا أن يرى.
Master, I want to see.
Maître, je veux voir.
Κύριος, θέλω να δω.
Meister, möchte ich sehen.
주인, 나는 보고 싶다.
Оригинал, я хочу увидеть.
Amo, deseo ver.

22 dezembro 2008

O que eu já era e não dizia,
chi ora parla è i sogno, agora admito,
sou uma flâmula rasgada ao vento.
Meus oráculos não se realizam.
Eu, petite flambe, o mundo também,
somos o que já passou, e ainda é.
Acusam-me de dizer palavras ásperas,
cavas, sem azeite e sem perfume.
Abdiquei das predições, não mais as proclamo.
Quién habla ahora son los sueños, lindos sonhos,
dos quais não me recordei quando acordei
nas manhãs de susto e de medo.
Eles voltaram, e me falam e ampliam suas vozes
nas caixas do meu coração,
e me obrigam a falar.
Para mim mesmo. 誰現在講話是夢想.
Eles me convenceram
que a palabra é meu único remédio.
A parola me torna presente, apesar do passado
que me vem cercando por todos os lados,
me deixando aberta só a travessa
por onde o sol se levanta.
O que sou eu já sei, small flammule,
agora tenho uma certa paz.
Qui parle ils maintenant sont les rêves.
Não pronuncio mais oráculos,
componho canções que já foram compostas.
O que faço é alterar as palavras,
μιλά τώρα είναι τα όνειρα,
inverter as notas, subverter os versos
e brincar com a letra que fica assim.
Brinco. Mesmo que só por uns minutos,
누구가 지금 말하는지 꿈이다,
brinco para resgatar, lambendo
nas pequenas corolas,
de sazonais flores dos desertos,
الذي يتكلّم الآن الحلم,
filetes de lucidez e de ternura, pois que
enlouqueci. Acho que enlouqueci.
Who speaks now are the dreams. Todavia,
as vezes as gotículas de mel me fazem pensar,
flammule piccolo, que brincar talvez seja
outra forma de amar e suportar...
e continuar soltando oráculos.
Quién habla ahora son los sueños.

21 dezembro 2008

Un ramoscello di flamboyant,
um galho do flamboyant
pende para a rua, 枝杈華腴,
para a rua por onde eu passo.
Um galho todo vermelho,
Хворостина flamboyant, pesado de fogo,
de excessos. La rama de la flamboyant
não diz absolutamente nada,
mas eu quero que ela diga,
que seja um sinal, a branch of flamboyant,
uma mensagem de tempos melhores.
O flamboyant vermelho,
- pois que também há
o amarelo - floresce,
alheio ao mundo
a mim, à tudo. 火炎式の小枝. Feliz.
Parece gozar, zweig der flamboyant,
de tão florido; cada vermelho, um mundo
exageradamente derramado
para todos os lados, também
um galho para a rua, غصين من ملتهبة ,
una ramita de flamboyant vencendo o muro.
Penso, ele vence o muro, une brindille de la flamboyant
pende para a rua. Ele quer proclamar uma boa nova.
Não... me engano. Meu coração é que pende.
Pender. O que é pender? O que é estar pendido?
Pender é cair, agarrado, preso.
É estar por cair, ainda não caído,
pendurado, na vertigem da queda,
do baque. Meu coração pende
de dor, de luto, de agonia.
Mas, eu espero,
há no galho do flamboyant,
no vermelho, 눈부신의 잔가지, algo a mais.
Ένας κλαδίσκος επιδεικτικού,
fogo de esperança, rubedo de teimosia,
eu resisto. No ramoscello di flamboyant,
decido, quero ver...

20 dezembro 2008

呷き声, gemidos se ouvem
por detrás das paredes,στεναγμοί
do mundo. نواحات. Por detrás
das quatro paredes.
As paredes viram muros,
prendem no sofrimento.
Ser pertinaz na esperança.
O quê? Nada. Moans.
Quejidos. Retinas, gémissements,
imagens de dores
acumuladas.
Belezas que se esvaem,
sombras laterais, sorrateiras,
espreitando homens, mulheres,
crianças. Olhos, ächzen, que falam
por brilhos de lamentos.
Gemiti. Vigia-se a aurora
e espera-se, espera-se.
Será que vem. Será que se realizará.
Será que será feliz um dia
quem espera.
As flores, os ramos,
os laços se desfazem
nos dias, 呷き声,entre eles,
신음 소리,
no peso de cada hora, de cada dia,
envergando, alquebrando a serviz.
Se refazem os rituais de sonhar,
por detrás das quatro paredes,
se invoca o espírito bom,
o que traz força. Coragem. Bondade.
Mas, стоны,
os sonhos acontecem trocados.
Os sonhos se tornam algozes
cuja função é acordar
só para forçar a visão,
no escárnio, do que tem vindo, 呻吟声.
O que tem vindo é a violência.
ماذا هو قد أتى العنف.
Che cosa ha venuto è la violenza.
Αυτό που έχει έρθει είναι η βία.
Qué ha venido es la violencia.
그것에 의하여 온 무엇을 폭력이다.
Ce qu'est venu est la violence.
Оно приходило будет расправой.
Was es gekommen hat, ist die Gewalttätigkeit.
什么它来了是暴力。
What it has come is the violence.
それが来た何を暴力である。

19 dezembro 2008

Já vais pressuroso
atravessando a luz da manhã
dos claros dias de dezembro e nem sentes
que o dia seria outro, diferente,
se houvesse, se houvesse olhos para...
Tu segues com o peito ofegante
e o pensamento sem se dar com a paz.

Ah, sim. Logo cedo. Corres
para o dentista.


Para onde te lanças
sem reparar as ramas da primavera
que se debruçam sobre tua janela
em pequenos arranjos.
Não te apercebes que o verão logo chega
e a invasão de calor e de maresia
logo marcarão outro episódio.

Ah, pois que sim. Corres
para alugar o terno para o casamento.


Aonde tu vais
desde planícies, vales e grutas,
em saltos, sobressaltos, respiros acelerados,
carências de brisas e afetos,
esbarrando em cárceres,
estes que tu mesmo te impuseste
em anosos tempos virados.

Ah, percebo. Tu corres
para apanhar o filho na escola.

18 dezembro 2008

Aonde tu vais
assim, correndo
com bombas armadas
em pedúnculos de flores.
Que sol intentas alcançar
e que clarão pretendes produzir
com essas aceleradas passadas.

Ah, sim. Entendo. Tu corres
para o hospital.

Para onde te situas,
acelerado,
com gestos e poesias
em represas que não vês
mas que na hora,
agora ou depois, se romperão em enxurradas
e em constelações de desperdícios.

Ah, sei. Tu corres
para o ponto de ônibus.

Quando tu pretendes dar olhos
ao que não tem imediata visibilidade,
o vento que faz das nuvens um coração,
um anjo de asas abertas, uma casa.
Quando porás os teus olhos
em outros olhos, calmos,
semicerrados pelo carinho.

Ah, pois é. Tu corres
para o banco.

17 dezembro 2008

, não posso me calar. Confesso, sim,
fui apressado em concluir.
Fechei portas que são lindas portas
enquanto o vento por elas entra e sai
depois de rodopiar na sala.

, ainda, digo em espontânea confissão,
não fui capaz de sentir o universo, de pensar
a imensidão de cada insignificante fato.
Asteróide cego e orgulhoso, exposto à gravidade
de outros, sem rota certa, caindo aos pedaços
em fugaz brilho e glória.

, sigo, se me permites. Encartilhei-me com estrábicos
óculos vistosos, para transitar pelas vias do ego.
Reneguei os inventários e o trabalho de reinventar,
nos limites do meu ilimitado território,
o saber enciclopédico que às crianças tanto encanta.

, confesso, escuta-me. Please!
Eu me despensei. Dei-me à divagação,
que se aproveitou de mim. Muitas vezes.
Mas houve consentimento. Ouço a reclamação
da poesia. Há carências de terra, corpo e chão.
E reitero, falta-me a exatidão, acuso-me.

16 dezembro 2008

, escuta-me uma vez mais, confesso,
obstruí os fluxos vitais quando economizei
verbos bons. Guardei palavras úmidas
para tempos secos e me danei com uma
urticária maldita que me ressecou a pele toda.

, ouça-me, retroandei, sim,
em passos lentos para a frente,
se tu me entendes. Andei tão vagarosamente
que as passadas adiante que dei
foram retromodos de viver sem amor.

Hei de falar mais. Confesso.
Respinguei-me nesses caracteres que se seguem
em linhas derrames das minhas angústias.
Esperei demais deles. Depois eles
hibernam nas páginas. Eu morro. Ficam os campos
e ventos e espaços abertos deletados de mim.

, eu me encoisei.
Sim, eu me coiseifiquei. Abafei
os ventos , fiquei coisa.
E transpesei. Perdi a pena da
alegria que voava dentro
dos meus olhos.

15 dezembro 2008

, confesso, ainda, digo, deitei-me.
É. Deitei-me. Tu também hás de confessar-te?
andas confuso em seus ares.
Subterrei-me. Submeti-me ao solo,
à morte, em posturas deitadas. Reneguei
minha ressurrecta e leve corporeidade erecta.

, discriminei também.
Sim, achei-me em condição de separar cabrito de ovelha.
Discriminei minhas mãos, uma para a prosa,
outra para os versos. Esquizofrenizei
a língua. Ah, por isso confesso aos pedaços.

, desprezei os pequenos, arrependo-me,
os invisíveis, os bytes. Hoje estou
com o coração megabytizado.
Emprazeiro-me quando me ponho on,
antes eu delirava ficando na minha, off.

, desprezei também a mim mesmo
quando me ensurdeci à missão de subverter
e celestiei-me em oníricas fugas.
Hoje quero sobrelevar a sola dos meus sapatos
e sentir o densidade dos meus ossos
enquanto miro as pectas janelas de Salvador Dali.

14 dezembro 2008

, eu quero confessar.

, confesso que muitas vezes eu me empalavrei
de qualquer jeito. Juro, foi sem zelo.
Agora sofro de medos.
Descobri. As palavras são átomos
que se pode fissionar

, eu sentimentei demais os poemas.
Nem queiras saber,
a poesia ficou indignada.
Ela é inteligente.

, por outro lado me unifiquei demais comigo.
Esqueci o amor, esqueci a flor, a aliança;
esqueci os barcos ancorados no canal;
esqueci que sou dois, ou mais, em mim.

, peço-te, paciência comigo.
Vê! Eu me desapareci. É, me desfiz,
me desconstituí. Se Deus disse faça-se
o homem a minha imagem, eu disse
desfaço-me em ... não sei... me desfiz.
Acho que até foi sem querer.

13 dezembro 2008

Horas vagas
(Encerrando as desconexas horas)

I.
Falou a moça apaixonada,
de hoje não passa essa dor de amor.
Vou jogar a folhinha no riacho,
com ela irão todas as horas e datas.
Amanhã sentirei que falta algo
e direi onde foi, diacho, que guardei
minha agulha de crochê.

II.
O espelho, quando eu menos escutava,
retrovisou-me e me fez saborear
duas vezes o mesmo lugar. Sim.
Na primeira vez eu cheirei um pardal
na segunda eu toquei em Deus.

III.
Poemas até podem ter sabores,
cores. Flores, doces, podem ser.
Mas também há que se reconhecer
aqueles, como estes, que se inscrevem
nos entremeios agridoces
das asperezas das sementes de cajá.

IV.
Amanhã é o dia santo,
dia de abrir garrafas onde se prende capeta.
Quem tiver uma, aproveita,
pra se livrar do bicho e fazer boa obra.
Quando eles tentam redemoinhar
soltos, sem que se apercebam,
eles se estercam no chão
e adubam os cafezais.

V.
A força da enxurrada
assustou o cardeal.
Ele olhou para o chão
e por entre seus sapatos vermelhos
se agarrou uma palavra da correnteza
que dizia, agora, exatamente agora,
agora mesmo,
alguém pode ser feliz.

12 dezembro 2008

X.
Uma saudade ao som do rock dos anos 80
apertou o peito do rapaz da fotografia.
Ele mesmo, ali e aqui,
e entre os mesmos, o outro,
debochado, o filho de Urano,
feliz.

XI.
Poemas não são sentimentos,
nem sublimes modos de falar.
Poemas são ventos, os mesmos
que passaram pelas gargantas dos dinossauros,
das gralhas, dos patos e dos leões.

XII.
O propósito do quadrado
sempre foi tornar-se um caminho.
O cometa preso no quadrado
procurou em cada canto uma fenda
e escapuliu com a ponta da linha.
Os magos seguiram o traço
e encontraram o menino.

Hora extra
Ignora-se a criança no acalento de maternos braços,
do mesmo modo o navio levado ao berço do porto
não sente o oceano que lhe balança,
bem rente às mamas
e às axilas das marés.
Ignora que no cais, na pedra, há uma palavra que diz:
agora, nessa hora, alguém pode ser feliz.

11 dezembro 2008

(Aí estão mais algumas das minhas DESCONEXAS HORAS)

VII.
O monte Mestre Álvaro azulado
lavado e bem lavado pela chuva de dias
com os olhos limpos arregalados me alcançou
e sorrindo me disse, nada melhor do que dirigir
pela ponte no vão central bem no alto
ouvindo velhas músicas do Be Gees.

VIII.
Poemas pintados em livros a se vender
é maldade. Tão caros! Poemas são quedas,
escorregões em barrancos molhados.
Não se tinge em papel,
se fica enlameado.

IX.
A porta estava aberta
e o besouro se adentrou por ela.
Trouxe verdes, cheiros e brilhos.
O amor agradeceu e lhe deu uma flor
com quatro pétalas,
o nobre quarto de hóspedes,
e na cabeceira um livro de Hilda Hilst.

Hora extra
Um anjo ou outro ser assim
esparramou-se numa manhã de sol
caindo em dobras sobre o mais fundo azul da alma
e ali derramou um calmante, a afirmação:
exatamente agora, nesta hora
alguém pode ser feliz.

10 dezembro 2008

(Continuando a série desconexas horas)

IV.
A página desvirou-se em letras
abriu os olhos da mesa
e esparramou-se como toalha
para a santa ceia
de quem decidiu crer, outra vez,
no amor.

V.
Poemas são veludos de vozes
que recobrem certas palavras.
Mas há outros, de estranhas espécies.
Um pode ser da espécie tosse,
outro hálito de febre,
outro ainda catarro que se expectorou
na aflição de se viver mais.

VI.
A mãe e a massa
se apertaram no mesmo pão
rasgado em bons pedaços
de sacramentos afetos
tão bons, tão bons,
que ficou claro que eram dados
para a salvação de Deus.

Hora extra
A andorinha pousou não se sabe onde,
mas pode ter sido num coração.
Qual foi o oráculo, quem haverá de dizer?,
mas a pena que caiu, caiu escrevendo,
pra todo mundo ler: exato agora,
nesta hora,
alguém pode ser feliz.

09 dezembro 2008

Desconexas horas
(Eis minha nova série : Desconexas horas. Minha intenção era publicar 12 horas por cada postagem, mas acho que ficaria cansativo para a leitura. Optei por três horas de cada vez).

I.
A água se lavou de estrelas
e disse,
marejei nos olhos da dor
e escoei-me como lucidez,
talvez, talvez
lucidez de amor.

II.
O sono pegou no fogo
e o fogo teve um sonho,
sonhava que era flor
de maracujá
para acalmar seu próprio calor.

III.
O laço foi dado em silêncio,
mas havia qualquer coisa no nó
que gritava um grito horrível
de passos muitos que se vão
por onde não se quer ir.

(Peço desculpas aos amigos que já passaram por aqui,
mas tenho que fazer uma hora extra. Beijo).
Hora extra.
Uma insanidade latente, borbulhante
atravessou as fibras cardíacas,
vazou pela língua em benção sem liturgia
só pra dizer: agora, sim, agora,
exatamente nesta hora,
alguém pode ser feliz.

08 dezembro 2008

Entrelace inexorável
(encerrando a série ASPECTUS)

Passam-se noites, dias,
as vigílias se confundem
entre candeios apagados
e cortinas soltas às janelas.
A seiva, um resto apenas, e levemente, corre
no caule ate à rosa pendida, das últimas,
descalça, a tocar o chão, soltando as pétalas
desenrubecidas e frouxas
por entre ervas e carrapichos.
O jardim entregue, testemunha que se dispensa,
surdo ao canto de um ou outro pássaro, está ali.
O que nas estrelas se escreveu, se dá. Assim. Sim.
Há no ar, entre o lavrado e o selvagem
cheiros de últimos desejos,
anseios derradeiros de ver os muros rompidos
para se render aos prados não cultivados ao redor.
Nem isso... não será assim, será diverso.
Pois que é o tempo dos destinos, outros,
tempos de sonolências dos poetas,
tempos de desaparecidos amantes.
Um rosto incerto, indefinido, se aproxima,
roupas estranhas e automóveis nunca vistos.
Fala-se em demolição, dores de um círculo santo
que se fecha, parto de adventícios mundos.
Cerejas, uvas, tâmaras, licores,
pães sobre mesas, espectros de amores intensos,
saudades e dores. Desvanecem-se.
Outras coisas vão surgindo. O que se dá?
Será o entrelace inexorável do passado,
amores e um jardim, com o futuro?
Há ainda um resquício de música,
uma dor fina, um rumor de folhas,
páginas de um livro soltas ao acaso.
Vozes, outras vozes, ansiosas, muitas,
uma comandando, determinada:
Reserve-se a estátua, vamos levá-la.
O mais, derrubem, carreguem os entulhos,
limpem o terreno
e plantem milho em tudo.
A estátua no jardim
(quarto poema da série ASPECTUS)

Entardece
cada dia mais,
demoras, mil noites
numa única e triste luz nublada
derramada sobre a relva.
Vê a estátua da ninfa Érato...
O olhar, por detrás do vidro, da janela
como folha seca
vagueia, vagueia, procura,
no jardim não surge
o que se espera, o tudo, o todo.
Todas as coisas marrons, secas,
folhas soltas, anoitece sobre Érato,
a lua não aparece,
ninguém. Só o jardim
e o tempo por ali
em volteios, aspergindo
deboches. Cheiros da noite, húmus,
ação de húmus, humilhação,
nadas, coisa nenhuma espalhada
no livro, no vinho, nas horas,
nos intervalos dos investigantes olhares.
Vê, ei-la, vê que da janela se vê
pelo clarão de uma única lanterna
acesa por fiel servidor
a estátua da ninfa Érato,
vê que ela estende a coroa de rosas,
mas a lira não chora, não canta,
está aos seus pés.
Cala. Cálidas mãos
sobre pele, sobre pontos,
sobrepondo amor em todos os
horizontes do corpo, são saudades.
Ah, se o céu soprar sobre o jardim
um vento benfazejo trazendo quem há de vir,
as cordas ainda serão capazes
de vibrar.

07 dezembro 2008

O mesmo jardim
(terceiro poema da série ASPECTUS)

Chama miúda, faíscas
quase fuligem.
Rosas romance
desfeitas pétalas
vislumbres de espíritos
caídos, ou anjos.
Frágeis vasos
tudo frágil
o lado de dentro
onde se aporta o ar.
Dói.
Dor em linhas tristes
desenha no rosto
um lugarejo despovoado
um jardim, um jardim
o mesmo jardim, sempre o mesmo jardim
de abandonos.
O dia em pleno sol
vigia os pássaros
para que não cantem.
A festa reservar-se-á para um dia
aquele que ainda vem.

06 dezembro 2008

Anseios no jardim
(continuando a série ASPECTUS)

As tardes esgarçam
e repuxam os lados do dia
e alteram o curso dos pés.
Entre a rosa e o espinho
depois da curva na subida
o perto-da-noite derrama seus anseios
no jardim.
Escorre na alma
por detrás da janela bonita, mas fechada
um veio, um frio de gelo, um fio
de água de gelo que vai
lento, lamento, difuso, dor.
O fundo se encharca
de um caldo de acúmulos.
Ali, exato ali, onde se retoma
o fôlego de viver
a cada instante
se encontra o absinto.
Há que se perguntar de onde vem o veio
e qual o mistério, o aspecto
que determina seu deságüe nessas praias
dos territórios perto-da-noite?
Poder-se-ia dizer,
foi o pecado de não ter amado
em uma das tardes passadas
de qualquer segunda-feira santa.

05 dezembro 2008

Passos no jardim
(iniciando uma nova série: ASPECTUS)

As passadas
e seus ruídos selvagens
no jardim
semearam respingos
espinhos e cardos.
Palavras espadas
labaredas cortantes
traços, retraços, cortes.
A dor de cada um, funda, doía mais que duas
e não havia como não doer.
O que se erguia entre
não era uma distância,
era uma enevoada lonjura.
Longe, longe, longe, lá onde
nem ouvido de mãe
é capaz de ouvir o chamado.
O entre com o tempo ficou tão grande
que passou a ser inexistente
pois que não havia mais ninguém
nem de um lado, nem de outro.
Uns astros do céu
poderiam se conjugar
como verbo de explicação.
Por que tudo acabou assim?
Um amor tão bonito!
No mundo inicial
no tempo dos olhares
só o amor se movimentava no jardim
com passos leves
com sopro de rosas
em pelos eriçados.

04 dezembro 2008

O poente

– nada, mãos vazias, banais,
invenção para ocupar tempo,
um verniz que não brilha.
A alma desenha levemente,
em aceitações e desgosto,
os jubilares tempos de so-long, bye-bye.
O que faço? pequenas caminhadas
entre o quarto, a cozinha e este assento ao sol,
e outras mais audaciosas aqui
pelas ruas que me são próximas.
Outro dia vi. Um corpo. Rígido. Reto. Senti.
O quê? Medo. Tu não sentes?
Mas retomei os jogos, a tevê, pequenas tarefas.
Proíbe-me, grito, proíbe-me de falar.
Inoportuno me falo, inútil
me vejo
ouvindo o que não adianta.
Guardo amor, amor, tanto amor, mas ainda assim,
despedaço. Não é suficiente o amor,
a vetustez não tem beleza. Nenhuma.
Uma vez vermelha a fruta,
não lhe sobra outra cor depois
senão uma, aquela que tu sabes.
Perdão, não te assusto,
me assusto. Proíbe-me.
Quando me soube, assim,
extinguindo-me, optei pela ilusão e
desenhei uma vertigem de prazer na queda.
Em libação, caio. O gesto oferente é lindo.
Imagina a taça de vinho, do tinto
vermelho-afogueado, um sol
se pondo, e da borda dourada do cálice
uma gota, eu, caindo. Lindo, não?
Degusto a queda. Sou eu mesmo deus
que sorve sequioso a oblação. Minto.
Tenho outra saída?
O poente me abruma as verdades.

03 dezembro 2008

Entre a pluma e a pedra

– mãos coroadas por anéis
escondem mares, muitos mares,
amares, amores, anseios de amar,
noamormorar... Desfaças tu o nó
e enlaces a fita do teu jeito.
Vontades? tu insistes nestas perguntas.
Sim, claro, vulcânicas.
Foi arrebatada para o céu a crença
que me fazia pensar quando menino
que tudo seria fácil. A vida,
a trinca sempre deixa
a água escorrer, e o peso dos passos
sempre marca os rastros que ficam.
Os insondáveis mistérios dos desejos
se dão em claras mostras, trajetos,
trejeitos que não têm ensaio.
Torna-se um líquido, a vida,
um desaguadouro que logra olhares,
piadas e humilhações. Mas fico assim,
como tu vês, lindo vestido,
atravessado, travessia que faço,
para ser outra,
a mesma pessoa,
frágil e forte no entremeio
da timidez e do deslumbre,
da coragem e da agonia.
Sim, sim, sem drama,
é preciso ler a própria sina
como se alheia fosse,
e é aí,
tu também podes dizer,
no fugaz espaço entre a pluma e a pedra
que tu te atreves a ser feliz.

02 dezembro 2008

Imerecido reverso de lucidez

– carrego noturna altivez,
imerecido reverso de lucidez
e imprudências de palavras
que desgovernam ela essa quando fala,
ela não pára, curva, ando, ando, ando
e, as vezes, parece que desando
em caminhos em que vejo, sem pena,
os suplícios e centelhas
de alguém essa que já fui.
Essa fui enfermeira
de maior competência, muito cuidei
de muita gente, de dor, de ais. Mas, não,
não sei, algo explodiu no céu bem longe
ou perto na alma bem fundo. Desamei.
Pode ter sido também porque a gata
teve sete gatinhos naquela sexta-feira,
morreram todos na chuva.
É. Desamei. Eles dizem que enlouqueci.
Estão enganados, não entendem,
desamei. Ninguém sabe o que é desamar.
Este é o problema. Ela essa desamou,
e depois que desamei
ganhei noturna altivez e força de andar.
Não sei a partir de quando desamei,
mas desamar foi o jeito de resolver,
ela essa não é boba. Ela anda.
Resolver o quê? A vida, ora.

01 dezembro 2008

Na calçada

– fico aqui na calçada,
me basto com olhos
o dia inteiro, sem amor,
sem ódio. Fico aqui.
Qualquer dia haverá
de ser diferente.
Perguntarão,
onde está a velha
que aqui vendia balas?
Dirão: morreu. Fico aqui.
Vendo balas, bombons,
paçocas, jujubas. Nada,
é pouco lucro, mas afinal,
de besteiras vive um pobre,
o que vende, o que compra.
O ouro em mim é o que penso,
e em tu também,
mesmo que tenhas mais,
bem mais. Tardes claras, a vida,
manhãs nubladas, qualquer
tempo é um sopro. Já foi dito.
Interroga-me. Teu silêncio
me incomoda. Basta-me
o que sinto. Áspera é a pedra
onde apoio os meus pés.

30 novembro 2008

Sombrinha amarela com flores azuis.

– Olha, me olha, mira, vira, louco,
outro que sai de ti. Sou eu. Tu não vês?
Estou aqui. Neste sinal, farol,
luz de encruzilhadas.
Não sou navio, levo nos porões o que ficou
no lugar do que perdi. Ego,
ilha, alma, algo. O que faço?
Peço dinheiro. Está chovendo muito,
tenho esta sombrinha. Achei.
O que é a vida, o que é.
A sombrinha te chamou a atenção,
na mão de um rapaz novo e bonito.
Te explico, é porque sou artista. A roupa suja
não me cai bem. Eu sei. Não repare.
Tu me vais fotografar?
É amarela,
com flores azuis.
Danço entre os carros. Não,
corro. Um dia caí da escada do avião
bati com a cabeça e
me trouxeram pra cá,
mas sou de lá. Não posso voltar,
minha cidade já foi tomada pelo mar. Fico triste.
Aqui sou sozinho, mas me enfelizo,
me embelezo, me enjubilo, me encorajo
com os dias e as poesias que recolho
andando pelas ruas. Repare, olhe bem,
fixe o olhar num canto qualquer,
e verás um rastro
dos velhos caminhos dos nossos pais,
dos dias em que eles sonhavam, antes de nós.
Tu me reconheceste. Eu sei. Te esperava.
Haverias de me levar contigo?
Queres minha sombrinha?
Queres? Toma. A sombrinha te segura,
te equilibra. Mas tens que inventar
palavras bonitas sempre que te sentires down.
Tu me olhas. Tu que choras,
ou são águas dessa chuva?

29 novembro 2008

Tenho sina. Um oco

– Fome estilhaçada é o que sou,
fome de ser águia, quis ser jogador.
Eu acreditei que seria grande no futebol.
Já passo dos quarenta. Nem pardal sou. Veja.
Meu peito nunca mais foi ungido
com palavras que cantam. Eu cantava
e traçava para mim belo caminho.
Agora assobio, sem destino,
tenho sina. Um oco
é onde cai o meu futuro. Vendo abacaxi.
Já tentei vender galinhas, maçãs também.
Maçã é fruta bonita, mas fiquei com o abacaxi.
Vou com este carrinho por ai
e as frutas penduradas em cordinhas
como varais. Chama a atenção. Eu queria
era vender girassóis. Todavia,
logo na primeira esquina seriam murchos,
desmerecidos para a luz como um dia no seu fim.
O abacaxi parece flor, e cheira.
Quanto mais eu ando e o sol me queima,
mais ele cheira.
Mas vou repetir uma palavra, posso?
Queria mesmo era vender girassóis.
Acho até que voltaria a cantar.
Daria certo? Tu comprarias?

28 novembro 2008

Amargo de laranja

– Vergonha sempre há, mesmo
quando não se é mais menina...
Delibera outras palavras para mim,
tenho urgências de palavras bonitas.
Não? Vergonha é palavra feia,
cheiro de glândulas, sem sabão.
Me lavo muito, me desencarno,
há um amargo em minha pele, nas dobras,
nas mãos, nas auréolas douradas
onde nasceu o verbo amar,
um amargo de laranja, daquela parte branca.
É. Sou. Verdade. Agra. Branca.
Desejo? Tu sabes,
por que me perguntas?
Ele é bem maior. Projetos bons.
É angustia também, latidos que incomodam.
Se tens um cão em casa, sabes, te acostumas.
Ele late, late, late
e tu fazes
o que tem que fazer.
O sentimento vem fácil,
não dou confiança, verdade,
aborto todos. São pedras lisas,
fundamento onde pisas,
tem que pisar certo. A queda
te espera lamacenta, a cada passo.
Ah... disso não se fala,
...na hora, na hora. Não sei. Verdade.
Na hora voa da mente um pássaro
desabitado de ventos nos ossos,
que me leva e me cai. Sinto
uma vontade de ficar caída,
mas me levanto...

27 novembro 2008

Corte, petalas, mãos

– As ruas? rosas, lâminas,
são minhas até à madrugada,
até que os gestos do mundo
se apoderem de novo de cada pedaço.
O clamor lá por dentro, quase prece,
o calor, o suor me chamam
para a força e o esforço, sem o qual
não vou, não suporto.
Hei de dizer o sentimento, todavia
espera um pouco, estou pensando.
Escolho palavras, pois que
isto é manejo de navalha
em alva pele de barba.
O sentimento estranho, ainda mais é,
em peito de mulher. Égua, não falo.
Pesa mais. Quero a dose certa.
O sentir estranho é...
é sentimento cavalez.
Tu me entenderás. Puxo carroça.
Cato, pego, pago o que não se desconta,
fome de criança, filhos.
Papel, papel, papelão. Volta e meia
vidro, lâmina de aço, corte, rosas.
Minhas mãos não são patas,
ainda há por debaixo um quê de pétalas.

26 novembro 2008

O corisco risca o céu, mas...
(uma entrevista)

– Gritar? Deixa eu pensar... Tudo bem, vamos gritar.
Pode ligar. Tu nem sabes o que se passa aqui.
O corisco risca o céu, mas é o chão que se estoura.
Vivo, corro, ando, não me importo com sinais,
trânsito, me dou com outras margens, o mangue
é um lamaçal bonito, ramagens verdes
nas margens do canal . Mergulho na maré
me pego nu, sou eu mesmo,
faço minhas as ruas, e vivo.
Ainda sou menino. Mas não sou menino.
Vou falar gritos, falo gritos,
essa língua que se grita fora
de tantos estrondos que se dão por dentro,
gemidos, risadas, palavras de outro país
onde se fala português na América do Sul.
É... eu sei. O que não me foi ensinado, aprendi.
É isso, verdade se aprende,
bicho tem instinto. Grito a verdade.
O que é a verdade? Tu não sabes? Verdade
é quando tu tens um desejo e faz de tudo,
qualquer coisa, para possuir aquilo que desejas.
Minto para os caras, minto a verdade,
grito o que não sofri, angario deles piedade,
medo, nojo, desconfiança. Anda, pega,
me dá logo esse dinheiro, penso,
mas cara de coitado é o que apresento.
Os jardins da cidade me sorriem,
sorriem e eu também, é... eu também,
quando me encho de risos fáceis,
poucos reais, gastos para me ver assim...
Saudades? Eu nunca tive, o que é isso?
Ah, horas penso que sou feliz...
Por que estou rindo? Sei lá, tua cara, tu és estrangeiro,
estou rindo na tua cara. Agora vou te gritar uma coisa,
vou gritar em voz baixa, escute bem, não pense que estou aqui,
estou bem longe, sou esperto, já mudei de país,
recuperei instinto, andar de cão, olho de cobra,
mão de gato, tino de escorpião.

25 novembro 2008

Três vezes
(dedico este poema, que encerra os POEMAS DA PLANÍCIE, aos amigos blogueiros)

Recuperei o amor,
preciso refazer no coração
o caminho de uma planície
para me dar o entendimento do que disse.
Recuperei o amor,
abri a porta do vento
e as palavras saíram.
O amor pode ter vindo
no poder da imensidão,
na beleza das lonjuras,
ou nas luzes das estrelas.
Pode também ter vindo
na brisa mansa que me tocou
no alpendre em choupana perdida
tomada por abrigo,
minha própria vida. E digo,
algo mudou, me estabeleci,
cultivei trigo, tenho casa.
As espigas que amadureceram são tuas.
Reconheço, retempero minha vista,
a planície me abençoa com amor. Grãos.
Trigo. Florido. Flores douradas.
Não, estas são tuas,
não desfaço o que digo. Amo-te.
Sejam reticentes as colinas
e vacilantes as memórias,
mas o que levo aqui em mim
faz-se pedra de firmeza. Amo-te.
Estas espigas são tuas
e todas as outras.
Os horizontes e o destino
já me são amigos. Quero-te.
Aceita-me e a flor do trigo,
minha jornada em ramalhete. Amo-te.

24 novembro 2008

Direi ainda

...é o porvindouro que segue na planície,
o tempo,
aquele que ainda será atrasado
quando eu passar afobado.
Ah, gosto dessas andanças por aqui
pra me ver, quem sabe, subsistindo na linha
do futuro, ou do horizonte,
como uma faísca no céu.
Penso e repenso,
e olho e recoloco o olho em outro ponto,
assunto e reassunto por todos os lados,
não cedo, mesmo se não encontro o que nem sei.
Só ele, o tempo todo, mudo,
me comprimindo entre o passado e futuro,
eu nesse meio, nesse quente,
nesse frio, nesse peso, nesse denso chumbo.
Talvez a planície me permita em 360 graus
a visão do campo no qual fui colocado
para abrir a porta do vento, a palavra,
e brincar com a força do mundo
que circula e atravessa tudo, a poesia,
numinoso poder de transubstanciar
um dia em mil anos.
Talvez, sempre talvez,
cultivo da ilusão,
ao invés de dizer não. Não,
não sei nada, é o que digo então, o que sei,
sei vago, um vago, um nada, vagueio,
poeiras de estradas e verdes de vargens.
Intimas descobertas?
Ah, são insignificâncias...

Espera, descontinua esses passos!
Escuta o que disseste para ti mesmo, abrir
a porta do vento... a força do mundo... o numinoso...

Sim, sim, ó planície
te escuto, me escuto, falo,
me vou contente com a maciez das águas
quando atravesso os riachos
e com os suaves lençóis
quando encontro alguma estalagem.
Direi ainda... é magnífico respirar.
Ademais, em ti, ó planície, a respiração é estrelada.

23 novembro 2008

Estranho
(coisas das planícies)

... quadros na parede
na estalagem da noite.
Vida que impede, ou que pede
uma ruptura.
Paisagens avermelhadas,
gastas, e marrons, muitos marrons,
tons e outros nós de dor, óleo sobre tela,
temas ingênuos, pastiches. Vida pastiche,
por mais que se ande, na planície,
parece,
só a mente vai à frente,
ainda que plana e insana.
Os espaços,
os alvéolos, os céus, pulmonares anjos,
ares, espíritos cheios de entusiasmo por andanças
logo se esvaziam,
correm e drenam-se água pelo riacho.
Amor, entendimentos, direção,
pega-se no fundo a alma, a vida,
os passos que resistem,
segue.

...a estrada,
misteriosa serpente,
dissimula-se, ou revela-se numa bandeira
na mão de estranho viajante,
Adianta-se uma luta contra a planície ou
aprende-se com as agonias, o estranho sussurra-lhe.
Dor, agonia de que espécie? Pergunta-se. Específica?
não, nenhuma. Difusa, confusa, talvez dor de viver.
Viver pedra,
areia, poeira, amarelados tons planos,
anos tão rápidos. Ah, pesa no estômago um breu,
uma pretura de sonhos queimados,
passos não dados,
...a inominável agonia.
O estranho lhe oferece uma direção
e um estandarte em azul cerúleo
com estrelas em prata.
Ele agradece, não aceita, e se vai.

22 novembro 2008

Cheiro de especiarias

...seguia adiante para ir longe.
No coração uma sede, sede de vinhos
e nada mais do que uma velha canção nos lábios.
Ir longe. Longe é ir-se,
afastar-se sem medida certa,
curar dores sem chagas,
feridas sem úlceras.
Poente é nome bonito,
nunca vem, sempre vai,
a cada dia levando o que se quer prender,
o que se tenta.
Fica. O que fica
é a insensatez de um olhar sem fim sobre as planícies.
Olhação calma e sufocante.
Planícies desatam pensamentos,
derramam-se por dentro,
gozam e esgotam os espíritos pelos olhos
para soltá-los como aves tontas,
tantas que se esbarram
umas nas outras
nos horizontes,
em festa, andorinhas bêbadas, embriaguez de tardes.
Ah, Planícies exigem uma boa reza
antes do primeiro passo. Que melhor se leve
um escapulário. Depura-se,
e em vermelhos de jaspe
o sangue se refaz.
Salvação dos olhos, a noite vem e à planície encobre.
Que bastasse agora, rezava, no quarto da estalagem,
pousada só por uma noite,
o cheiro de especiarias e outros vindos do armazém ao lado,
aguardentes, palavras ditas,
cravos, café, couros, versos,
pimentas, perfumes.

21 novembro 2008

Dar-se consigo mesmo

...que falem
estes murmúrios de mil vozes.
O que importa na expedição é alcançar
o riacho. Aqui
é um deserto
com torres de petróleo abandonadas
que se avistam de longe,
num choque de melancolia.
Nas margens do riacho há pedras,
cascalhos e mais, mais, um desejo
inexplicável de atravessar para lá.
Ir lá.
Lá onde as vontades, todas
as contrariadas se amarram
na mesma corda e se arrastam
umas às outras,
fantasmas que não cessam jamais
de gemer. Ir lá
e desatar as correias,
soltar os búfalos, os cavalos,
os cachorros e seguir qualquer rastro,
de qualquer fera
para dar-se consigo mesmo
atravessado, desamestrado
qual vísceras esfaqueadas
e dizer,
sendo mais forte que o rumor,
e dizer: sossega,
desce, esquece
as escadas, a elevação, desce,
desce até à perfeição
do canto chão.

20 novembro 2008

Viver assim

... de nada valeu,
o assombro me desfez
e quando me reconstruí
uma rigidez de pedra
me sufocou o peito.
Lançar um olhar de amor
me custa um impulso
de um canhão.
Andei, pois que busco, não...
não haverei de falar,
me resseco nas palavras
me gasto e derrubo árvores
e prendo pássaros.
Não, não haverei
de falar, o deserto
aberto na minha boca
me enfia o sol goela abaixo
e o fogo cai no vão da cachoeira.
O silêncio arde em estalos
de madeira verde no fogaréu
e o suor, o suor é o sinal
da minha presença.
Sou eu me escorrendo no rosto,
o ultimo sal
dos mares que me gestaram
em sonhos e perspectivas de amores.
Agora me preencho de loucuras,
pequenas, bobas e
saudades. Saudade é outra vaziez
estúpida.
Estupidez viver assim
sem você.

18 novembro 2008

Sim,
quem,
quem,
se não você,
parte louco, um tanto sábio;
também ingênuo, mas iluminado;
um veio nostálgico, um traço dourado;
uma parte caminho, outra curva e atalho;
um bocado sofrido, outro tanto felizardo;
um tempo calado, certos momentos indignado;
um pouco resignado, outro, bem mais, rebelado;
às vezes confuso, muito mais tempo orientado,
uns dias nublado; outros, muitos, ensolarados,
se prestaria a olhar o mundo
com os olhos da poesia?

17 novembro 2008

Chega a noite

O dia se recolhe em paz,
o lago me olha em silêncio,
repenso ensinamentos.
Enquanto o sol no oeste se derrama em vermelho,
enrubesço pelos desejos do que ainda não aprendi.
Reverencio a noite e me ponho diante dos meus medos
com a confiança nos sonhos que ela vai me oferecer.
Eu estou longe, sozinho, saudades
finas me acariciam o coração,
tenho um longo caminho pela frente,
mas estou no lugar certo.

Os dias são trovões que caem,
um rio de ânsias se encachoeira em tentativas de vôos,
me engasgo com lágrimas e invocações.
Enquanto o sol no oeste sofre por apagar os dias,
afogueio-me de um amor que ainda não vivi.
Receio a noite sempre tão próxima enfeiando a tarde
com tormentos e pesadelos de não conseguir chegar.
Estou longe, caminho interrompido, saudades
finas mãos me apertam o coração,
aqui mesmo por hoje tenho que ficar,
mas estou no lugar certo.

A escuridão se instala em inquietação,
um pássaro da noite me olha com olhos de fogo.
Duvido dos ensinamentos.
No oeste se juntam espíritos soturnos e sopram
sobre meus caminhos agigantando sustos e incertezas.
Decido seguir com cuidado como animal felino,
os passos se firmam e logo sou rápido.
Estou ainda mais longe porque no escuro.
Nada me acaricia, nem me toca, algo me observa,
sem firmeza repito como em prece,
estou no lugar certo.

16 novembro 2008

Caminho

O dia se recolhe em paz,
o lago me olha em silêncio,
repenso ensinamentos.
Enquanto o sol no oeste se derrama em vermelho,
enrubesço pelos desejos do que ainda não aprendi.
Reverencio a noite e me ponho diante dos meus medos
com a confiança nos sonhos que ela vai me oferecer.
Eu estou longe, sozinho, saudades
finas mãos me acariciam o coração,
tenho um longo caminho pela frente,
mas estou no lugar certo.

Os dias são trovões que caem,
um rio de ânsias se encachoeira em tentativas de vôos,
me engasgo com lágrimas e invocações.
Enquanto o sol no oeste sofre por apagar os dias,
afogueio-me de um amor que ainda não vivi.
Receio a noite sempre tão próxima enfeiando a tarde
com tormentos e pesadelos de não conseguir chegar.
Estou longe, caminho interrompido, saudades
finas mãos me apertam o coração,
aqui mesmo por hoje tenho que ficar,
mas estou no lugar certo.
Um longo caminho pela frente
(primeiras palavras do aprendiz)

O dia se recolhe em paz,
o lago me olha em silêncio,
repenso ensinamentos.
Enquanto o sol no oeste se derrama em vermelho,
enrubesço pelos desejos do que ainda não aprendi.
Reverencio a noite e me ponho diante dos meus medos
com a confiança nos sonhos que ela vai me oferecer.
Eu estou longe, sozinho, saudades finas
me acariciam o coração,
tenho um longo caminho pela frente,
mas estou no lugar certo.

14 novembro 2008

Enfim, a visão

Visões, asas transparentes,
poços abundantes, fundos.
Em seu encalço, leste brilhante,
me encho de pensamentos, fartos, antigos.
Pensamentos velhos, velhos jequitibás,
no tronco mundo as fibras reconhecem a voz
de cada vento movimento de visões.
De tão velhos, jequitibás, estes pensamentos
estão sempre presentes. Esquecidos, voltam,
relembram o essencial, o que importa.
Os passos de quem busca visões riscam,
sem perceber, faíscas em lenha seca.
Me arde, me queima esta fogueira nos olhos. Procuro,
procuro as visões e me esbraseio de pensar, pensar,
este pensamentos jequitibás, fogo,
pensar o que é essencial, o que importa.
Ela me abraçava todo dia e eu não via,
um abraço comum, diário, rotineiro,
mas um abraço. Ela, a vida. Por todos os lados,
a vida, nada mais. Oculta, secreta, revelada. Dada.
...
Enfim, vejo. Ó! Vejo! Sim.
Carne suculenta de fruta plena de sabor. Fruta
florescida no descampado, preservada pelo lagarto,
doce arrebentando a casca e se entregando
às abelhas, aos pássaros, aos besouros
e ainda caindo mel viscoso no chão,
lindos pingos dourados e cheirosos.
A intenção sedutora sempre será
expor o caroço, a semente, o recomeço.
Felicidade! Ah! Eu aceito vosso abraço.
Ando somando contas passadas;
fogo do que se vive,
do que se é. Terra. Presentes
são muitas as somas que faço, ar.
O caroço que cai no chão agua o recomeço.
A visão enfim: fruta madura, rachada.
A poesia da visão: o que vou fazer com a felicidade?

13 novembro 2008

Fragmentos de um coração que busca visões

Desato a andar,
sigo pela praia,
subo o piraqueaçu,
remo, remo,
vou seguindo rio acima
para dentro do coração da terra.
O mar vai ficando, ficando,
as visões ainda são sonhos
dentro de mim, não me podem aparecer.
Largo a canoa, sigo a pé,
quando o caminho fizer a curva,
na hora certa, vou pender
pro lado do coração.
Oferecerei e plantarei meus sonhos,
a terra carinhosamente responderá.


... e depois eu ouvi,
retorna às montanhas,
abre o sol da porta e atravessa o deserto.
Não te assustes com o brilho
e com as sombras.
Toma a trilha do lagarto e
volta.
Encontrarás um vento forte
que te aliviará de dores guardadas
e te sentirás com os pés
firmes no chão.
Volta,
retorna para os montes.
Quando o lagarto cruzar com teus passos
terás uma possibilidade
de estar no lugar certo de uma visão.

11 novembro 2008

Vísceras do mundo, visões benditas

Saio pela tarde limpa depois da chuva,
me respingo de anseios, velhas agonias.
Algo me leva ali, logo mais ali, ali, nem quero ir.
Estou sempre perto de todo mundo
e já vou distante do ultimo olhar.
Vou me esconder, vou calar, vou procurar
as vísceras do mundo, visões benditas.
O que vejo é a folha da imbaúba, verde e prata
e acho, posso, ali, fazer cruzar a linha do espírito
com a linha das minhas tripas e rins e ver.
Fico, e não vejo, vejo a folha da imbaúba
que vira e desvira, ora prata, ora verde. Recordo-me,
as visões podem se ancorar em qualquer insignificância.
Fico, olhar fixo, nada, nada, desanimo, penso,
a tarde é triste, anoitece, eu sozinho, desolado,
quero voltar para o barulho das crianças,
ver minhas crianças, minhas alegrias.
Começo a cantar o velho canto que surge do nada,
do tudo que já vivi. Olho para a imbaúba, longa,
ela também tem a mesma sina, ela só é
o outro modo do mesmo espírito que me vaza
e me derrama líquido em forma errada, de gente,
quando quero vôos altos, de águias
ou rasteios de serpentes. Recolho-me em mim.
Canto. Algo se dissolve. Canto os velhos cantos
em lamentos, em louvor. Escorre.
O canto vai se ajustando ao rumor do coração
me solto, me desprendo, subo, subo, subo
mais alto que a imbaúba e escuto o mundo
e todos os sons formando uma só canção
que canta minhas lágrimas e meus risos.

10 novembro 2008

Primeiras palavras - titubeantes - do que busca visões.

Aconteceu, acontece.
As visões eram tão claras,
mas, anoitece. Ouço tão bem.
A chave. A porta se fechou.
Espero, procuro, busco
até que uma visão me pegue
indefeso no deserto,
ou remando minha canoa...
Não sei se devo falar, falo, me atraso
talvez, ter visões implica em calar,
escutar. Aconteceu, já aconteceu,
mas ainda acontecerá,
acredito, nas jornadas que tento,
que passo, que me vou.
Um olho, caolho, o do dia,
me treina para ver as coisas retas;
vem o outro, da noite,
caolho também, e me treina
para ver as convexas, não menos certas.
Me mantenho em atençao. Canto.
Meu propósito, visões. Canto.
Agora sou este que via e deixou de ver,
o que anda e ouve. Ouço tão bem, vivo
destes desejos de visões,
ou... obrigações de visões.
Elas me aguardam em seu lugar.
Eu devo estar fora do meu. Canto.
Visões, poesia, para quê?
Para onde correm
estes filhos de homens?
Não querem visões,
mas choram olhos de ardência,
desejos. Violência... Oh!
Para ir lá onde elas estão percorro longas distâncias
caminhos que ando, escolhi o leste. Arrisquei.
Confundirei visões com luz de frente, nascente?

Ouço essa música de temores, dores,
os alicerces abalados.

Tenho medo...

Não, o som é do vazio
que se faz cheio. A música
dos inícios,
do alegre fogo recém aceso.

Ouço.

Ouvir...

pode já ser a barulho da porta
que se abre.



07 novembro 2008

Encontrando o remédio
(encerrando os poemas do curador)

Salto, esperto, desperto,
amanheço atrasado e escondido
sobre o olho que me viu com a onça.
Rasgo com a lança o círculo no chão
repartindo o centro da flor em pedaços,
a flor do olho, o espaço em quatro
e sobre cada quarto eu permito que o sol
me chame a atenção, a coragem, o ânimo
e levante meus pés para a dança.
Um quarto do olho me enche de ipê-amor,
a outra parte da flor me angico-purifica,
o outro quarto me abre para novo copaíba-saber,
o último me confirma, me altera, me revela
o espírito urucum vermelho nas mãos e um,
um vento, um cheiro, um tambor por dentro que diz:
o que chora, o que se agita ainda espera por ti,
já é hora, volta, volta onça correndo homem,
antes que te esqueças a ternura e a quentura
da fonte que correu para a tua mão. Cura!

06 novembro 2008

Um bicho poderoso de quatro patas
(buscando o remédio)

Traço no chão com cuidado o mundo do meu olho,
dentro dele me deito com as mãos sobre o peito.
Relembro os passos com o gavião,
o sol, os riachos, os pássaros.
Recordo as andanças com o bacurau,
o céu, as sombras, os astros.
Mas o remédio se esconde talvez
nos silêncios das planícies e charcos;
ou antes, ou depois, ou debaixo
de cada passo, de cada pensamento,
ou dentro, quem sabe, da percussão do tambor.
Dor, amor, destino,
tudo amarrado num único nó.
Medito deitado: o que quero?
Reavivar alguns sonhos e ser um com eles,
descansar sobre folhas perfumadas,
me acalentar com histórias que ouvia quando menino.
Durmo não durmo. Duvido. Me deixo levar.
No escuro, sozinho, me retraio, me encolho.
Mas vejo... Sim, vejo... Penso que vejo
entre as fogueiras no céu e as fumaças na terra
um bicho poderoso de quatro patas.
Oh! Uma onça?
Uma onça que me mata...
não, que me marca
com quatro tiras de sangue no braço,
fontes que escorrem para dentro da minha mão.

05 novembro 2008

Buscando o remédio

Tropeço, caio, desajeito meus esquadros
sigo estes passos, espaço entre eles
sementes e ventos de bons pensamentos
que robustecem meus nervos.
O que chora, o que se agita espera por mim.
A febre maldita, as dores, os ais
me caem na mente com baque de chumbo,
no fundo, no fundo me determino ainda mais.
A paz que não tenho, só é paz nos meus passos,
na busca que faço o jeito é seguir, impossível não ir.
No destino a senda, a sina, a solidão e não desistir.
O cruzeiro luminoso se agarra em meus olhos,
me guia no escuro, me ensina o caminho do sul,
mas na busca não danço, me canso, não encontro
a árvore, o cipó, a resina, a folha, a raiz.

04 novembro 2008

O azulão me autoriza

Um desejo, fugir,
no entanto, aqui me ponho de pé, presente.
Estabeleço os olhos nas montanhas ao norte,
doem-me os ossos, permaneço de pé,
jacarandá, sucupira, peroba.
O pensamento veloz me diz,
honra e respeito no primeiro olhar,
honra e respeito no segundo olhar.
Penso outro pensar sem saber o que penso,
suponho, devo olhar pelos olhos dos pássaros.
O pensamento veloz me diz,
o olhar que se demora em carinhos
contorna todos os lados
e derrama-se para dentro,
nos dentros mundos dos olhos.
Lá se enxergará a palavra certa
e com ela deve-se descer ao fundo
ao fundo do fogo, à brasa,
ao vermelho, ao sangue,
então se dirá o que se quer dizer,
então se dirá exatamente a leveza,
o perfume, a cor do que se quer dizer.
Estremeço calado. O sol cai
e não há alegria. Nem inspiração.
O pensamento veloz diz,
dança o circulo que desenhaste
sem deixar que passem as horas.
Pára o universo com o chocalho.
Danço, danço, danço
nas estrelas, nos cometas
nas ardências da fogueira,
enquanto me entra pelas narinas
um ar frio de chuva fina
e me torno amor, brejo, beijo,
brasa, flor, azul, natural,
igual à tudo que me rodeia,
pedra, gravetos, folhas, lagarto.
Endendo-me, tenho a chave
num breve e doce momento.
Na madrugada quando o fogo se apaga,
o azulão se arrodeia de mim
e canta uma força que me autoriza: diz!
Eu digo.

03 novembro 2008

Outro pássaro, o que reergue o sol

Vou, quebro, digo,
este vaso, esta taça
este vidro. Vem comigo?
Solto o pássaro
que voa tão perto
e me canta aos ouvidos
os segredos antigos.
Vou, não me impedirei.
Tenho que ter pressa,
o perfume já sobe
e não há quem o sinta.
Tudo será outra coisa,
areia e pó,
se a palavra não for dita
com o canto certo.
Canta comigo?
Quebro o que espera
ser dia, já me vou cansado
das noites. Deixei
de lado a dança
para guardar este vaso
sem poção, sem água,
sem transformações.
A secura me persegue,
basta.
Mistura de ervas,
é o que farei
num novo vaso,
ou no mesmo, o antigo,
descascado,
como fruta aos lábios,
onde deambularei a mistura
até acontecer...
Dançarei
o círculo que
eu mesmo risquei.
Vou, quebro, digo,
dança comigo?
Ouço que me canta ao ouvido
outro pássaro,
que já reergue o sol,
o pintassilgo.

02 novembro 2008

A chave

A chave, a sorte,
dos montes aos vales
eu busco com pressa,
mas ando por passos,
olhando os sonhos
que o horizonte amplia.
Profundas raízes,
muitos nomes tocando-me,
dizendo quem sou,
desejando meus passos,
seduzindo-me
em peripécias e círculos.
Encontro o curió,
presença e inspiração.
O tempo cantando e indo
em várias direções
não é o curió,
tenho dúvidas.
É outro pássaro menor,
ainda mais bonito e leve,
canto de fogo em metal líquido
que escorre para as águas
de um rio, o rio perdido.
Encontro uma chave.
Estabeleci com seixos
o altar da gratidão e oficiei o rito,
mas quando abri aquela entrada,
no instante em que me vi
nas transparências do rio,
vi outra porta fechada.

01 novembro 2008

É assim mesmo o amor?


Já não sei onde me procuro.
Em mim estás, mas não me encontro mais
em teus olhos.

Em cada procura da alma afoita,
na minha pele mais alva, de timidez, escondida,
no horizonte de encontro dos lábios em prece,
...estás.

Nos cheiros que o coração me faz transpirar,
nos recantos do ouvido que aguardam sussurros,
nos vales e rios de carinhos da ponta dos dedos,
...estás.

No gesto de abraço que precede o sorriso,
no rumor gutural que se transforma em voz no eu te amo,
no arrepio, na base de cada pêlo eriçado,
...estás.

Nas pequenas salas em que se distinguem sabores na língua,
na maré dos oceanos de olhares voluptuosos,
no fluxo vulcânico de sangue, de amor, rijo,
...estás.

Estás em mim e não entendo
por que não me encontro mais
em teus olhos.

Teus olhos tão claros
não de cor, escuros que são,
mas claros de amor, agora são turvos.

Esgoto-me de olhar e não vejo reflexo
em lugar nenhum, como se o sol,
um outro, de dentro,
de lá não mandasse mais brilho e calor.

Tu me tentas convencer dizendo
que é o mesmo o amor que me tens,
me tratas com tanto carinho,
há uma ternura tão linda no teu jeito de falar
que sinto vontade de ficar,
ficar, ficar, ficar ao teu lado.

Mas...

mas onde andei foi em caminhos de brasas
e sei que em cinzas agora é que piso.

(É assim mesmo o amor? ...Fênix?
Um universo se acabando
e outro, diferente, surgindo, estranho).

31 outubro 2008

A vez do amor

Tomar o barco à tarde e remar. Ir até a ilha.
Ir para ver de lá o sol se esparramar nos confins.
Ir para olhar e escrever num caderno de capa dura,
num caderno bem guardado debaixo de uma pedra,
o desenho das águas, a história das estrelas e conchas,
o enredo dos barcos e praias, a música de cada coisa.

De tanto repetir o mesmo caminho virou esquisito
na boca do povo, no olho da vila. Um menino ainda.
Se falava muito do tal caderno que ninguém via,
onde estariam escritos mistérios e oráculos
aprendidos com a avó quando viva. Agora era só.
Mas dele também se dizia uma verdade
bonita como marlim azul:
ninguém sabia pescar como ele,
só ele mesmo entendia onde os cardumes em festa
se perdiam nas tramas das redes.

Num dia de vermelho arroxeado no horizonte,
ele não voltou da ilha. O barco também sumiu.
Lá se encontrou o caderno num local bem visível,
com uma única página escrita.
Estava escrito: sei escrever, mas não escrevi.
Eu só traçei destinos, somei o que vi a cada dia
e embelezei a ilha com o gesto da minha mão.
Brinquei de maestro diante de uma imensa orquestra.
Agora é a vez do amor, é preciso partir.

30 outubro 2008

Un cuore senza poesia è come una cattedrale vuota

...alguma coisa. Tarde da noite,
escuro como breu. Estranho ruído.
Colamos o ouvido na porta.
Alguma coisa... o que será?
Batiam à porta. Batiam nossos corações.
Depois de um tempo sentimos vontade
de dizer qualquer coisa. O que importava
era falar em voz alta e recolher o que viesse
como resposta do que batia. Nada saía.

Nada respondia.

Resolvemos, quando o barulho cessou,
bem depois, abrir a porta. Nada, ninguém.
Reconhecemos por um pequeno rastro
quem nela batia. Quem à porta batia
era uma espécie de poema
não muito conhecida, de pouco valor.
Não acolhido se retirou, sabe-se lá para onde,
e deixou na soleira da porta a tal pista,
uma frase, pequena incógnita frase:
a catedral está vazia.
Parecia a frase final do poema, perdida
pena de asa batida, que se desgruda
exatamente na hora de alçar vôo,
quando o esforço é maior.

Tomamos a pena e choramos, choramos.
Mesmo sem valor, aquele era o nosso poema,
a nós oferecido pelos segredos do mundo,
para aquela noite que vivíamos.
Choramos abraçados e depois rimos, rimos muito,
esfregando a pena no nariz um do outro,
nos olhos e nos ouvidos, a catedral está vazia,
nas mãos, no corpo todo, no coração.
Com a brincadeira e a dorzinha do poema perdido
instituímos sem perceber uma liturgia, um rito, uma magia
que celebrava o que perdíamos e o que ganhávamos no amor.
Nutríamos uma esperança: o poema retornaria,
mesmo que outro, e ainda que não mencionasse,
por delicadeza, que a catedral estava vazia.

29 outubro 2008

Os requisitos e as importâncias

Procura-se quem de veias e sangue acredita
na vida, nos mistérios, no amor. Ele
alegra-se com o anúncio. Há vagas!
Encontrará, é a chance, o que a ventura propõe,
o que sempre esperou. Já era hora.

Há que se ter entusiasmo, ser verdadeiro,
barba feita, roupa alinhada, um cheiro amadeirado
com notas de pimenta. Ser gente
é o que importa mais, mas não se pode esquecer
as habilidades antigas do vento, da chuva, do fogo...
Também ser como óculos certos para desejos de leitura,
espelho sem ferrugem onde não se vê o tempo passar,
e taça translúcida para vinho tinto, paixão.

Bem... ele assim supôs os requisitos e as importâncias.

Pronto. Fez-se a foto do candidato (sou eu?).
Ela analisou no retrato umas fumaças vazando
pelo olhar (tristeza não era, seriam meus pecados?
ai meu Deus!) No relatório final a recomendação:
é um olhar muito impregnado de constelações,
explosões, esse exagero de fogo poderá,
ela escreveu, ressecar-lhe a visão da mundo real.

Ele (eu?) foi considerado inapto.

28 outubro 2008

Um fio de esmeralda


Existe um planeta sem sol, bonito,
bom de morar, mas precisa de luz.
Vou arrecadar fundos
para mandar fabricar um fio, longo, longo
que ligue este mundo
com aquela beleza escondida.
Um fio de esmeralda.
Vou montar uma usina na bica da quina,
na esquina da casa do mar.
Quando vier qualquer chuva
e a água cair pela bica
a usina vai começar a funcionar.
Depois, quando o vento passar,
vindo do sopro na vela do barco,
do toque na asa da gaivota
e atravessar olhares na janela,
produzirá abundante energia.
Quando a maré subir e descer
dela também vou pegar essa dança
de sentimentos, maresia e saudades
que faz a luz aparecer das coisas.
Depois vou mandar para lá, para longe
pelo fio que se tece de esmeraldas.
(quase disse que se tece de esperança. Titubeio).

Se pensei esse sonho
ou delirei esse pensamento, não sei.
(Terá sido um novo movimento de amor
em velhas e fundas sombras?)

27 outubro 2008

Um suposto conhecimento

Antes da existência
ele acariciava o meu destino
nos olhares, o amor.
Tornei-me, mas sou somente
a irrupção dele num ponto
do chão misterioso.
Dobrei-me sobre o coração e pensei
um pensamento de beleza, bondade.
Espanto. Foi demais para entender...
Veio um suposto conhecimento,
o que é o amor.
O mundo além do mundo,
outro mesmo mundo apesar,
próximo. Do outro lado,
dentro quando se olha,
fora quando se vê.
Com as recordações
o espírito fez meu corpo.
O amor constrói a casa
da alegria para onde eu vou
mudar.

26 outubro 2008

O que passa?


Saber o que fazer ele não sabe.

A tarde que cai como peso,
mais uma vez é que cai.
Talentos, quantos? Muitos. Ousa.
Mas o mundo lhe engole o coração,
na estrada fica uma cratera de muitas agonias,
ou uma única perplexidade com um raio maior
do que o raio azul-dourado do mais belo poema.
A beleza lhe diz o amarelo do girassol, veja;
a água fazendo música na torneira, ouça.
Um fragmento definiria tudo, pressente,
mas o tempo passa, passa e nada,

nada, nada, nada. Sente.

O amor vai, como um trem, leva, carrega
e abre portas, lindas portas por todos os lados.
Quer acreditar. Não sabe se...
O vento do movimento do que passa
– o tempo ou o amor? –
beija-lhe a face, toma-lhe pela mão.
O amor vai, leva, carrega, passa.
Passa... ele balança.

Há muitos que não embarcam.

25 outubro 2008

Luz-água das palavras

Eu ia indo. Então,
decidiram me reiniciar
no mundo da luz.
Me pararam na curva da estrada.

Nada fizeram comigo
a não ser pôr na minha língua
como pitada de sal
umas sílabas,

sílabas-deus,
e me disseram,
Efeta! Hic, hodie!
"Lux, etsi per immundos transeat, non inquinatur".

Vida sedenta,
curva da estrada,
observar que ela toca o rio,
a sede por hoje pode ser saciada.

Vida verbo,
curva da estrada,
hodie, o respiro, a poesia per immundus transeat,
a luz-água das palavras.

(A frase entre aspas é de Santo Agostinho e diz que a luz, mesmo que passe pelos impuros não se polui. Efeta, abre-te. Hic, hodie, aqui, hoje).

23 outubro 2008

O M da minha mãe e o B do meu pai

Gavetas.
Em gavetas? mais do que isso,
em cheiros, cheirinhos puro carinho,
no tempo perdido passado,
tempo vivido e achado
em odores e perfumes,
no tempo pego pelo olfato,
descobri outro dia, feliz,
junto com coisas de mãe, guardados,
minhas primeiras letras e um parabéns
sobre a folha amarelada.
Folhas de papel almaço
unidas por uma fita azul;
na capa um menino desenhado
por detrás de um grande “um”
dizendo: o primeiro ano foi difícil,
mas passei.

Um dia, tudo,
nas origens, horizontes
entre as montanhas,
pequena colônia de imigrantes
com sotaque italiano
aprendendo português.

Gestos em ensaios,
eu lembro bem,
uma mão sobre a outra
a professora, a mãe
ensinando um caminho
que não mais, não, não tem mais fim.
Eu adorava o M maiúsculo da minha mãe
cheio de voltinhas como flores em buquê
e o B do meu pai
como a boléia de um velho F(e)N(e)M(ê).

22 outubro 2008

Desnecessário necessário para viver com mais ternura
(como escrevo poemas)

Num momento qualquer, numa sala de espera;
no vácuo de certos dias e de certos sentimentos;
na sonolência de cansaços, ou de tédios;
no retorcer de esgarçadas paisagens, escrevo.
Estátuas líquidas aparecem do nada e são solidificadas
sobre fibras de longas e dançantes árvores prensadas
ou sobre planas telas brilhantes do mundo em rede.
Falsos moinhos são movidos por ventos duvidosos
que sopram sem rumo, sem propósito, desatino talvez,
definindo cruzamentos, construindo narrativas e aparições
de jardins em geometrias; mas caóticos escritos esconderijos
e armadilhas, jogo antigo não abandonado,
que se joga sem inspiração. Elementos e verbos que se ligam
ou se desfazem, concordam ou não reagem de jeito nenhum.
Jogo permanente, viciado jeito de dizer o desnecessário
necessário para viver com mais ternura.

Noutro momento quem navega em seus próprios dentros
se leva em viagens, sublimes olhos sedentos,
em si mesmos é que vêem a beleza que avistam
no horizonte destas linhas, estátuas enfileiradas, artes brincadas,
monumentos de águas tintas e de nadas, apenas poemas.

(Disse um poeta - penso que o Leminski - qualquer coisa assim: poeta também é quem lê poesia).

21 outubro 2008

Através do deserto comigo
(não me proponho a postar longos textos aqui, mas ai vai uma exceção. Para se ler rápido e em voz alta )
Com carinho dedico aos blogueiros amigos.

Atravessar o deserto, escriba doido,
com gasturas de areia nos pés, entre os dedos,
com suor e o peso de passos longe das caravanas
para escrever em E-pergaminhos.
Querer saber o mistério sabe-se lá de quê.
Não querer mais ver tv,
nem seguir como guias, estrelas
que não tangenciam minhas elipses.
Talvez melhor mesmo seja andar
no silêncio, desgarrado.

Travessia do deserto
sem encontrar tesouros. Ouro?
Estás brincando.
O que fica...
lábios que se oferecem,
promessas. Silêncio. Peregrinação
areias, rochas, no sabor delas mesmas,
enquanto os caravaneiros e rebanhos se deleitam nos oásis
com tâmaras e passas
e cafés de puro perfume.

Atravessado pelo deserto
no silêncio cortado em dois,
em três, em mais, em mil,
ter que se ver cara-cara e enfrentar
o que não se quer ver. Avistamentos
da alma, de eus, de óvnis, de corpos,
câmaras por todos os lados filmando a desgraça,
cortes que se arregaçam em revelações apócrifas,
evangelhos de tão poucas boas notícias.

De través a diária e desertificada escritura,
o silêncio da página, janela,
amplificador de sussurros,
perceber, escriba, afinal,
que tudo não foi senão o efeito de,
doidejo,
gorjeios de pássaros-bússolas
essa pulsão para fora, para o sol, para o grande nada,
o minúsculo tudo, numinoso, apavorador.
Eles, pássaros, criam rastros
marcam as palavras,
migalhas de achados, grãos de significados,
ao mesmo tempo em que os devoram.

Desertar da pretensão da saciação, fome maldita,
me leva, me incita, me excita e decreta
minha sina na ponta dos dedos,
na ponta do lápis,
da caneta ou de qualquer coisa que sangra um sangue
sem nenhuma paga ,
doidejo pleno, êxtase pela metade.

20 outubro 2008

Amarras molhadas
(não à violência)

Como uma reza, uma salmodia
ele dizia não me sinto bem,
não me sinto bem. Fustigado
por olhares, acuado num canto da rua
reagia como se estivesse amarrado,
puxado por um caminho que não queria.

Ameaçava chover, mas não chovia,
aumentava o calor e as pessoas diziam
vai chover, vai chover. Ele não,
não pode chover, não, não.
Preciso morar longe da chuva,
preciso viver longe da chuva,
o diabo me persegue molhado, eu fui avisado.
Ninguém entendia o que se passava.

Do meu ponto eu olhava, olhava. Mesmo de longe,
frio, tudo eu via, tudo eu ouvia. Me compadecia.
Julgaram-no louco, drogado, bêbado e foram embora.
Eu fiquei. A noite chegou e o centro se esvaziou.
Me aproximei e relâmpagos caíram. Chuva forte.
Ele ainda repetia baixinho o diabo me persegue molhado.

Quando cheguei ao seu lado eu esperava um sorriso
mas ele só foi capaz de apontar para mim apavorado
e repetir o diabo me persegue molhado. Chorava.
Frio, olhei para ele por detrás da caixa de papelão
e depois para mim mesmo, encharcado... sorri.

...como em outras vezes, me dei conta de quem eu era,
mas logo esqueci, no momento exato do estampido do tiro.

Coitado! Quem lhe meteu esta bala no ouvido?




19 outubro 2008

Endiecendo

Bondade tua em querer ir adiante no escuro comigo.
Nos passos me ensinas a ver as faíscas do meu próprio nome.
Na poesia me colocas a carne e o sangue de ser límpido
e me incitas à convicção de ser diverso logo mais, ser dia.
Ah, mistérios e viagens de pássaros e espíritos,
sopros iluminados em brunos salões e cavernas.

Tu me convocas a fazer o coração e as vistas, dia;
os pés e as mãos, dia; as tripas e os sonhos, dia.
Estou endiecendo por bondade tua. Já me alvoreço.
Oficiarei a sagrada dança do este ao ocaso, horizontes de abraços.
Me destrevei. Nem que seja só agora, enquanto escrevo...
(o que só é... um pretexto do prazer, nada mais).

18 outubro 2008

Bye

Mira meus olhos, se vão em outras jornadas.
Veja como me escorrego no sofá
e como minhas mãos se entretêm com uma linha curta.
Escuta, há muitos encantos na vida, mas eu...
eu perdi muitos deles sem querer. Vivendo.
É o que todo mundo quer. Viver se ganha perdendo.
Então nos descobrimos em direções contrárias.
Você viu minha ousadia e minha ingenuidade e
construiu um sonho. ...Linda!

...

Eu? Bem, é difícil dizer,
espera... eu me vejo como uma estrada
no fim da tarde quando ainda não se pode parar.
Imagem imprecisa? Não me exija demais.
Meu espelho não é de prata... Temos que ir,
já está na hora. Não demora o sol vai nascer.
Vamos amanhecer ganhando boa estrada.
Onde está a chave do meu carro, do seu? Meu cigarro?
Ah, o sorriso. Sim... Eu prometi. Sim... Linda! Aqui... bye.

17 outubro 2008

Absolvei as pessoas

Comiam o dia.
Não sei quem, nem que dia.
Quem estiver no terraço
será outro, diferente.
O cadáver da flor
deixará cair a semente.
O juiz dará à noite
a posse do tempo.
Foi ela que comeu o dia.
Absolvei as pessoas,
senhor juiz,
gente passa com o tempo.
Gente não come dia,
gente vive de alegria,
e quando não tem,
aguenta.

Vejo o céu. Escuro.
A noite não tem luar.
Você se pega doido no terraço?
Eu também. Me desfaço no sol
do dia seguinte.

Não sei onde planto a semente.
É um amorzinho.

16 outubro 2008

Tintim!

Há que se ter cuidado na colheita destes frutos das tristezas,
são delicados, são cerejas, framboesas e morangos.
São romãs, maçãs e rubis, vermelhos de dor, frágeis.
O amor neles é um sabor a se distinguir. Tristezas:
ninguém sabe a hora dos cálices em que transbordam os sumos,
onde começam e onde terminam as estradas e o que elas trazem.
Talvez levem cada vez para mais longe. Há que se ir.
A colheita destes frágeis frutos não se vende.
Vendem-se livros usados,
o suficiente para cobrir as despesas das demoradas andanças
e festas
entre uma colheita e outra.
Tintim! Saúde!

14 outubro 2008

As palavras podem pegar

Ando sofrendo de um sentimento de porto, sei lá,
preciso falar, danei a ver as pedras escuras do cais
brilhando, brilhando como se fossem estrelas.
Acho que são portais para a felicidade. Penso
muito nisto quando estou em alto mar.
Você acredita? Mas é segredo, por favor.
Falei para alguns, ninguém valoriza essas visões.
Você me entende? Não posso falar, mas só de pensar...
as palavras se levantam em alvoroço, doidas;
querem se organizar em versos sobre o porto
e falar das pedras que brilham no cais.

O fogo escasseia por dentro nas veias,
uma chuva de outubro mais fria do que se espera
se soma ao sal, ao cansaço, ao suor.
No desalento também sinto desejo de ser pedra,
Você já sentiu isto? Vez ou outra
quando descarrego os peixes do barco
um zombeteiro, bêbado, falando das horas que me sufocam,
do trabalho que me mata, e das pedras que brilham,
chama-me de aluado, doido, corno. Não respondo nada.
As palavras que quero dizer não posso,
para outras então é melhor calar. Você concorda?
Mas às vezes o que ele diz me dói. Caio em mim
e chego a ouvir o baque surdo da dor,
por dentro, sabe como? Peixes, peixes, dor, gelo
queimando os dedos, peso quebrando o orgulho,
você já sentiu essa queimação?

Até o mar quando tem manchas de óleo
bate e amordaça as pedras do cais
para que elas não falem o que sei, o que vejo.
Elas brilham, volto a dizer, não sei se confio em você
ou se necessito falar. Falo. Deus é verbo.
É febre o que tenho? Sinto dor no corpo. Você é doutor?
Isto vai passar? Voltarei a ver as pedras só como pedras?
Ver o cio das coisas, ver Janelas em pedras,
de que me adianta? Mas eu sei, acredito,
o que escapa até da música as palavras podem pegar.
Se você também acreditar falaremos juntos.

12 outubro 2008

Combinei com o porto

Combinei com o porto, numa noite qualquer,
quando a previsão do tempo anunciar
sol e céu aberto para a manhã seguinte,
afundar todos os navios. Todos. Os do centro,
os do tubarão e os da barra. Barcos e botes também.
Não os afundaremos por maldade, mas,
por brincadeira, para que no dia seguinte
encarando o sol pela frente, no alvor, lindo,
a cidade possa ver os navios emergindo,
trazendo do fundo do olhos outros mundos;
e será bom contemplar os mistérios que estão abaixo,
os que estão acima do horizonte e outros ainda
que viajam nos espaços entre um olhar e outro,
além daqueles que se disfarçam na flor
que murcha sobre a mesa. Quem sabe assim,
estas paisagens nos embarquem em descobertas
de que as coisas são coisas, rugas na superfície
do mar-luz-esmeralda-liquor medular,
o doce nada, beleza que nos inunda
e nos desenha como lavas solidificadas de um fogo
que escorreu das explosões de um único e grande amor.

(Ao mesmo tempo é tão bom existir rente às coisas,
coisa com coisa, mesmo que só por um tempinho,
elas são tão bonitas; e poder tocar,
cheirar, comer, ouvir e ver, ver, ver.
Vamos ver os navios no porto, vamos?)

10 outubro 2008

Lágrimas abafadas

Caiu sobre o porto uma nuvem escura,
na imaginação um mar avoluma suas ondas,
porcos de uma alta barreira se lançam, assombro,
as bolsas nas capitais do mundo despencam,
águas espumosas ouvem seus baques em pedras vermelhas.
Os navios ancorados se avistam pelas luzes sobre as águas
como se um feiticeiro tivesse destravado cadeados de livros
e topázios de poesias emergissem enflorecidos de planta marinha
realizando recalcado desejo de crescer sobre os mares.
Estranho, a sedução das sombras em belezas raras
para quem se entorpece com o azul e a luz
do mundo que gira em empenadas rodas nos trópicos.
O dia fechado logo cedo, a sombra, o trabalho esperando
me lançam do porto este poema de sustos,
dirijo sozinho pensando em você, no que poderemos fazer
com a nossa felicidade. Como lhe peço para voltar?
Luzes dos navios de dia, topázios de poesia,
a mente voando. Christ, send-me the right word.
I confess, “I’m so tired of being alone”.
Dói o que espontânea e vagamente recordo.
No youtube encontro e canto, “I’m so tired of being alone;
I’m so tired of on my own”.
Caiu nuvem escura e ainda não chove para desaguar de vez
– chove, chove, pelo amor de Deus – sobre o porto estas águas.
“Won’t you help-me, girl”.
A ave, o porto e a falta de amor

Lá de cima do penedo constituído guardião do porto
a ave-dos-olhares sobrevoa meus pensamentos e me ensina
poderes santos para avistamentos de encontros, beijos e desejos.
Mas estou longe, muito longe em ansiedade, sentimentos
não sei bem quais, em mim falta de amor, isso sei.
Cargas retorcidas em contêineres viscerais carrego
mar afora bem longe ainda do cais que espero ver.
Faço um trato em oração com o porto
de não lhe negar um olhar qualquer que seja,
bem que veja em troca meu coração
o favorável pássaro guardião e me ajude
a reencontrar aquela parte de mim mesmo
que esqueci de olhar.

08 outubro 2008

Vejo o cais

Passo bem devagar
procurando lanternas abandonadas ao longo do porto,
andando com cuidado e certa ansiedade.
Vejo o cais abarrotado de anjos dançantes nos guindastes
e fantasmas melancólicos sobre as sacas de café.
Vieram de outros séculos e de outras águas
seduzidos pela cor, pelo cheiro, pelo mel da ilha
e pelo desejo de palavras em português.
E se prenderam me esperando,
a mim ou outro assim, endoidecido.
Deparo-me com um velho navio
maior do que pensamento que tira sono.
Nele embarco e desembarco num instante,
logo encontro entre cargas e estivadores,
sem entender, rosas amarelas ainda guardadas
em muitos botões prontos para serem esmagados
como se fossem uvas.
Esta é a rotina em porões, em corações
que sofrem delírios de encontrar um vinho novo.
No sabor, licoroso; na cor, de ouro.
Vinho proibido, luminoso, para ouvir da vida
seus conselhos. Antes do esmago
recolho o que posso e arranjo em janelas
estes botões que desabrocharão
sem hora certa em rosas solares
quando um passante borrifar neles
seus olhos úmidos de poeta
recolhendo de suas pétalas
com a ponta da língua trêmula e sedenta
gotas do vinho arcano que muda de sabor
de acordo com a dor e a luz de cada um.

07 outubro 2008

Porto qual será?

Hora marcada as flores, estrelas e pessoas têm a sua,
pra vir à luz e pra partir com ela. Porto qual será?
Atual é a hora e as vontades dançantes das marés,
mudanças, fluidez, tentativas, acaso, milagres, vida.

O porto define, comanda, seduz e conduz a cidade,
distribui o amor para alguns, a fortuna para outros,
uma certa saudade, maresia e poesia para todos,
além de fazer pensar, pensar... Como viver?

Na demora chega a chuva e o ônibus. Ele embarca, senta
e se apoia no vidro da janela.Vai pra casa. O que leva?
Olha para o porto – não há coisa mais linda –
para as águas, os guindastes, os contêineres,

muitos sentimentos, algumas luzes, os navios atracados,
um se indo, o apito – como dói – divulgando segredos e amores
de estivadores, catraieiros, prostitutas, imigrantes e marujos
dos mais de quatrocentos anos do cais. Que vida viveram?

Ele não sabe se ainda é tarde ou se já é noite, é triste.
– se uma luz tivesse que acender, teria dúvidas.
Sopra o vento sul, lágrimas bonitas escorrem nos vidros,
a chuva engrossa, embaça a vista, a vida segue. Para onde?

06 outubro 2008

Os dois pássaros

Atravessou o escuro bem escuro,
e a vida continuou a mesma.
Fechou cortinas e persianas
e a vida continuou a mesma.
Procurou o livro dos mistérios
e a vida continuou a mesma.
Então veio um dia quente
derramando azul por todos os lados
e ele teve lucidez para pensar
que os dois pássaros podiam estar ali,
e não tão longe onde procurou.
No exato meio do dia ele abriu janelas e portas
se jogou sobre o chão qual monge que relaxou na vigília
e se cansou das orações, hinos e compostura.
Inebriado pela luz difusa buscou nos cantos da casa,
no barulho do dia, nas paredes, no teto,
nos pensamentos, por dentro, debaixo das móveis
os dois luminosos pássaros da felicidade.
Só encontrou um... e ficou triste.

04 outubro 2008

Vai entender? nem mesmo eu

Recordo-me, esquadrinho meu peito, ressinto
desejos atrevidos pela minha mesma vida.
São estranhos estes momentos, andamento,
sou espetáculo e sou olho engastado, paisagens.
Montanhas equilibradas em beleza e desgaste,
córrego miúdo que pacientemente refaz suas curvas,
pomar cheio de frutas e mato, esquecido.
Vai entender? Nem mesmo eu. Me examino
traços e mau cheiro, espessuras e defeitos, imperfeições
que por dentro - nem sei se em mim - crescem,
crescem e me matam, ao mesmo tempo em que
estruturam uma ambição de brincar, brincar. Sem saber
pintar atirei as tintas no chão e marquei nelas meus pés
para escrever na língua desoriente
outra versão desta frase que me pronunciam.

02 outubro 2008

Quando a alegria vem

A vida era um corredor ainda a pouco, escuro,
- talvez ainda seja - e agora se ilumina para várias saídas.
Tudo o que há, há de ser bom daqui pra frente,
e invadirá minha casa, meninos em algazarra.
Temo não saber lidar com a alegria, e espantar as crianças
como quem espanta borboletas frenéticas
do entorno da lâmpada. De nada adiantará,
preciso acolher o que é meu,
quando a alegria vem, vem mesmo,
ainda que passe, ventania sem chuva.

30 setembro 2008

Juntos (seguindo) na escuridão

Estou aqui, fica tranqüila, segura na minha mão.
Está muito escuro, ela diz.
Ele, pensativo, diz, haverá uma saída.
Está muito escuro, ela repete.
Respire devagar, a escuridão não entra nos pulmões.
Sinto frio, ela reclama.
Olha por detrás das palavras em formação,
há calor, ele aconselha.
Vou tentar... sim, talvez... sim..., ela titubeia.
Toma meu cobertor, ele diz.
As palavras em formação, ela pergunta,
são como cachoeiras rumorosas?
Sim, respondeu.
Ainda não vejo, mas ouço bem o rumor.
Um som de tambor ritmado, um mais forte,
outro mais fraco logo em seguida.
Ótimo, ele continua, mais ao fundo você verá
uma janela toda cheia de diminutas
e fracas luzes ...e palavras.
E quando eu me der com elas pela frente,
ela pergunta, o que vou dizer?
Você não dirá nada, ele fala com ternura,
só sentirá mais coragem de encarar a escuridão.

29 setembro 2008

Você

Prestando atenção nas coisas, cruzando palavras,
você vai escrevendo para apurar no fluxo
do sangue, na flor do que se vive, o amor.

Estão bem no alicerce das letras,
além das menores pétalas, o perfume e o mel.
Por enquanto na travessia, você tem o cansaço, mas

o trem nas planícies percorre os trilhos vazando horizontes
e nele você segue o velho desejo do encontro de si mesmo,
para depois, quem sabe, fazer uma fotografia de uma bela colina

perto de um rio para onde você retornaria logo
para construir um abrigo, uma casa, uma vida melhor.
(A poesia é ansiolítica, mas tem efeitos colaterais, certa endoidecência).

26 setembro 2008

O exato momento do meio-dia

Houve um gigantesco silêncio num segundo,
e então... se ouviu um rumor.
Estranhamente as imensidões
lhe apontavam milhares de peregrinos.
Não. Alucinação não era.
Uma cidade em cada gesto
abria ruas por onde ela via
o que se passava, o que acontecia.
Dançam, dançam... Ela repetia.
Ele com carinho falou, por favor,
me faça ver pelas palavras o que você vê.
É o exato momento do meio do dia, respondeu,
um temporal de muitas águas no alto da noite,
um beija-flor ao parar no ar para tocar o tremor da flor.
Depois ela adormeceu.
Trem do amanhecer

As estrelas e os mundos
fazem suas encruzilhadas
nas pessoas
e deixam nelas suas interrogações
e enxurradas de poesia.
Quem ama e quem mata vai
seguindo na mesma manhã.
Me empurram quando levemente
o sol rompe o frio.
Sonho olhos que me enxergam,
não os encontro, pois que
os meus próprios tem sua névoas.
- Não, não vou saltar,
this is not the place
... not my station.
Vou prosseguir.
- O senhor está indo pra onde?
(às vezes a poesia me desorienta)

25 setembro 2008

Ninguém poderia imaginar

Não havia jeito. Não era possível.
Frio, chuvas, ventos,
isolamento, gênios, ânimos,
maus-tratos, dificuldades o tempo todo.
Um dia ensolarado era uma saudade.
Não era possível. Era possível
amar novamente, tentar vida nova.
Ninguém poderia imaginar,
- se bem que poucos os visitavam,
para saber de uma rês desgarrada,
pedir emprestado um galão de diesel... -
Falaram com emoção em amor,
da casa e da beleza do lugar,
montanhas, prados verdes, ar puro,
deram uma trégua para as diferenças
e... desejaram um filho.

Na madrugada, sozinha,
tudo tantas vezes pensado,
ela tomou a velha camionete,
pisou fundo no acelerador
sem se preocupar com o barulho,
e ganhou a estrada.

Pequenas questões:
Por que o título é ninguém podia imaginar?
Por que ela não se preocupa com o barulho?

23 setembro 2008

O doido, o acidente, as luzes, o olhar...

Ele diz, em dias perdidos os inversos do coração
descem como azeite sobre queimaduras de sustos.
Um inverso oferece a visão mística
do que edifica uma pequena esperança
e desfaz por instantes a aspereza das coisas.
As coisas sempre são ásperas, turvas...
Ele também se referia ao acidente dos dois rapazes:
trabalharam o dia inteiro na padaria
e quando se iam para seu bairro pobre,
um carro em alta velocidade lhes esbarrou na moto.
A moto se desgovernou e os dois...
Os dois voltaram a ser pó do planeta terra,
este multiverso no universo, beleza e dor.
Sabiam que ele era esquisito, mas ouviam
o que ele dizia. Buscavam um sentido.
Mas os inversos, continuou, por mais que ajudem,
não assombram os medos bandos, todos
pássaros ávidos soltos de qualquer espanto,
a devorar a plantação cultivada com suor. Da poesia
só se pode tirar uma força para se manter vigilante
enquanto se aguarda o sol de um certo dia de setembro,
mais uma de suas loucuras, que fará brilhar
uma luz de ternura para todos. Escutam-no
entre risos de disfarçado deboche e respeito.
E quando ele fala umas luzes se acendem,
outras se apagam. No lusco-fusco,
Me vejo.

22 setembro 2008

O espelho, o grito, a máquina do tempo, o olhar...

Vamos ver... vou esquecer, ele diz sem convicção.
Sente falta de tudo, mesmo que tudo fosse uma mentira.
Carinho mentiroso só faz mal depois;
na hora também é bom.
Dói. Mas eu saio dessa.
Vamos ver... A última vez que a vi?
Bem... Foi em setembro. Chovia.
Ela se olhava num grande espelho na sala,
ajeitando os cabelos, retocando o batom.
Ela olhava pelo espelho, muda,
escutava como se estivesse atrasada.
Depois virou-se, e com o olhar apontou a porta.
Aquele olhar... foi um grito,
um grito que fez eco sem emitir nenhum som,
gritou um vai embora que grita agora
no filme que assiste.
De tão claro que vê o grito se espanta
quando percebe a lonjura dos anos
e aquele vai embora tão perto.
Carrega-o como máquina do tempo para voltar,
sempre, ao mesmo ponto.
...Silêncio.
Acabou sua hora, disse o analista.
Me vejo.

20 setembro 2008

A ilha, o avião, o conto sem graça, o olhar...

A ilha esconde,
por detrás da montanha de onde tudo se avista,
a pista de pouso esburacada
onde está o avião quebrado invadido
pelo azul de mais um dia sem hora.
Parece tarde. A página é virada.
Ele anda em círculos, no topo, com uma ferida
a sangrar na mão. Acena com uma bandeira.
A felicidade, uma promessa,
grita-lhe nos escuros do coração:
fecha os olhos, fecha os olhos,
é setembro, aguarda. Mas ele não espera,
ele olha. Olha em trezentos e sessenta graus.
O raio do olhar é seu ultimo poderio.
Nenhum avião, nenhum barco,
somente a vida latejando na mão
que umedece de vermelho-férreo a haste da bandeira.
O pedido de socorro tremula cores de sonhos.
O coração é um mar, um mar, mar.
Nada é original, o conto sem graça.
Amar é esperar mesmo sem constelações um sinal de luz, pensa.
O mar se torna só ruídos, assustador, o dia perde a cor,
providenciará lenha, fará outra fogueira.
Me vejo.

18 setembro 2008

As ruas, o asfalto, os meninos, o olhar...

Corre, o irmão grita,
corre, corre, e ele vai
como se a corrida na chuva
fosse esquentar dentro dele
uma ausência, uma parte fria, sempre.
Chove e as ruas tão íntimas
se iluminam de baixo para cima,
faíscas, faíscas. Que lindo!
A corrida mais longa que uma brincadeira
faz com que perceba a escuridão.
Se abriga num beco
bem junto ao irmão, colados, escondidos,
ofegantes, água e espanto
escorrendo pelo rosto. Meninos.
O irmão confere o dinheiro do dia.
Por que estamos fugindo?
Como resposta ouve tiros, gritaria,
eles estão aqui, eles estão aqui.
...

Vê o irmão correndo, chamando por ele,
O irmão corre, corre chamando por ele.
Tudo fica ainda mais escuro. Tem sono.
Quieta, a platéia assiste “Setembro”.
Me vejo.

17 setembro 2008

O desenho, a estação, o olhar...

A voz caiu cansada de dizer te amo.
Uma coisa quase morta,
um hematoma,
um incômodo
impedem-lhe de escrever,
de dizer desencanto, nem isso.
Usa o lápis para desenhar, traços agitados,
feitos às pressas na estação. O trem vai chegar.
Um gato tenta escapar da trama,
do lápis que reforça as linhas da rede. Que idéia!
O olhar pára no desenho, destaca a folha do bloco,
o lápis volta para o bolso, chega o trem. É setembro.
Em meio à confusão de quem vai, de quem vem,
um momento estranho, calmo. Ele não embarca,
fica parado, mala ao lado. A folha com o desenho
vai com o vento e o trem.
A voz vagarosamente se levanta no pulmão,
voltará para dizer outras vezes te amo.
Entre o sentimento poderoso e a decisão abandonada,
ele fica invisível, algo se apaga.
Me vejo.

15 setembro 2008

O leitor, o livro (o filme), a casa, o olhar...

Retira os óculos e descansa da leitura.
Levanta, anda pela sala,
pesa-lhe um sofrimento indistinto,
não sabe o que pensar,
não sabe o que fazer.
O ator em desempenho,
todo o sentimento,
tudo o que podia.
O rancor típico – retoma o livro –
de quem fez o melhor
e não foi reconhecido.
Por que é sempre assim?
Era de se imaginar que a importância do papel
pudesse lhe causar um prejuízo.
O coração aperta,
perde o compasso;
ele larga o livro, avança altivo,
vai para uma das janelas
da linda casa cheia do vento frio
que desfralda como bandeiras velhas
as cortinas brancas amareladas.
Olha ao longe no azul do dia,
procura sobre as colinas de setembro
e não vê nada.
Me vejo.