14 outubro 2013


Vozes de abrir janelas, tentativas de olhar – 4

Assim, sem mais nem menos, acordou e teve um sentimento, como quem tem um pensamento, era um triste, não era tristeza, um filhote de cachorro desgarrado da teta da mãe em meio a tantos, fuçando por ali, intrometendo-se. E a manhã tinha sido uma manhã bonita, diga-se, dessas que antecipam o verão.  Foi, na verdade, uma manhã qualquer, pois que todas são bonitas, por elas mesmas, sem depender de nossos olhos, nem das estações, porque simplesmente o mundo vira para o lado do sol de novo, apenas por isso já são bonitas, mesmo quando a infelicidade filhote de cachorro se arranja em jeitos de fuçar a vida procurando suas tetas. Olhar a vida como uma cadela com muitas tetas talvez não fosse a melhor imagem. Sacudiu a cabeça. Ao mesmo tempo respirou levemente mais fundo sem que a mulher percebesse. A maior parte das infelicidades se vive sem lagrimas e sem visibilidades. Ninguém sabe, ninguém saberá e basta. É isso. Queremos entender as coisas para viver, por isso ficamos pensando, pensando. Mas as coisas não têm entendimentos. O que a gente consegue delas são sentimentos. Até os conhecimentos científicos são sentimentos. E foi ali na venda que ele se deu conta disso, revisando a vida, revisando o dia. Cachaça não bebia, nem cerveja. Ficava ali, conversava e ria muito, boas gargalhadas dava. Tinha essa facilidade, de rir muito, por pouca coisa. Suas gargalhadas e gozações não podiam faltar no bar. E ele estava pensando numa piada sobre o balconista. Ficaria pra outro dia. Mas ele já tinha percebido o encantamento dele por aquela garrafa de mel.

28 setembro 2013


Vozes de abrir janelas, tentativas de olhar – 3

Ir à venda era só pretexto pra pensar em tomar o ônibus. Ali em frente ficava o ponto. Ia ali todo dia, como todos, quase todos, depois do trabalho, uma hora pra rir, ou se tentar. Prá que serve o vinho senão pra alegria? A cachaça substitui. Uma alegria vem, e se consegue esquecer certas coisas, quando se está com os outros, quando se enche a cara, esquecimento é descanso de alma, alma é coisa sempre viva, nunca morre, mas precisa descansar. Ia à venda só pensando no ônibus, a venda era o ponto de ônibus, qualquer hora todos iriam vê-lo arrumado, aquela calça jeans nova, a camisa branca sem mancha, tênis dos bons e uma bolsa na mão. E Então todos perguntariam e ele responderia com prazer: Tô indo embora. Mas isso de ir embora é vontade parente do sonho, vem e se desfaz, como asa que se abre para o voo e se desfaz num braço pesado, numa mão grossa, pesos a se carregar. Quanto maior a vontade de ir embora, maior a correia de couro endurecido que prende o sujeito no destino que ele vive como um cavalo arreado. Encostou-se no balcão, viu o colega que só vivia de óculos escuros e sentiu dentro de si uma coisa ruim.

24 agosto 2013


Vozes de abrir janelas, tentativas de olhar - 2

O olhar é coisa que se dá aos outros, mas pode ser também uma coisa que o outro toma, como uma carta que se escreveu em segredo e veio a público pela mão de um “amigo”. As pessoas estão sempre pensando que sabem ler o olhar da gente, mas nem sempre sabem não. Até leem, mas podem estar lendo errado. Ainda lê aquele que lê errado? Mas ele queria que algum dia aparecesse alguém ali naquela venda e que fosse capaz de ler certo nos seus olhos aquela história com começo meio e fim. Especialmente o fim, quando alguém morria. Ao cair da noite ele vinha à venda. Bebia umas poucas doses, ficava ali pelos cantos mais escuros e ia embora. Durante o dia usava óculos escuros.

21 agosto 2013


Vozes de abrir janelas, tentativas de olhar - 1

Não era por necessidade que esfregava aquele pano úmido sobre o balcão da venda, era por costume, as horas não passavam, queria ir embora, não ia, ir pra onde e fazer o quê? Ganhava pouco e nada para ficar no balcão dia e noite. Dia e noite é modo de falar. Esfregava em idas e vindas aquele pano sobre o balcão, a madeira não brilhava, esfregava em círculos, a madeira ficava limpa, mas sebosa, opaca.  Fechava a venda por volta das oito, quando começava o Jornal Nacional. Voltava pro seu quarto, também depósito, atrás da venda, e amargava lembranças de um tempo em que tinha coisas, não muitas, e pessoas, algumas, e histórias, umas poucas. Um ou outro parava na venda durante o dia, um ou outro carro passava naquela estrada. Aquela estrada de estreito asfalto não levava a lugares importantes. Só no fim do dia vinham alguns, no fim virão os anjos? tomara, pensou, vinham na boca da noite os de sempre, fedidos, os sem dinheiro, gastar o que não tinham, rir o que não podiam, rir e xingar palavrões em cada dose de cachaça. Mas ele viu na prateleira uns litros de mel. Estavam ali e ele não os tinha visto. Sempre vendia um ou outro litro nos fins de semana quando apareciam uns perdidos da cidade por ali, donos de alguns sítios na região. Se fosse ele nunca compraria um sitio por ali, preferia a beira do mar. Mas via agora os litros de mel, via-os com desejos e salivação abundante. Estranhava-se, mas queria encher a cara de mel, queria tomar no gargalo, encher- se de doçura.

15 agosto 2013

De meio a meio

Quando escrevo aqui penso que vou em boas semelhanças com um personagem de Guimarães Rosa em A terceira margem do rio, que ao entrar na canoa, pelo olhar do filho, não ia a parte alguma, "só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio".


Mas vamos lá...
As dores vem, isso é certo. No que elas se transformam? Ah, é bom pensar no que se quer viver, se amor ou rancor. Os caminhos se vão, isso é certo. Para onde ir? Os sonhos te levarão, mas é preciso guardar as noites com bons sentimentos. A vida finda, isso é certo. Que sabores dela se desfruta? Tudo depende do carinho e do amor no cultivo do pomar. Ah, sei lá, talvez não seja nada disso, e apenas seja preciso ouvir muitas vezes as crianças cantando.
 

14 agosto 2013


Caem muitas luzes de asas e voos macios pelas manhãs
 
Faz-se uma janela ali, abre-se um lago de luz. Ele olhava a manhã e tudo estava nela, tudo. Mas nada estava completo, apesar de pleno. Vou pescar, ele disse. Como vais pescar, o outro perguntou e exclamou ao mesmo tempo. Vou pescar, ele afirmou novamente. Mas havia outra coisa naquele “vou pescar”. Se te conto agora este conto é pra te fazer um convite. Talvez ele se lembrasse de um poema, um poema de Pablo Neruda, talvez. As certezas se diluíam em uma espécie calma de satisfação e anseios. O poeta falava em pescar luz caída, com paciência, de um poço - que imagino escuro. Caem muitas luzes de asas e vôos macios pelas manhãs, e não pescar seria um desperdício.  Também vou pescar.

13 agosto 2013


Coisa que alcançamos sem aqueles longos treinamentos de monges
A maior parte do tempo se dá na espera de alguma coisa. Canta-se a esperança como um benefício que a alma está sempre a nos dar. Mas há certos dias que melhor é sentir a paz de nada esperar, e assim, sem esperanças, dar-se ao momento para que a vida se dê por ela mesma. Talvez estes momentos exijam uma taça de vinho, uma xícara de café, um olhar atravessando vidros e admirando pequenas feiuras, feiuras que passam ao campo da beleza.
Tem qualquer coisa de “zen” que nos acontece nesses dias, qualquer coisa que alcançamos sem aqueles longos treinamentos de monges. Paisagens que nos rodoviam sem asfaltos e sem placas de sinalização. E se vai por aquela estrada sem partida e sem chegada... e é tão bom.

03 junho 2013


Eu precisava de um amparo quando li aquele poema chinês (novo conto)

 
Eu precisava de um amparo quando li aquele poema chinês, eu procurava um amparo, ou um impulso pra me levantar, rolei com os pensamentos, não sei se rolei ou me arrastei, parecia que eu tinha batido a cabeça em alguma coisa, ou alguma coisa tivesse batido na minha cabeça, as nuvens, as nuvens me acordaram, vi as nuvens quando acordei, o céu estava mais próximo, o céu azul de fazer os olhos se fecharem, ou foram as formigas, as formigas que me picavam me despertaram daquele poema chinês.

Eu fiquei caído ali, olhando as nuvens passando devagar naquele azul muito carregado de luz, eu nunca usaria uma camisa daquela cor, todos me olhariam também, não gosto que me olhem, muitos, gosto apenas que alguém me olhe, as nuvens se amontoavam num lado do céu.
 
Ah, não lembro mais onde o sol se levantava lá naquela vila onde cresci, naquele tempo eu não me preocupava com o tempo, o sol podia se levantar e se esconder e tudo continuava como sempre, se a laranjeira floria e depois dela colhíamos doces laranjas pra se chupar ao seu pé, se um milharal seco era quebrado ao se recolher suas espigas e logo o arado lhe misturava com o chão, palhas viradas em terra, nada mudava.
 
Aquele homem não existia no poema chinês, ele se metia nele, as pessoas se intrometem, mas ele, apesar de intrometido, demonstrava querer me ajudar, ele me reerguia do chão com palavras boas, não me pergunte quais, palavras boas não são aquelas que você pensa, são aquelas que você ouve, mornas, calorosas de um afeto mesmo sem sentimento, porque o homem não me conhecia.
 
Ele me levou para algum lugar, me pôs sentado numa espécie de fundos de uma loja, outras pessoas chegaram, uma mocinha linda com um copo d’água na mão e outro no olhar, preferi este último, mas bebi aquele. Então se repetia a pergunta que só agora eu conseguia ouvir, o que aconteceu rapaz? Eu não sabia responder, apalpei os bolsos da jaqueta e não encontrei o livro de bolso, o livro de poemas chineses.

27 maio 2013


Lâmpadas fracas

 

Chovia, da lanchonete olhava aquela velha casa em frente, de dois pavimentos, em estilo eclético, do início do século 20, perdida entre os prédios. O dia caído se anunciava não pelos ponteiros do relógio que se avizinhava das 17 horas, mas pelas lâmpadas fracas que se acendiam lá pelos fundos, na sala de jantar provavelmente, e que tingiam de melancólica luz as janelas da sala que davam para a rua. Se não fosse até lá agora, nunca mais iria.

Ao chegar pôs os pés e os olhos sobre os três velhos degraus de pedra como se fossem sagrados, ali sentara tantas vezes para descobrir entre aqueles homens que visitavam sua mãe qual seria seu pai, acreditava que ele daria algum sinal de que ele era ele. Iludia-se. Os degraus lavados anunciavam que nada permanece, os passos às pedras serradas deram suavidades, os passos mudam as pedras. Mas não mudaram nos últimos tempos, pareciam os mesmos. Chovia. Não era uma chuva boa, era uma que entristecia. Trazia em suas rajadas coisas dos tempos, de tantos tempos, coisas ardentes e pontiagudas, preferiria não voltar, mas voltava. Já batia à porta, batia sem certeza do que iria fazer. Quando a porta se abriu ele não podia imaginar aquele rosto, era outro, feito do mesmo. Teve um pensamento de beijá-la, e outro pensamento de perguntar coisas, exigir respostas, dizer desaforos.

Quando seus olhos se colocaram sobre os daquela mulher que lhe abria a porta, e antes que de todo estivesse aberta, veio-lhe de imediato o dia em que fora por aquela mesma porta posto para fora de casa. Não esperava aquela lembrança, não se preparara para recordação tão clara exatamente naquele momento. Tinha apenas 12 anos. Não era um filho ruim, muito pelo contrário, e nunca entendera sua expulsão. Sentiu um rubor nas faces. Fora simplesmente abortado aos 12 anos. Agora estava ali, tinha andado mundo, e ela o recebia sem saber a quem recebia. Na verdade ia àquela porta em busca de uma ultima réstia de luz, a esperança de que por detrás daqueles olhos de prostituta pudesse haver um veio de recordação que a ela avisasse: é seu filho.

A mulher docemente o atendeu. 30 anos depois. Não o reconhecia com certeza. Sentiu-se feito de bobo pelas próprias ilusões. Virou-se sem se despedir, tinha se enganado, foi só o que disse enquanto saía. Um grito. Chovia. Saiu correndo pela rua em direção à marquise da lanchonete do outro lado.

21 maio 2013


Que ventos são aqueles que atravessam em assovios casas abandonadas?
(conto)
 
Lembrei de você e pensei, vou escrever uma carta para ele. Na verdade não vou escrever, não consigo, também não se escreve mais deste tipo de carta, é uma besteira, vou escrever aqui na cabeça enquanto ando pela casa. Lançar mão das palavras escritas para dizer o que não organizo bem significa que não ando bem, mas não se preocupe. Você sabe de muitas coisas, não sabe de todas, nem eu, mas eis que penso e falo. Não sei se escrevo em voz alta. Que se dane se alguém estiver lendo meus pensamentos!

Os ventos, os ventos me povoam de pequenos mas vastos redemoinhos, empoeirados, são aqueles ventos que sopraram quando nos encontramos naquele passeio bobo de trem pelas montanhas no fim de semana, ventos perdidos, hoje sei, que nos juntaram e também nos separaram. O que vivemos? O que foi aquilo? Hoje meus remédios mais fazem as nuvens caírem do que dar-me uma leveza para viver. Peso. Nem sei direito como escrevo peso para distinguir de peso. O primeiro tem som aberto, o outro tem som fechado. A gramática também é o que menos importa para alguém que já morreu. Vocês daí devem ler mais as intenções do que as letras. Estou pesada, afinal, é isso que quero dizer, de viver. Decerto são as curvas, as linhas tortas, nossa!, como são tortas as estradas que fiz, você até tentou me endireitar, mas, que importa isso? A vida sempre pesa... agora mais. Os remédios me dão uma zonzeira, e eu queria uma leveza.

Ah, o que me faz leve são os encontros, os bons, o nosso nem sei se foi bom, mas naquele dia me fez leve. Por que escrevo? Por que agora os ventos voltaram mais fortes? São aqueles ventos que atravessam em assovios casas abandonadas, são aqueles que na lavoura abandonada traçam com fios de palha de milho seca os pensamentos que o doutor não gosta de ouvir, mas, como posso pensar outras coisas quando eles sopram? Falo para ele dos ventos, para o doutor, que me cobra caro, só atende particular. Ele me ouve com medo, vejo nos seus olhos, e me dá remédios como se fosse para se proteger dos ventos. Me dá uns que tira das gavetas e outros que tenho que comprar, sempre tão caros! Fui menina no interior, em espaços abertos de muitos matos e ventos, fantasmas e histórias. Depois me meti com os sonhos de fazer o Brasil ser de todos, na minha juventude. Te conheci depois. Nem sei o que passei, cadeias são espaços quadrados que nos tiram e nos dão coisas. Perdi mais, nem poesia escrevi.

Não tenho mais permissão para dirigir, eu gostava, você se lembra? eu dirigia melhor do que você. Fico aqui, o apartamento é habitado pela Solange durante o dia, à noite os ventos tomam contam, rodam, rodam, e acabam saindo pela área de serviço, mas não encontram ninguém. Ela cuida da casa, deixa sempre a janela da sala um tanto aberta para ventilar, ela diz que é pra retirar o mofo, de mim... talvez de mim... ela cuida. Mas a Solange  cuida bem das fotografias, pra cada uma ela faz perguntas sempre novas enquanto canta uma dessas músicas sertanejas, isso faço questão, de manter as fotografias, as paredes estão cheias. Desejei falar de você para ela, mais uma vez, estou ocupada agora, lavando a cozinha, depois você me conta, ela me disse, e eu ouvi, sabe quando você ouve bem uma coisa?, você cala, eu calei, fechei bem as janelas e fiquei esperando que os ventos batessem na vidraça. Virei para o lado do criado mudo para olhar meus remédios. Tinha uma caixa bonita, destas que se vendem por aí, a Solange que comprou, mas me pediu o dinheiro, bem cara essa caixa, é bonitinha, mas cara. Olhei meus remédios todos coloridos na caixa bonita como se formassem um arranjo de flores. Então me lembrei de você.

08 maio 2013

A janela ficou do outro lado (outro conto)


Onde se esconde a angústia?, ou, mais sincero seria perguntar, onde ele escondia  a angústia?, rodoviárias, não gostava delas, se apavorava em vontades de voltar, mas não voltaria, era assim, o que decidia estava decidido, e pronto, mesmo que lhe custasse um alto preço. Vou-me embora, ele dizia pra si mesmo, vou-me embora, tenho que ir, depois voltarei, e vai ser diferente. Não levava mais do que o necessário para uma semana em alguma pensão de uma rua triste qualquer. Uma sensação lhe percorria por dentro as tripas em ânsias de que a hora não chegasse, da partida, mas ao mesmo tempo a ânsia pedia que a hora chegasse logo, da partida, que o levasse, e o tirasse da rodoviária, que lugar mais esquisito estas tais rodoviárias, mesmo que pequenas, como aquela na sua cidade, pensava.

Era tudo por amor, iria embora por amor, iria com a economia que foi possível fazer ao longo de meses, pouca coisa que conseguiu guardar, iria e voltaria pra casar, ela ficou de esperar, ela o esperaria, combinaram em abraços e beijos e mais beijos, e lágrimas e pare com isso, ele repetia, pare com isso, não te quero mais ver assim, chega de despedidas, de beijar como se a gente nunca mais fosse se beijar, ele dizia consolando-a.

Era tão jovem, 22 anos, magro, uns pelos no rosto, perdidos, mais abundantes no bigode, um olhar de água parada, não sem brilho, mas calmo, calmo como pessoa boa, mas era nervoso, inquieto, teimoso, reclinou-se com a cabeça tocando o vidro da janela do ônibus, nenhuma alegria, apenas decisão, dura decisão, encarar o que Deus mandar, não voltar atrás.

Mas ela apareceu na rodoviária, rompendo o que fora combinado, se o amor propõe fidelidade, o amor também faz romper tratos, ela não aguentou e correu para a rodoviária, quando chegou o ônibus já dava marcha a ré para tomar rumo, ela olhou e viu sua cabeça recostada no vidro como um menino no castigo, sua vasta cabeleira preta, seus olhos buscando sabe-se lá o quê.

Ela estava ali movida por alguma esperança, ele a proibira de ir à rodoviária, mas ela foi. O  ônibus virou-se para o outro lado, dando a volta para pegar a rodovia de tal modo que a janela onde ele estava ficou do outro lado, nunca mais se viram.

03 abril 2013

O pássaro do livro (outro conto)



Aquele livro, ao ver aquele livro no chão da sala algo lhe veio à mente, sem definir-se bem, uma lembrança, um sentimento, uma verdade, uma saudade, ele ficava sobre a mesa, sobre o aparador, sobre a escrivaninha, tinha que se perguntar onde ficava aquele livro, o pássaro colorido na capa, não sabia, na casa dos pais?, de uma colega? e nunca soubera do que tratava aquele livro, era um romance, de um autor de um daqueles países da Europa Oriental, não lia romances naquele período, a vida exigia todo o tempo, toda a mente, todos os interesses, não a vida exatamente, mas aquilo com o qual se identifica a vida, as preocupações, os objetivos, o onde se quer chegar, o que se quer ser, ficava aquele livro em algum lugar, o livro com o pássaro em voo, saindo das tintas, uma espécie de fenix.

Era isso, tinha que ser agora o renascimento, seria, o marido, arquiteto, só sabia trabalhar, escolhera aquele velho apartamento, imenso, no quarto andar, chegara ali pela escada, seguiu seus passos, ele faria com certeza daquele velho apartamento um belo lugar pra viver, pra resnascer, ela pensava, leria o livro que encontrara ali.

Mas estava assustada, inquieta, algo lhe tinha esbarrado no pescoço enquanto subiam o último lance da escada, estava escuro, não porque era noite, mas porque o tempo estava no ponto de derramar-se num temporal  às cinco da tarde, as escuridões tantas vezes se juntam, tomara se juntem na vida das pessoas os amores, os ventos bons e as coisas boas, pensava desorganizadamente, a escuridão da noite que chega mais cedo em abril, a escuridão da tempestade que  não se despede em abril, seria o mais feio dos meses?, decerto não, sua filha nascera em abril, a mais bela das alegrias, mesmo que tenha partido tão pequena, nem mencionaria em pensamento o mês.

O quê? Perguntou-lhe o marido sem dar importância admirando o apartamento novo já brilhante em seus olhos que se voltavam para cada canto, uma coisa tocou-me a nuca, me picou,  um calafrio me percorreu a espinha inteirinha, ele  não deu atenção ao que ela falava entusiasmado com o que via na mente, as mudanças todas já implementadas, o apartamento novinho, e ela entre inquieta com o livro ali no chão, jogado, o pássaro voando da capa, ele não voava para o alto, ele descia, como uma ave de rapina, colorido ainda apesar da poeira e do desgate do sol.

Ela tomou o livro, o marido veio-lhe com carinho e bateu o livro na perna esquerda da da calça jeans, soprou sobre a capa, e passou a mão sobre ele, aqui está, disse, o que você me diz, minha querida?, e aquele minha querida ele dizia pra todo mundo, pra seus clientes, pra seus funcionários, uma coisa tocou minha nuca, ela disse, abriu o livro e deu-se com uma frase de Mayakovsky a título de epígrafe, E só Deus, na sua onipotência, soube que eram mamíferos de outra espécie, depois leria o livro, seria bom ler aquele livro, ele já tinha entrado em sua vida, haveria de se lembrar onde, guardou-o na bolsa, o marido falava e ela não ouvia e se dirigiu à cozinha, abriu a torneira e deixou a água escorrer, não ouvia o que o marido falava, ele ia e vinha, já na sua mente tudo estava pronto, ele já vivia no novo apartamento totalmente transformado, a noite e o temporal se uniam.

Depois de lavar bem as mãos ela ergueu seus cabelos torcendo a cabeça levemente na direção da luz escura, quase tocava o ombro com o queixo, seu marido agora a observava, a luz era pouca, quase noite, o temporal resvalava pelas vidraças de uma ampla janela na área de serviço, ele admirou-se de sua beleza, sua elegância, seu corpo marcado pelo vestido que lhe definia em contraste com os flashs dos relâmpagos e trovões a forma da beleza, seus quarenta anos não lhe diminuíra o esplendor, sua dor e luto, nada, era magnífica a mulher que escolhera.

E então sofreu ali uma dor inesperada, não era hora para aquilo, mas sofreu ali a olhar para ela na última réstia de luz do dia, sofreu por tê-la traído, não poucas vezes, sofreu um remorso inadequado para ele e para aquele momento, surpreendia-se consigo mesmo, mas jurara a si mesmo que tudo recomeçaria do zero, o novo apartamento seria o marco de uma vida nova, ela estava ali, isso importava, ela estava ali no escuro da cozinha, e precisava dele, ou ele começava a sentir que mais precisava dela do que supunha, em silêncio ficou a admirá-la, apenas a chuva fazia seus rumores, cantava seus cantos, o temporal entoava seus deboches e seus lamentos, ela repetia o gesto, mão na nuca, não na torneria, ele então foi ao interruptor e acendeu a lâmpada chamando-a pelo nome, havia sinceridade na doçura que impunha à voz, e assustou-se, da sua nuca escorria um filete de sangue que ela tentava estancar com a mão ora pressionada sobre o corte, ora indo à água.


26 março 2013


O meteoro das dores que só doem (outro pequeno conto)

 , tem dores soltas, dores perdidas, avulsas, sem causa e nem finalidade, que só doem, como imensas pedras geladas voando pelo espaço e que, de repente, tangenciam os mundos, elas não estão nem ai para os nossos sóis, para aquilo que ilumina nossos passos, para as escoras que  tomamos para não cair, dizia para si mesmo 
, tem dores de coluna, dores de amores não vividos, dores de uma infecção, mal-estar febril, mas estas outras que sentia ali, cometas desorientados, ameaçadores, nem imaginava que iria sentir, andava por aquela rua trinta anos depois
 
, a rua do lado direito era a mesma, os prédios de quatro andares perpendiculares à rua, lado a lado, irmãos amigos não vencidos pelas diferenças ao longo do tempo, os mesmos prédios, a mesma vida ali, o mundo mudara, não aqueles prédios, passava por ali, com a bolsa de couro de inspiração hippie, era tempo de faculdade, ia para a casa dela, tinham um quê, não sabia exatamente o que existia entre eles, nunca falavam disso, existia e era suficiente, bons momentos vividos, encontros dos mais fortes aos mais ternos, gargalhadas por pouca coisa, sonhos e projetos apenas para o dia seguinte

, a rua, a rua era a mesma do lado direito, mas as casas do lado esquerdo, inclusive a dela, todas abandonadas, casas de um único pavimento, térreas, o meteoro caía sobre ele, portas abertas, plantas e arvoredos secos e lixo, portão enferrujado, dos portões se avistava o que fora a casa um dia, dores desorientadas, meteoros frios e ásperos, sem aviso ou previsão, desgovernando seus passos

, os “nóias’ haviam usado as casas, via-se pela imundicie, mas alguém, talvez algum herdeiro daquelas casas mandara colocar aqueles arames de penitenciária sobre os muros tornando o meteoro das dores ainda mais cruel, do lado direito a rua era tão igual, a mesma de trinta anos atrás, mas aquelas casas na parte de baixo, cinco casas, eram lindas

, cada uma com seu jardim à frente, não grande, mas jardim, dos mais queridos os jardins são os pequenos em que se sabe de cada planta, cada canto, por que passava por ali?, até se esquecera para onde ia, trinta anos, tanto tempo se passara, dores avulsas matam, morria ali de algum modo, ou haveria de viver, sim, viver mais, viver, não, não, nada mais voltaria, a dor não tinha para quê

, não ensinaria nada, era melhor acelerar o passo, mas sentia crateras sobre os pés, sim, devia parar para olhar os detalhes das casas abandonadas, detalhes de carnes do tempo, carnes cortadas com lâmina fina, pensava que parar aliviaria aquela dor, não sabia, o único jeito era tentar, encostar-se ao portão, escorar-se na ferrugem, no ferro corroído, ah vida  férrea!, deveria parar e olhar, olhar, não

23 março 2013

PEQUENO CONTO

, o outono?, ou as chuvas de março?, ou o fim de verão?, ele não tinha o que pensar porque tinha muitos pensamentos e preferia ficar propondo-se questões sem pé nem cabeça pra ocupar a mente, ficava ali na varanda do segundo andar, nem sempre sozinho

, mas aprendera a ficar sossegado com suas questões para enganar a própria mente dada a meditar as dores, ali no mesmo lugar do velho sofá onde a bunda criara um mundo abaulado, uma cratera de pensamentos vagantes

, quando a varanda se povoava daqueles tantos que lhe pareciam estrangeiros, mas que eram seus filhos, netos, bisnetos já teria também? e não sabia mais quem, ficava ali a olhar o mar, mantinha-se como se eles ali não estivessem, olhava para o mar a sentir a maresia, mesmo quando um ou outro querendo aparecer diante dos outros como bem dedicado e amoroso vinha-lhe com abraços e beijos sem muita convicção

, ficava ali a ouvir os ruídos do mar, ruídos que só ali existiam, onde começa o amor?, onde começa o pássaro, no ninho ou no voo? onde começa o amor? começaria o amor na primavera da vida?, talvez comece na sede, na fome, na exaustão, talvez comece na saudade, na urgência de viver, no inverno, no vento sul, no insucesso... onde começa o amor? pois que comece um dia, que não tarde...

26 janeiro 2013

Dias de Cafarnaum - 2


, seus olhos mesclavam carinho e horror, ambos os sentimentos se justificavam na vida que eu apresentava ali naquele lugar e hora, olhar de desorientado, roupas de um perdido, feridas de um assaltado, ela tinha uns 45 anos, ainda linda como se tivesse uns 20, Maria, disse aquela que se tinha curado da febre, deve ser dos nossos, dos que se levantam da desesperança, o que aconteceu, jovem?, Maria perguntou, aquele olhar era o mesmo, como podia!, espantei-me, o olhar dele estava nela, a mesma fisionomia em traços diferentes, ela bela apesar dos anos, ele rude, agreste, marcado de conhecimentos apesar de jovem, são iguais, pensei, são irmãos? me enxergam do mesmo modo, sabem o que não sei

, ela me olhou sem palavras, a principio, esboçou um sorrisso depois, e perguntou, como você se chama? não ouví nada senão minha própria voz, eu me ouvia dizendo, recobre a confiança inicial, retome a esperança de quando você o ouviu pela primeira vez, devo ter agido de modo estranho, aquela que se levantara da febre disse, Maria, o que podemos fazer por ele? o que seu filho pode fazer por ele? ah, sim, eram mãe e filho, concluí, por isso tinham o mesmo olhar, pensei que eram irmãos, Maria respondeu perguntando, o que podemos fazer? e virou-se para mim e era atenciosa, o que você quer? perguntou docemente, sem saber o que dizer fui falando, não se preocupe, não se preocupe, obrigado, obrigado, e fui saindo, não entendi porque corri dali, a mãe e o filho tinham me visto, e isso parecia bastar naquele momento, eles tinham me visto, eles tinham me visto, corri pelas ruas de Cafarnaum, varei na praia, me acalmei ali escorado em um barco, respirei

, ficar ali escorado naquele barco por um momento aliviava todas as preocupações, tudo parecia bem por uns instantes, mas logo o peso se faria sentir ainda mais lacerante, sabia, felicidade são pequenos descansos em jornada longa e exaustiva, diziam que ele oferecia alívio com suas palavras, ainda não sentira esse alívio, sentira o olhar, e não sabia o que fazer depois dele, o mar rugia ao seu lado como se anunciasse tempestade, talvez chegasse mais tarde, ou à noite, escorava-se naquele barco, que já não era senão madeira velha, vida vivida em muitas lutas, e depois? ficar ali como um barco que vai virando areia?, não entendia de barcos, de mar, entendia de montanhas, de vales, de pequenos veios de água, sentiu saudade de sua vila, veio para Cafarnaum por causa dele? o que esperava dele?, ficou confuso, começou a andar e sentiu, sentiu como num clarão de relâmpago, solidão era aquilo, aquela busca, sozinho nas perguntas, sozinho nas respostas, desejou voltar novamente à casa de Simão, às escondidas

20 janeiro 2013

Dias de Cafarnaum - 1 ( um conto em fragmentos para o facebook)

, desaparecer a febre, para desaparecer a dor é preciso estender a mão, ou espichar o olhar, e o ouvido de escutar, pois que também há o ouvido-orelha-apenas, falaram da mulher doente, e ele foi lá, ir lá onde está o doente, se fazer proximidade, solidariedade, vencer a própria assustação de adoecer, de morrer, ele foi e favoreceu a vida, estendeu a mão, ergueu a festa, ela serviu coisas muito boas, pão quentinho, uma taça de vinho, uma bela romã, foi no dia de Cafarnaum, quase ao pôr do sol, outras coisas boas acontecem nesse dia

, depois do pôr do sol, talvez, talvez sentar à porta de casa e olhar o movimentos das coisas, o mar lá fora, talvez andar na praia entre uma luz e outra, entre uma saudade e outra e voltar, mas vieram tantos, eu também, cada qual com uma dor, cada dor uma história, ele os tratou, a noite fez-se mais bonita em Cafarnaum, fiquei por ali, entre escondido e admirado, mas ele me viu, não imaginei que ele fosse me ver, mas me viu, me chamou sem palavras, me disse coisas silenciosas, algumas esqueci, forço o coração pra lembrar

, em Cafarnaum, não sei o que eu buscava, não sei se cura, não sei se palavra, talvez coragem, ou poesia, ou nada, mas ele me viu, um qualquer, em Cafarnaum eu era um qualquer, também em outros lugares, tantos quaisquer estavam ali, e ele perguntava a cada um, o que você quer?, pensei no meu querer quando ele me viu à distância, me vi aprendiz, um daqueles, um outro qualquer falou, se queres tens o poder, e a resposta foi, eu quero, dois quereres se fortaleceram, eu vi, me vi aprendiz, os quaisquer também tem poder, o do querer, o que você quer?, mas o poder do querer se atualiza no plural, na junção, no encontro, foi em Cafarnaum, a noite me cobria de fome e cansaços, me vi amparado por pequena lanterna

, pensei em procurar um abrigo, mas naquela hora, o que eu queria era ficar encoberto pela noite, pesou-me a insegurança de estar em terra estranha, um vento muito frio me atingia, e vinha a laterna na mão de alguém, vinha, talvez viesse da casa de Pedro, passaria por mim sem me ver se eu ficasse bem quieto, mas a lanterna balançava cada vez mais próxima e parou alumiando meu rosto, ofuscando meus olhos, era um senhor de uns 70 anos, na hora perdi um medo e ganhei outro, o que queria de mim? o que eu procurava em Cafarnaum? e ele falou entre professoral e austero, entre firme e sabedor das coisas, ele disse, se ouvires sua voz, não endureças o coração, mas o meu coração, pensei, já se vai em durezas e escassez, amanhã bem cedo vou-me embora de Cafarnaum

, se eu não sabia exatamente o que procurava em Cafarnaum, ir embora de Cafarnaum me colocava outro problema, o que fazer da vida, então? levantei-me pra procurar outro canto pra passar a noite mais protegido do frio, as estrelas e qualquer outro brilho de rumo me tinham deixado, o velho somente me avisara pra não endurecer o coração ao ouvir aquela voz, foi quando senti por um instante uma dor de fim de mundo na cabeça, girei e caí, lá na casa de Simão e André a senhora erguida da febre deixou cair o que tinha nas mãos e disse em susto, mestre!, ele saiu, foi até a porta e olhou, olhou, perguntaram-se por olhares o que tinha acontecido, e o silêncio e o soprar frio do vento respondeu-lhes com assovíos, mas eu estava fora do alcance da vista deles, em outra parte da cidade, suportei até onde podia a dor, o sangue escorria por detrás da orelha direita e encharcava-me a roupa, tudo ganhava paz, o frio desapareceu, foi-se o medo, todos os pensamentos cessaram, acabou-se o não-saber-o-que-fazer-da-vida

, acordei com uns meninos me futucando com varas, como se eu fosse um bicho morto, em dúvida se morto de todo, percebi que ficara desacordado, doía-me a cabeça, o sangue me untava em pagajosa liga entre o tecido e a pele, um gosto férreo revelava-me que a boca também fora alvo de pancadas ou simplesmente acolhera o sangue escorrido, oxalá pudesse ouvir sua voz, nada ouvia senão gargalhadas, Cafarnaum, Cafarnaum, pensei, encontro mais dores aqui, para onde irei agora? os meninos riam e riam me futucando com suas varas, talvez eu necessitasse me mover mais, para que eles parassem, mas me encolhia, mas ele, ele me viu, me amparava nisso, comecei a sentir nas costelas a extremidade pontiaguda de suas varas, o sol já se erguera um bom ângulo no céu, o que me tornei? era já passada a hora de buscar outro rumo, o coração nem rígido nem fechado, apenas machucado

, eu desejava ir-me embora de Cafarnaum, levaram-me minhas poucas coisas, fiquei a perambular pelas ruas, desejar não era a plavra, eu precisava ir embora, mas não ia, desci à praia e fiquei observando os pescadores, os que consertavam as redes, outros se tinham ido pro mar, lavei-me o que pude ali, pensei então em ir para a praça em que se contratam trabalhadores, fui, e enquanto ia sem certezas de ir deparei-me com aquela que se tinha erguido da febre por aquele homem, venha cá, ela disse, venha cá, carregava em seus cestos legumes e peixe, você era um dos que estavam à porta de casa, disse enquanto repetia-se em sua mente o pensamento que viera depois da febre, animai-vos uns aos outros, o que lhe aconteceu? ela perguntou, havia um quê de mãe em sua voz, então outra mulher se aproximou, não sei dizer o que senti em seu olhar