26 dezembro 2012

Os habitantes - 5

, sofrer este ou aquele acontecimento, um esbarrão aqui ou lá é uma coisa, mas seguir a vida semeando desejos e sonhos, e na colheita ter apenas esmirrados frutos, nem sempre doces, na maioria das vezes não, exige uma espécie de paciência, aquela que talvez seja parelha à dos monges, uma paciência que se amasia com o divertimento que se dá a partir de abundantes pequenas coisas, um riso farto e uma sensação de felicidade por uma trivialidade qualquer, ria de si mesma, sentia sede e não tomava água, Romana olhou a clarabóia empoeirada lá no alto marcada por camadas de poeira por cima e de olhares por baixo, os dela pelo menos, olhares como de prisioneiros, sede de prisioneiro, e levantou-se rápido, abaixando-se sem dobrar os joelhos como era seu costume, mantendo uma feliz capacidade de flexionar a coluna sem os incômodos da dor, para tomar a chaleira de alumínio no armário, nas portas de baixo de um velho armário de madeira, ferver a água e passar um café novo, logo teria que servi-los, colocou sobre a pia a vasilha e abriu a geladeira, encheu um longo copo de água, tomou-o e lembrou-se de novo do esquadrão, seu marido morto, ninguém sabe quem o matou, todos comentam do esquadrão, arrepiou-se em pensar que a campainha cujos sinetes retiniram em alguma igreja pra o serviço da missa se prestasse agora a chamá-la, logo, logo, para servir o café ao governador e aos seus homens engravatados

25 dezembro 2012

Os habitantes - 4

, seguiu Romana para a cozinha por aquelas ruas labirínticas por entre móveis, utensílios de um tempo de gente morta há muito tempo, coisas e mais coisas, altas e baixas, mas sobrepostas umas sobre as outras, se menores, se possível, formando aquelas paredes todas, ela seguia e a dor já passara do ponto do nervosismo, já era possível suportá-la, a dor diminui ou acostuma-se?, as do coração, as da alma não diminuem, habitua-se com elas, elas passam a morar no mesmo prédio, inquilinas do mesmo corpo, chegou à cozinha, escura mas fresca, um quadrado de vidro no alto dava-lhe luz, queria um dia subir lá em cima para lavar aquele vidro de séculos empoeirado, o ar vinha, vinha fresco das muitas sombras do galpão, o ar chegava macio das muitas voltas dadas pra chegar ali, como era agradável aquela cozinha, e sentou-se sem vontade de tomar o gelo e por na perna, na coxa mais especificamente, arriou-se de seus pesos, sentou-se em lembranças de tempos bons, esparramou-se mal ajeitada na cadeira e as mãos levemente apoiadas na mesa, dois dedos da mão direita, quatro da esquerda, medidas e contas que via nas mãos, por que pensava em contas da vida agora?, dois e quatro, o dois dizia da vida os anos bons, e o quatro os anos dos sofrimentos, vinte anos bons porque cheios de esperanças, os primeiros vinte da vida, e quarenta de muitas lutas e sofrimentos, ah, veio-lhe a mente o balde que usava, aquele grande de latão com o qual recolhia no riacho a água para o pote, limpa e brilhante de expectativas, sonhos que nunca ganharam o corrimão na escada das realizações, queria agora um copo d’água, era só levantar e abrir a geladeira, seria bom ter um filho por perto, filho por perto? ai meu Deus!, mas o corpo dizia, aguente a sede e deixe as pernas descansarem, aguente a sede

23 dezembro 2012

Os habitantes - 3

, nisso dona Romana se aproximou, de romana ela não tinha senão talvez um jeito de matrona, brasileira é que sim, italiana já da terceira geração no Brasil, e veio meio que espavorida dizendo, o senhor governador, o senhor governador, e de repente ela mudou de assunto e começou a fazer reclamações como se eu é que fosse o governador, e a sugerir, reivindicar com autoridade, o senhor devia fazer uma avenida central por este galpão de tralhas, estão aqui há tanto tempo e ninguém comprou, e esse vai e vem de ruas que mais parece um labirinto, calma dona Romana, eu dizia, calma, acabei me machucando, ela reclamou, nessas quinas velhas, e esses ferros velhos podem infectar alguém se a gente se espetar numa dessas coisas que sabe Deus de onde vem, o senhor faça o favor de fazer uma rua central aqui ou senão faço eu, e o governador? perguntei,  está lá na frente, ele e mais uns homens de paletó preto, parece que vem de enterro, meu Deus!, o que houve? lembrei do esquadrão, respondeu e continuou, ele está lá olhando umas poltronas, aquelas que o senhor quer vender por um preço bem alto e que até hoje ainda não vendeu, calma Dona romana, calma, sim, sim, vou pra cozinha, o senhor tem razão, vou me acalmar, vou colocar um gelo nesse roxo na perna, se precisar o senhor toca a campainha da igreja, mas me dá um tempo, por favor, se bem que eu acho que o senhor não devia tocar pra chamar alguém uma campainha que se tocava na missa pra chamar os anjos para o altar
Os habitantes - 2

, trabalho com coisas velhas, nem digo antigas, qualquer uma que se possa comprar e se possa vender, e para que você me encontre tem que atravessar este galpão penumbroso de tantas coisas, seguir por pequenas ruas entre elas e chegar aqui onde agora estou, se antes você não se encantar com uma  qualquer, elas nos pegam, as pessoas são pegas pelas coisas, não apenas as novas das lojas apelativas, mas também por estas sem valor, nem são antiguidades, mas comercializo, ganho a vida ou perco tempo, beleza é que não têm, charme é que sim, charme que do uso ganharam, das assombradas marcas que trazem, eis que aqui estou, sou dado a muitas leituras, fregueses são esparsados, romances que ninguém lê, que compro em sebos, que nada me ensinam, me ensinam apenas um certo domínio da língua, lábia que uso pra vender algo de pouco valor como se muito tivesse, mas tenho que viver, comércio não se faz sem se agregar histórias ao que se vende, o que ela diria, retomo a pergunta, não há como resposta nenhum barulho, nenhum sinal, ela retirou-se para uma outra conversa, com São Rafael talvez, pedindo por alguém uma ajuda, se sua vida foi assim, como não ser sua morte, como não ser sua morte essa ponte constante de atravessar entre quem precisa e quem pode ajudar

22 dezembro 2012

Os habitantes - 1

, talvez seja melhor dizer uns fragmentos, ou em fragmentos, ele pensou, do que nada falar, ela escutaria, calma, tranqüila, sempre presente, tão discretamente presente, totalmente ausente, mas presente, porque senão o calor me evapora, as palavras em vento, como vento das montanhas traria uma aragem de sossego, estava desassossegado, o sossego o que seria?, perguntava-se, teria tido sossego algum dia?, sim? quando?, mais sentia-se assim, acostumara-se assim, o sossego era só um momento, o passar de um passarinho, foi abrindo a mesa sem cuidado, nada era tão importante quanto tomar aqueles pensamentos e fazer deles umas frases, elas seriam salvadoras, abriu a mesa com as duas mãos, empurrando tudo para os lados, como um general que abre um mapa sobre o brilho da mesa bem polida, a sua não, a sua carregava-se de manchas, marcas, manchas ou marcas?, marcas, preferia marcas, eram marcas, mas até que queria apagá-las, viver sem marcas, sempre fora marcado, como um boi, balançou a cabeça como se os pensamentos fossem moscas, melhor seria mandar aquela mesa para um canto qualquer do galpão, e procurar outra, mesas haviam muitas pelo galpão afora, mas, da mesa vieram lembranças, o que ela pensaria, o que diria, sim, talvez, se pudesse, ela tomaria a caneta, ela não sabia usar teclados, mas na caneta ela desenhava letras, cada uma com um sentimento, o seu a era um balãozinho branco no céu, o seu m era uma cadeia de suaves e lindas montanhas de uma terra distante, agora eu entendo, ele pensou, agora eu entendo a distância daquelas montanhas do seu m, mas ela estava ali, e avistava tudo, e o que ela escreveria?, ele se perguntou

09 dezembro 2012

, mas poderia ser insistência demais, insistir com Deus, com o tempo, para que voltassem os passos que não dei e o tempo me desse a chance de seguir por outros caminhos, guardar o que aconteceu em laços tão fortes, tão fortes como barras de uma cadeia, não, não darei mais esses passos, não voltarei mais pela memória aquele dia, a noite nem fora assim tão maravilhosa, fora sim, uma noite inesquecível, mais do que qualquer coisa ali, havia outra, outra coisa, mais que coisa, menos que, uma luz que diz que aquele é o momento, talvez de um nascimento, de uma morte, nada comum, tão comum, solene é melhor dizer, sublime, ou tudo criei, tudo inventei, me amparei tantas vezes nas lembranças daquele encontro, um porto pequeno perdido, um posto de beira de estrada sem movimento, esperei que por milagre nos encontrássemos de novo, o mundo deu voltas, é hora de, o avião já está aterrissando, outra hora retomo a leitura

08 dezembro 2012


, você distingue os fios, surgem veios de luz na sua mão, solidifica-se ali ao lado a cera derretida de uma noite bonita, há algo mais pra dizer, não, você não me diz, quem sabe quando o sol nascer, nasce e o “bom dia” fica no lugar da palavra, casa que se constrói onde se pode, falta uma colina e um riacho, há algo mais a dizer, não, você não diz, me olha, fala umas poucas coisas na fresta de um instante, vou-me longe, e enquanto recordo aquela dia, aquela noite, chove-me um entardecer de possíveis e fáceis outras noites, mas sem você, os anos descarrilharam, rolaram mais rápidos do que se podia imaginar, não encontrei a escuta daquelas palavras, aquelas que só você podia dizer, é, sim, estas palavras que outros encontram e lêem agora diz outra coisa, ela diz uma história, de uma noite, de vidas, mas é outra coisa o que ela quer dizer, nem sei, nem você, apenas aquele que lê é que pode saber

12 novembro 2012

Uma fruta tem paisagens, descortinadas janelas abertas das duas bandas para um intempestivo lugar, uma janela para aquele cenário que reverbera como eco da palavra alegria, alegria, legria, gria, ia, ia, ia, ia a mente, o coração, ou o que se passa nos fluxos entre os dois, ia na direção do riacho de areia branca e água transparente, ia na direção do pomar por ali, do bambuzal majestoso a estalar seus humores de louvor aos ventos bons, ia, eu ia, era por ali que eu ia, íamos em busca das mais variadas mangas, alegria, sim, mas agora era pelo dia que eu seguia, mais um dia, um peso aqui, uma preocupação ali, a agenda acolá, a rotina a me desafiar em deboches, quando me perdi... foi na primeira mordida que dei... me perdi... naquela manga que ganhei, ah, o sabor tem paisagens, o sabor tem cenários, o pomar, o riacho, as imensas mangueiras, foi bem lá que eu caí. Ganhei mangas, mangas da infância, mangas de caldo a escorrer pelos braços até pingar pelos cotovelos na camisa, mangas, não sei como você as conhece, essa de que falo, eu a conheço como "manga seleta", de sabor e perfume inconfundíveis, ah, ganhei mangas.

10 novembro 2012

Vem um dia e vai outro, os acontecimentos seguem, e Deus continua sendo, pra mim, um suave aviso. Apenas. Algo assim.  O sol se levantará amanhã. Um aviso acerca do que não carece de aviso. Ame! O navio que está no porto partirá, sob o arco da ponte um outro cargueiro avançará mansamente para o cais. E essa presença, para mim, ainda é mais escondida que a brisa suave, aquela que o clássico texto bíblico menciona. A brisa suave o homem de fé ainda percebe. A presença de que falo é uma brisa tão imperceptível que apenas um homem de pouca fé poderá reconhecê-la. Sim, apenas no titubeio e na fraqueza de uma fé quase não-fé, (por que me abandonastes?) é que se dará este encontro, essa conexão entre a brisa imperceptível e o filete verde e inclinado da erva miúda. Ame! Exageram tanto nos elogios de Deus, meu Deus!, penso que até Ele se incomode, e fique esperando um gesto de Amor mais do que estas estrondosas e grandiloquentes manifestações de fé. Falam de experiências tão altas que os que vamos aqui pelos baixos vales do mundo, pelas ruas árduas do cotidiano de luta, até pensamos que temos que inventar também feitos e maravilhas de Deus em performances de fé impecáveis. Ah, eis que desempenharei desajeitadamente outras performances, aquelas que marcam as dores e lutas e habilidades humanas na construção de um outro mundo.

08 novembro 2012

O mundo deu uma volta completa ao redor do sol, meu Deus!, a saudade se alongou pelo espaço numa dança de despedidas fazendo um longo anel ao redor do sol, mas ainda a saudade vai se alongar por outra volta, sinto, como se nenhuma outra viesse antes para dar firmezas ao espírito, para o coração não sentir como dor o que dói, para não sentir como luto o que ainda é árdua luta: viver sem sua presença, mãe, sem sua bondade, sem sua terna simplicidade. Ah, um ano se completou, estamos no mesmo ponto do universo de onde ela partiu. Em direção de que estrela ela foi? A chuva cai constante nessa noite em que coloco em letras o que por estes dias todos foram apenas murmúrios de preces sem alardes. Meu Deus, é sem alarde - talvez com menos fé, mas com um pouquinho mais de amor - que dela te pronuncio o nome: Maria.

07 novembro 2012

Tantas coisas na vida não passam de fantasias que vestimos. E nos acostumamos tanto a elas que passamos a levá-las extremamente a sério. Os papéis que vamos desempenhando aqui e acolá se colam tão fixamente em nossas vidas que impedem que outras e lindas e maravilhosas realidades se manifestem em nossos caminhos. De todo modo, se não é possível viver sem a vestição dessas fantasias, pelo menos a possibilidade de trocar uma por outra de vez em quando me parece bem revigorador do ânimo e da alegria.  Deus me fez tantos, Deus me fez muitos assim como Ele é Uno e Trino, Deus me fez no plural. Mas as fantasias que me são oferecidas são tão poucas que parto para a invenção. Ah, que causo estranhezas, isso sei. Mas se eu não forçar a porta ela não se abrirá, se eu não me apresentar como outro, sempre me verão como o mesmo e eu mesmo morrerei de tédio, rsrsrs... O mesmo é que não quero ser. Me contentar em ser o mesmo significa me perder de meu Pai,  Deus, o Inventador, o Criador, o Transformador, o Sempre Outro.
Um dia desses, folheando um livro numa biblioteca, dei-me com a palavra maravilha. A raiz da palavra se avizinha do nosso verbo mirar. Maravilhar-se, portanto, é um estado que decorre de um olhar que vê algo mais, um olhar que desdobra superfícies e vê outros lugares na mesma paisagem. Fiquei pensando que os humanos são estas paisagens ricas de mil camadas e que merecem estes outros olhares. Mas há que se desacostumar o olhar - como bem nos mostra o poeta do pantanal Manuel de Barros. Sim, desacostumar o olhar do nosso – às vezes idolatrado – ponto de vista. Pois que se vai o olhar em perigos de ser viciado, em ver sempre as mesmas coisas, os defeitos, os pontos negativos, o inimigo, isto e aquilo, o que não está ali, mas que ali enxergamos. Ah, e o olhar que se cai dessa arrogância com certeza vai se dar com maravilhas por ai, na história, na vida, na experiência, no traçado dos passos de cada um.

06 novembro 2012

Um dia um livro marcou minha vida, tantos livros deixaram suas marcas, mas um dia, um dia perdido nos campos, um campo sempre aberto a novas estradas, um dia um livro marcou minha vida, On the road, e marcou porque antes as estradas marcaram meus passos com destinos escondidos, vários, muitos escondidos até hoje, destinos, alguns, que tomaram meus passos e criaram meus anos, um dia um livro marcou, um livro de Jack Kerouac, da chamada geração Beat, aquela que forjou a geração hippie, um dia, várias vezes voltei aos livros deste autor pra resgatar a inocência, e os sonhos que se lançam por estradas, sim, volto a eles, a este especialmente, On the road, Pé na estrada, quando sinto que retiram do ar que respiro os respingos de luz que o menino respirava quando com sons guturais imitando o ronco de um motor dirigia o velho caminhão abandonado em ferrugens, e óleo derramado, eu guiava respirando aquelas partículas de luz, horizontes se abrindo, busco os livros de Jack Kerouac quando a fumaça e o peso da rotina, a falta de poesia pesa sobre meus olhos, me preparo agora pra ver o filme, On the road, será que ele me marcará com cicatrizes, desenhos, mapas da alma, será? ou, ao fim do filme, verei que o que li no livro está lá, inalcansável, num horizonte de vermelho sol que se esconde.
A vida se vai, e sem que percebamos, em certos momentos, nos sentimos como se tivéssemos diante de um filme do qual perdemos o fio do roteiro. Cercam-nos os passarinheiros por todos os lados com seduções para que entremos nas briguinhas de poder, nas disputas pequenas de egos movidos por interesses egoístas. Armam-nos suas arapucas capitalistas de portas amplas e douradas. Perdendo o fio do roteiro perdemos também o que nos levava pelos sonhos de poesias e ideais, mesmo e apesar das dificuldades; a crença na bondade, mesmo e apesar das fragilidades de cada um. Sim, perdemos o outro como parceiro e construímos muros, e pintamos inimigos em cada pequena sombra que se avizinhe. Ah, então, é preciso respirar e buscar no fundo dos pulmões o calor da renovação dos desejos que ainda em nós habitam. Aqueles desejos de viver bem, em paz, com a benção de um livro nas mãos, um amigo, uma conversa solta ao sabor de uma xícara de café, uma taça de vinho no início de uma noite tranqüila. Afinal, de que falo?, falo em reencantos, em processos de reencantamentos, falo de buscar o mundo, sim, buscar o mundo outra vez, o mundo no qual fui plasmado, meu mundo, este mundo, este que é o lugar onde fui posto para o cultivo de bons acontecimentos. Mundo plataforma de vôos. Haveremos de ser criativos para não cairmos no laço do passarinheiro. Voemos.

28 outubro 2012

, o que é a bondade?, você perguntou, mas não mais do que isso você perguntou, e ficou olhando para aquele barco de qualquer jeito deixado na areia,  as cores do barco mesmo que marcadas de esbarros e pancadas e muitos dias, ainda davam a ele uma indiscutível beleza, mas a beleza também estava nas cordas ali jogadas, jogadas como dias vividos, como boas horas, bonitas, passadas, o que é a bondade?, a inclinação do barco também era bela, como se fosse derramar poesia pela areia, ah, lembrando que bondade e bonito tem a mesma raiz, você diz, talvez bondade seja isso, um barco deixado na praia

27 outubro 2012

, era cedo ainda, mas ele sentia como se fosse mais tarde do que era, mesmo e apesar dos seus vinte e poucos anos, um Bob Dylan sujo e desorientado andando por Nova York, um Bob do terceiro mundo, sonhava em aprender a tocar gaita, se bem que podia ser um bom médico, pensava umas coisas legais sempre que dedilhava seu violão sentado sobre a cama, brilhava um sol de primavera com cara de verão, tinha tantas coisas pra fazer, ia andando como se estivesse de férias numa cidade distante, cobria tudo com o olhar de novidades, mas não conseguia, era o que queria, mas não, o que via teimava em repetir as mesmas paisagens, os mesmo nomes, os dos restaurantes, os dos bares, das lojas de roupa, então ele voltava para a construção, tentava voltar, construia seu andar de turista em cidade estranha, via-se feliz de andar livre sem saber que rua viria depois da esquina, mesmo sabendo que era a rua para onde ia, e então dava-se de cara de novo com o muro feio clamando por vida nova

20 fevereiro 2012

Tu te percebes em inquietudes, é nas palavras, é nas letras que elas florescem, no que fico escrevendo no avanço da noite, são minhas eu sei, tu não te acometes delas, as inquietudes a mim assolam, fazem tremer o assoalho da velha casa e me incitam a ser, ah, que cansado às vezes vou de ser este, e quero outros eus para me viver, te dou um exemplo de um outro eu, aquele que tem um barco ancorado ali, barco que perdeu as tintas, tintas de cores que não gosto mais, esse quero ser, e já sou, as inquietudes me escoram, todavia, me amparam ainda, até quando não sei,  de certo modo são elas que me fazem viver, vivo por elas, elas me põem de pé, me fazem andar a despeito do cambalear - mais dos titubeios do que da embriaguez - sim, sim, ainda te amo, acredite, não te agrado sempre minha querida? ainda vou contigo lá onde queres, mesmo que eu não deseje ir, tu sabes, este momento agora meu amor, nessa rua, nesse sol escaldante, o suor me fazendo um vassalo qualquer da ilusão do carnaval, é por amor, na verdade me queria ver no mar, não exatamente no mar senão meus olhos, jogados de cá de uma varanda, tomando um vinho de viagem, é, pois explico, um vinho de viagem, ao raiar do sol da terça-feira de carnaval, vou-me, não me indagues mais que isso, esse outro ainda não sei quem serei, bebemos, mas nem tanto, não é mesmo querida? calma, fica tranqüila, o amor se arranjará em modos de ficar, como já te disse, só quero outros eus para me viver, tudo bem, tudo bem, me explico melhor, só quero outros eus para me viver... e te amar.

05 fevereiro 2012

Ia, não sabia exatamente para onde, talvez para a casa de uma de suas irmãs, uns sete quilômetros, talvez confessasse sua dor à irmã, eram tão unidas, talvez falasse do seu amor, ou não, seguia a estrada sem querer voltar, a tristeza a perseguia desde o dia que partira aquele, empregado risonho, bom trabalhador, vaqueiro destemido, seu pai o despedira, foi-se a pé, uma pequena bolsa de couro jogada nos ombros com uma única peça de roupa, a outra, vestia, a de trabalho, não tão bem lavada, passada às pressas pra secar mais rápido, sem tempo de ficar no varal, viera um dia bater à porta da casa de seu pai pedindo trabalho, avistara-o da janela quando a porteira bateu e viu que um estranho se aproximava, quem será? perguntou-se enquanto cantava uns versinhos, sentiu ali, sentiu, não inventava, sentiu ali que seu destino viria a mudar, mas triste agora caminhava, seus passos queriam fazer os dele, ir aonde ele teria ido, para onde se foi? esperou que ele voltasse e não voltou, passaram os dias, veio uma chuva que se alongou por semanas e ele não apareceu, ela pensava, ele voltará num domingo qualquer, ou num sábado à tarde, para vê-la com a desculpa de que queria rever os amigos, os outros empregados em seus galpões pobres e cheios de outras coisas, arreios, ferragens, as camas cada uma num canto que o pobre escolhesse, seu pai não permitiria que conversassem, mas ela saberia, foi por mim que ele voltou, pensaria exultante de alegria, sofria ele do mesmo mal que ela, o desejo de ver, de estar perto, vieram de novo os dias de muito sol , ele não, nunca mais, mais de mês, e hoje, dia de Santa Inês, ninguém trabalha, seu pai não permite em homenagem à sua santa, estão todos de folga, os empregados no seu galpão, estirados em suas camas com lençóis que precisam das águas do riacho, e ele? Águida segue a estrada, o sol das duas da tarde se distancia de suas dores e faz o mundo todo indiferente, tudo queima na solidão da estrada, os passarinhos cantam aqui e acolá perdidos, Águida pára, olha ao redor, não avista nenhuma casa, o gado se amontoa na sombra fresca perto da mata, então desiste de ir à casa da irmã, tão longe à pé, volta-se e avista alguém que vem à cavalo, teme que seja seu pai.

24 janeiro 2012

Subia, sol escaldante, o pequeno caminho que o levava ao alto do morro onde ia buscar o gado, subia a pé, o pasto já sentia a falta de chuva, e corroia-se de raiva, pois tinha certeza, seu irmão mais velho tinha descoberto onde guardava suas economias, um dinheiro de longo tempo acumulado de pequenos ganhos, um dinheiro pouco que o pai lhe dava e que economizou, pensava numa bicicleta, aquela azul marinho da loja do seu Guilherme, e assim como um pensamento que vem e vai o dinheiro sumiu, seu irmão fez que não sabia, achava-se pelos seus dezoito anos no direito de impor-se sem explicação, dormiam no mesmo quarto, três camas, na parede sobre a cabeceira um quadro de santo para cada um, São Lourenço sobre a sua, o de dezoito sobre o qual caiam suas sérias desconfianças tinha um anjo de asas bem grandes, ele com quinze e o de quatorze com São Roque, este de quatorze lhe tinha muita estima, mas o mais velho desde pequeno gostava de lhe impor sacrifícios e humilhações, nunca de todo conseguia, mas não conseguindo a contento sempre tentava, com as mais inesperadas atitudes, e de nada adiantava reclamar ao pai ou a mãe que não se envolviam com as brigas dos filhos, tantos que tinham, doze, uns já casados e outros ainda moleques, e sabia agora, ele tinha roubado suas economias, decidira vingar-se, haveria de encontrar um jeito, queria matá-lo, mas antes tinha que pensar onde ele poderia ter escondido o dinheiro, os dias passaram e com eles seguiram os pensamentos de nuvens pesadas que não chovem, mormaço e agonia, nas tentativas não encontrara sucesso, procurou por todos os cantos em que o irmão poderia ter escondido o que roubara, o gado desobedecia-lhe, corria para cercá-los e levá-los ao curral, xingava os animais que não lhe obedeciam de imediato, uma das vacas com cria nova exigiu mais cuidado e paciência, acalmou-se um pouco olhando a fragilidade do bezerro, e ao chegar do curral, suado e sujo, em frente de casa no terreiro onde o pai fumava seu  cigarro de palha, o sol abaixava-se em melodias de tristezas no assobio de alguém por perto, viu o irmão, que voltava do lugarejo ali distante uns cinco quilômetros, todo sorridente e pedalando uma bicicleta novinha, exatamente aquela que ele tinha namorado no Armazém do seu Guilherme, comprei pai, economizei um dinheiro e comprei.

20 janeiro 2012

Levantou-se no escuro, a manhã ainda era uma espera de demora, sentia um cheiro no ar, mas não era cheiro do café que sua velha mãe fazia bem antes do sol nascer, levantou-se como se fosse dia de semana, como se fosse para a lida, a noite ainda se expandia sobre o telhado e sobre o milharal, levantou-se devagar para não acordar a mulher, o filho pequeno no berço, sentia um cheiro no ar, passou pela cozinha, a benção mãe, que cheiro é esse? a mãe escolhia feijão, o monte sobre a mesa já dividido pela metade ao lado de uma lamparina com chama fragil, Deus te abençõe, uma flor dessas que soltam no ar seus cheiros à noite, respondeu, foi andando pelo quintal, seguiu pela estradinha até o rio, arrancou a calção que usava, foi entrando aos poucos na água, era fria, mas gostava daquele frio, a noite tinha sido muito quente, de nada adiantara as janelas escancaradas, dormira pouco, ouvia os ruídos do mundo, sapos, ventos, pios de uns pássaros, tristezas e lamentos antigos que ainda reverberavam por aquelas bandas, achegou-se a uma parte mais funda do riacho, abaixou-se e deixou a água limpa, transparente mas coberta ainda pela película da noite na altura da boca, ficou ali, a água entrando e saindo da boca, e pensava, pensava, não queria, resistia o quanto podia, mas iria para a venda ainda pela manhã, não suportaria o domingo sem ir à venda, e se fosse beberia, beberia, beberia, voltaria trôpego para casa, cairia na estrada, como sempre, os filhos?, os filhos rapazes não mais iriam buscá-lo, nem a mulher, talvez a mãe fosse chorar ao seu lado sem forças para levantá-lo, talvez ficasse ali ao seu lado com um terço, um cantil com água, um velho e puído pedaço de pano na mão. Ah, mais um domingo.

11 janeiro 2012

Desânimo?, preguiça?,  vontade de ir-se embora, viver outra vida? não!, aquilo era a vida, a sua vida, também não sabia direito o que queria fazer, só tocar a velha concertina do tio já falecido, isso queria, que ficava no paiol dos arreios, mas agora, agora teria que voltar ao cafezal, abandonar a sombra da árvore, árvore tão boa, tão triste, tão quieta de tantos anos e coisas vistas, uma árvore vê muitas coisas, fica parada e olha todas as direções, tomou as coisas, a peneira, a água, teria que ir, havia muito café a apanhar, o sol escaldava as idéias, mas iria, e já ia, um atrás do outro, seus irmãos, roupas de trabalho todas manchadas e remendadas, pensava demais, pensava na concertina, em música, em ficar no cômodo das selas e arreios, naquela velha cadeira tocando, aprendera observando seu tio, maravilhoso tocador, mas bruto como um cavalo não amansado, jamais ousou pedir umas lições, tinha olho e ouvido para observar, que aprendesse por conta própria, queria ficar tocando, tocando e inventando música, umas letras de amor com português errado, sua professora falava bem português, não tinha mistura de italiano, viera de Vitória. O que faria? Iria para o cafezal, olhou para as mãos duras como couro mal curtido, lembrava enquanto seguia, na mistura de pensamentos, do amigo que fora caçar e matou-se. O que aconteceu ninguém soube, dizem que não queria servir o exército, corria a notícia que alguns rapazes da região que serviam em Vitória já tinham sido enviados para o Rio de Janeiro, já esperavam ordem para embarcar para a Itália, melhor rezar por ele uma ave-maria, mesmo que viesse a se perder na reza, na segunda parte, antes da hora da nossa morte, sempre se perdia quando rezava sozinho, mas devia rezar por ele, os urubus uns dias depois marcaram o local, foi encontrado, tinham sido amigos de escola, sentia pena dele, estava com tudo pronto para o casamento, também ninguém explicava como fora assim decidir casar, nem se sabia que ele estava namorando, ia casar bem novo, com 17. Pensou, à noite, mesmo cansado e com as mãos duras iria tocar, viriam alguns, se sentariam ali, sua mãe, uns irmãos, os mais novos, uns empregados, seu pai ficaria da varanda observando o mundo, e esqueceriam a vida.