25 fevereiro 2009

II

A folha amarela embelezada pelos dias
pressentia o ato puro.
Algo acontecia no seu vínculo com o galho.
A fonte da seiva negava-se.
Se as tardes não se repetissem,
ah, se as tardes não se repetissem...
Agora, temia que o vento chegasse
e lhe tocasse as partes mais sensíveis.
Temia que o arrepio fosse maior e...
Já vira tantas vezes a queda das desprendidas.

Enfim, o estalo. Levíssimo.
Como de um punhal que separa juntas.
Caía. Caía em balanço num sonho de pássaro,
ilusão de voo. Caía.
Um afogamento no ar.
Como será ser chão
pra quem abriu os olhos no alto?

24 fevereiro 2009

I

O pé ligeiramente virado
numa obrigação de amor
ou... de ruas,
num momento de descanso,
mostrava o sapato.
Era marcado pela expressão
não me siga, e
trazia manchas,
formas não perfeitas de beleza
sobre a camurça.
O solado de borracha,
de fadigas, de fragilidades
se ia liso, propício
a um escorregão.
Cair não seria merecimento.

18 fevereiro 2009

(continuando a série Um mundo numa cozinha.
Depois da série com números, como já falei,
optei por escrever outra, escancaradamente,
sobre sentimentos. Eis.)

IV

Corri alegre pela estrada afora
uns dois quilômetros ou mais
até à encruzilhada.
Haviam me dito que minha mãe
chegaria no ônibus das quatro.

Corri. Menino esperto. Corri.

Me deixaram ir. Todos me conheciam.
Esperei. Passou da hora, tanto. Quando o barulho
do velho motor soou me coloquei de pé.
A nuvem de poeira na estrada foi aumentando.
O ônibus vinha, vinha, minha alegria, mas,

estranho, não diminuía a velocidade para parar.

O velho ônibus passou roncando forte,
não parou, ninguém saltou.
Corri, corri de volta. Como corri!
Era forte. Não muito o sol. Meu Deus,
aquela hora de que eu sofria

ameaçava se antecipar. Corri desesperado.

Haveria de estar antes, na cozinha, perto do fogo.
Certas horas matam impiedosamente
e aquela que vinha era uma delas.
Escurecia cedo. Se ela me pegasse na estrada
um pouco antes do pôr do sol, um pouco depois,

naquele dia, eu morreria.
Não, eu não sabia

... que a vida era assim

17 fevereiro 2009

(vou seguindo com a série “Um mundo numa cozinha”.
É, este é o nome que escolhi. Depois da série com números,

optei por escrever escancaradamente sobre sentimentos.
Eis o pequeno menino sentindo suas coisas... numa cozinha).

III

Esgarçava-se o véu do dia,
fiapos leves voavam, pelos de flor,
paina seca no vento macio.
Como não sofrer? Tudo se ia.
Suavemente o dia, girassol

que pesa ao fim com sementes untuosas

alquebrado pelo fogo e pelo céu.
Recordar o pintinho que jubiloso eu ajudara
a romper a casca,
o bezerro com remelas nos olhos
que eu acariciara,

a corrida a levantar uma galáxia de gotas

no raso arenoso e espraiado do córrego
em nada ajudava. Eu sofria,
logo antes do por do sol, logo depois do por do sol.
Tudo se ia suave e impiedosamente.
Minha mãe nunca vinha.

Encolhido na soleira da porta

acabrunhava-me em meus frios.
Me deixavam quieto. Sabiam. Eu não.
Depois me colocava perto do fogão
e mexia nas brasas. Puxava uma ou outra para fora
e me entretinha com o vermelho que se empretecia.

Uma brasa anoitece.
Eu não sabia

...que a vida era assim.

15 fevereiro 2009

(sigo com a nova série de poemetos.
O cenário é uma grande cozinha
onde uma criança recolhe seus sentimentos)

II

Ficávamos naquela penumbra santa
em que o altar ardia ainda mais
no retângulo da grande cozinha.
Me emudecia sem querer, olhava, olhava.
Nada. O mundo lá fora turvo, estranho.

Dentro de mim também um mundo

me inundava de águas frias, ventos.
Minha mãe onde estaria?
Eu precisava descer, ir ao córrego, tomar banho.
Mas não ia. Esperava primeiro o escuro vencer de vez
a hora triste, aquele círculo entre a felicidade e a saudade.

Era disso que eu sofria. Sofria de uma dor

que não doía em nenhuma outra hora do sol e da noite.
Eu era feliz em todas elas: nas que amanheciam,
nas que corriam passando pelo meio-dia. Pássaro
junto aos pássaros, vivo, livre; cavalo à tarde
solto em meio aos pastos, doce, agreste,

saudável; garapa no balde, transbordamento

de vida totalmente presente. Nem passado, nem futuro.
A mãe não existia. A não ser quando o dia chegava ao fim,
naquela hora. Era dela que eu sofria. O tempo ali,
logo antes do pôr do sol, logo depois do pôr do sol,
me adoecia de sua falta. Insuportável. Insuportável.

Onde ela estaria? Mãe! O dia se ia...
eu não sabia

...que a vida era assim.

14 fevereiro 2009

(depois da série Conta as estrelas... me proponho a escrever outra,
bem diferente. O personagem é uma criança, num mundo longe,
dentro de algumas tardes. Quem quiser acompanhar a série,
seja benvindo.)

I

Eu não percebia,
as horas passavam.
A vida era infindável,
mas algo me agoniava.
Eu sofria e não entendia.

Um inferno se abria ali

numa greta qualquer entre o coração e a garganta
quando vinha um certo ar no sol poente
que desandava o cantar dos galos pelo fim da tarde.
Que agonia. Era um canto igual ao da madrugada,
mas diferente. Doía. Eu tinha tão poucos anos

e caía num poço de mistérios

e desprazer. Restava suportar a dor
e esperar que tudo ficasse bem escuro, logo.
Ou noite ou dia.
Era disso que eu sofria,
eu sofria das horas de um dia. Sem saber.

Logo antes do pôr do sol, logo depois do pôr do sol,

no calor da cozinha,
olhando as montanhas que se cobriam de escuridão,
me entristecia todo, inteiro,
das mãos aos fundos dos nervos.
Era disso que eu sofria,

de certas horas de um dia. Sem saber.

O dia se ia...
e eu... não sabia...

que a vida era assim.

12 fevereiro 2009

VII
(encerrando a série Conta as estrelas, se puderes)

Estive lendo Bertrand Russel
aqui na rede. Seus argumentos
para não acreditar em Deus.
Uma palestra de 1927.
Me dei conta das minhas contas,
poemas contas, estrelas tantas,
quando vi o número 1927, e...
decidi parar.
Vou parar de escrever poemas contas.
Pelo menos por enquanto. Rsrsrs.
Vou cantar, vou inventar uma melodia gótica
para a frase do Gênesis,
numera stellas, si potes.

"NUMERA STELLAS, SI POTES"
(cantaste comigo?)

Há mais estrelas, bem mais...

Mas... ficou, todavia, uma pergunta:
o número de estrelas será impar
ou será par?

Já li, não sei onde, que Virgílio teria dito
que os números ímpares agradam aos deuses.

08 fevereiro 2009

VI

257489 1386691, 10 98381
2u7489 s386691, 1i 983e1
2u74r9 1te6691, si p83e1
nu74r9 1tel691, si po38s
2umer9 stel66a1, si 9otes
Numera stel6as, si potes
Numera stellas, si potes

(...)

193574 3´73580 2133569
193574 3´73580 21m3569
193574 3´73580 21me569
193s74 3´73580 2ume569
193si4 3´735b0 num35a9
19es7a 3´7e58o numer69
P93sia 3´ve58o numer69
1oesia 3´verb0 numer6l
Poesia é verbo numeral

(...?)

0367 8´ 6 2676436?
0367 8´ 6 26764r6?
0367 8´ 6 26764ra?
0367 8´ 6 p676vr6?
0u6l 8´ 6 pal64ra?
Qu6l 8´ 6 palav3a?
Qual é a palavra?

(...!)

9 7936 4914 254 0308
9 n936 49d4 254 030r
9 n93e 49de s54 a30r
9 7ome p9de s5r a3ar
O nome pode ser amar

(

07 fevereiro 2009

V

Saber dizer o nome que falta
talvez seja o que se busca
quando se calcula poemas.
Tudo foi nomeado, mas nem tudo.
Andar distraidamente é um jeito
de encontrar o que falta, penso.
O nome pode estar ali na raiz que ignora
o cimento da calçada em frente ao bar.
Me sinto barro, atraído pelas raízes. Mas,
não sei que prazer me faz olhar galáxias
fotografadas pelo telescópio Hubble.
Chove na madrugada, na minha mesa
faço contas sem nenhuma inspiração.
Na mesa ao lado Eva se diverte.
Linda, nem me olha, nem me vê, ou finge.
Fuma sem saber fumar, e ri. Parece completa
como quem já calculou todos os números
e sabe dizer felicidade. O sol ainda demora,
um café ajudaria, anteciparia o fulgor
e a alegria da manhã. Bebi demais.
Me reparto entre olhar para Eva e os últimos cálculos.
Me prendo enfim em seus lábios.
Uva, 56335, cereja, 88912, pêssego.
Estaria ali o nome que falta?

03 fevereiro 2009

IV

À porta de alguma noite
refaço os olhos para as estrelas
e reconto minhas esperanças.
No umbral da casa do sol
levanto meu novo dia e somo
amor com amor, com mais amor,
com mais aqueles amores
que irei perder durante o dia.
Conta doida, eu sei.
Quantas maçãs!
Lindas maças verdes sobre a mesa
me contemplam e me revelam Adão
no meu olho, me divido homem,
me adiciono barro no espírito.
Perguntas e ansiedades escritas
nesses poemas, números
que adivinham tulipas ao relento,
poesias que não são minhas.

02 fevereiro 2009

III

Há uma fumaça na palavra,
que sai da pedra quente,
um incenso, um perfume.
Uma ilusão, outra realidade,
mais que uma, algumas, todas.
Ezra Pound aconselha
a ler os gregos e os latinos.
Sou latino e me tinjo de Américas.
Com as tintas que me marcam a alma
ra6isco 5inais.