27 dezembro 2010

Inesperado sol
Para Eurico, Mai, Paula

22


Tudo numa janela, a vida toda na janela, a vida num instante, passado e futuro longe, longe. O desejo estranho dando voltas sobre os pensamentos fazendo-os tortos, inclinados, pendentes. Talvez fosse bom que a polícia aparecesse logo e o levasse preso, levasse-o embora, mas estava longe e com certeza demoraria alguns dias até ser descoberto. A janela delimitava um limite, uma escolha, o amor e a dor e o luto e a culpa por um lado exigindo um ato  heroico, e a liberdade por outro, mesmo que uma liberdade de pequeno alcance, de voo curto, garantindo não sabia o quê, uma esperança talvez de um outro sol ao amanhecer que o tirasse do pesadelo. Pensou em ficar ali naquele velho cenário, uma velha siderúrgica, um porto esperando restauração. Decidia não fugir mais, mas também não se entregaria, ficaria ali enquanto desse, enquanto pudesse ser dois, este que ele carregava fugindo e aquele que os pobres dali recebiam como o restaurador das coisas, da vida, da siderúrgica, do cais. Quem sabe demoraria a polícia em chegar, e os recantos de ferrugem, os galpões pudessem lhe oferecer alguma sensação de gozar de um irmão ao lado.

07 novembro 2010

Inesperado sol

21


Eu matei, ele pensou, eu matei. Então de um salto pôs-se de pé, era hora, passara da hora de ir embora, dirigir sem estrada certa, escolher uma estrada na direção contrária, aquela que segue no rumo oposto à dor, no rumo oposto ao amor, no rumo oposto das lembranças, se existe essa estrada. Foi até à janela, pôs-se ali, as duas mãos espalmadas nas paredes laterais da janela, um cristo crucificado no vão da janela aberta, o vento vinha do mar, frio, a brisa carregada de maresia, a noite de nuvens de chuva ainda por chover batia-lhe no rosto com a escuridão, a noite tornava-o peça principal de uma cena sem espectadores. Eu matei, repetiu em pensamento, eu matei. Jamais pensara um destino assim com o qual curvava-se agora, por mais que se mantivesse ereto. O perfil da velha siderúrgica no escuro da noite emoldurava um mar e um porto escondidos pela escuridão. O que o mundo reconhecia era apenas o ruído indistinto do mar indiferente passando pela janela como se ele ali não fosse nada. Eu matei. O vão da janela parecia ainda maior.

06 novembro 2010

Inesperado sol

20


Sentia sono, um sono inesperado, um sono de sumir pelos universos do esquecimento. Procurou o quarto esquecendo a casa, era o suficiente o que olhara, os objetos que vira na sala, seguia agora outro rumo, quase por instinto, como se aquela casa fosse sua antes, ou como se fosse sua agora, não era nem uma coisa nem outra, era um espaço, um espaço cercado de asteroides informes. Tirou a roupa, caiu sobre a cama, poxou o lençol até o peito. Não dormia fácil em cama estranha, ajeitava-se e não encontrava a posição que o corpo queria, decidiu ficar imóvel, forçar o corpo a esquecer os movimentos, a luta era quase impossível, conseguiu por uns instantes, uns minutos, quantos não sabia, talvez um único, longo, longo com cara de dois ou três. Virou-se para o outro lado, os lados eram iguais com os olhos cerrados, apertados, a impedir os pensamentos, como se acreditasse que os pensamentos fossem fluxos pelos olhos, fluissem por eles em cascatas barulhetas, infindáveis. Determinou-se novamente a ficar imóvel, os pés queriam se esfregar um sobre o outro, concentrou-se nos pés, ordenando-lhes que silenciassem. De súbito veio-lhe a cena, fragmentos da cena, olhos abertos ou fechados agora não importava, a cena estava ali em close. A mãos trêmulas, suas mãos, mas firme, trêmulas nas fibras, nas vibrações das fibras dos músculos contraídos, firme. Tremia-lhe mais agora o corpo que as mãos naquela hora. Vibrava-lhe as mãos com o revolver como vibram os átomos do aço. O revólver apontado e impiedoso.

18 agosto 2010

Inesperado sol

19

Ao sair do banho voltou a pensar que o que vivia ali era só um descanço, permitia-se ser de novo aos olhos das pessoas um homem de bem, e aquele lugar exercia sobre ele um apelo de reconstrução. Vivia ali naquelas horas sonhos de que a vida pode ser como uma página lida de um livro jogado ao lado e nunca mais retomado. Um desejo de poeiras se precipitando sobre o que acontecera crescia em seus pensamentos, mais do que de poeiras, de aterros. Perdera a noção dos dias que se passaram desde o fato. Negava-se a encontrar um nome para o fato. Sentou-se na sala. A decoração e todos os móveis datavam dos anos sessenta. Nada fora mudado ali, mas tudo estava bem preservado e limpo. Sentia-se como se tivesse caído na infância, a casa da avó, dias felizes. Agora sua vida era curta. O passado não era mais a sua infância, a casa da avó, tudo tão distante. A vida curta se dava entre o fato inominável e aquele momento na casa do gerente. Voltar ao passado significava voltar àquele dia. Mas isto ele não queria. Voltou sua atenção para a sala, forçava as boas lembranças, mas a sala não era outra coisa senão aquela sala. Tentou retirar de cada objeto uma intimidade, mas eles se revelavam frios e estáticos, os abajures, a cristaleira, os aparadores, os cinzeiros, os quadros, os estofados. Mas as cortinas, as cortinas eram novas. Sim, descobrira uma coisa nova, as cortinas eram novas. Levantou-se.

10 agosto 2010

Inesperado sol

18

Do chuveiro caia bastante água, ainda bem, água fria, o dia vazava pela janela, se ia pelo ralo, escorria, água pelo corpo, o dia escorria da cabeça, por entre os cabelos, passando pelo rosto, pelo pescoço se perdendo longe pelo tronco, pelas pernas e pelos distantes pés, mais um dia, menos um dia. A casa do gerente estava limpa, não era nova com certeza, de umas quatro décadas atrás, mas estava limpa e arrumada numa combinação de austeridade e aconchego. Sentia-se uma visita que sonha com a hora de partir, mas gostava de estar ali, sozinho, protegido. Despedira a todos, os meninos que queriam ficar, as mulheres que logo disseram da comida na cozinha, caso ele quisesse. Fechou as portas, conferiu as janelas, desejou o banho. A reunião correra bem, dera as primeiras orientações e os homens se animaram. Não muitos, onze no total, marcados por aquela cor em que se temperam na pele os tons cinzas do sol, do alcool e da luta. Se sua situação ja era complicada, assumir aquele posto e aquela casa poderia adicionar multiplicando muitas outras complicações. A noite entrava pela janela do banheiro, caia na água cobrindo-o com um manto escorregadio, sentiu frio, arrepiou-se, um manto de morte cobrindo o corpo desnudo, se morre várias vezes e de vários modos. Fechou imediatamente o chuveiro e enrolou-se na toalha, ficou parado, completamente imóvel, sentindo a água calar-se na toalha, lembrou-se de casa, da esposa. Meu Deus, meu Deus, repetiu embalando-se apavorado, jogou a toalha ao chão, voltou ao chuveiro e deixou-se debaixo da água fria.

30 julho 2010

Inesperado sol

17


Olhou para eles com uma decisão inesperada, por ele mesmo inesperada, convocou-os para uma reunião daí a meia hora. Que reunissem quem eles pudessem avisar. Enquanto se dirigia aos que estavam no bar com palavras resolutas se perguntava a razão de se contrariar em seus intentos, já que o que queria e o que devia fazer era fugir dali, mas com aquelas palavras convocatórias sentia que se ia deixando prender. Sim, parecia ser isso mesmo, se ia deixando prender. Sentou-se, bem como se senta um gerente numa mesa, sentou-se ao lado da janela, o olhar altivo ao modo de dizer a todos ali presentes que ele sabia muito bem o que fazia e o que iria fazer. Depois voltou-se para a janela de onde podia avistar uma parte do porto e deixou o olhar cair inseguro sobre a paisagem, senão inseguro, vago e abatido decerto. Ali balançavam ancorados uns barcos que se prestavam a compor a tristeza daquele lugar com traçados de beleza. Não era o gerente, mas ia aceitando aquele velho porto e siderúrgica abandonada. O que seria fácil, virar as costas e se ir embora como fizera com tantos outros lugares por onde passara, não era fácil. Ele era tido por outro, e ser tido por outro dava-lhe a sensação de deparar-se ao andar ao lado do riacho em meio a brumas, muitas brumas em dia de inverno e chuvoso, com um inesperado sol . Já sabia o que iria dizer aos homens que viessem para a reunião, tudo lhe vinha fácil à mente.

27 julho 2010

Inesperado sol

16


Eram homens sem trabalho que estavam ali, não gostava da palavra desempregados, eram trabalhadores, homens num bar, falando o que o mundo não queria ouvir, estas coisas do cotidiano, da vida. Eram os que restavam dos antigos operários daquele complexo, siderúrgica, estaleiro, porto. Viviam. Viviam provavelmente de pequenos ganhos, pequenos trabalhos, do mais conversavam ali no bar lições menores, aquelas que não interessavam a ninguém. Dirigiam-se a ele, nada era preciso dizer além do que diziam no olhar, e diziam senhor gerente. Sim senhor gerente, aqui estamos, e esperamos ver o que o senhor irá fazer. Ao mesmo tempo havia ali em suas retinas, no brilho e no fosco do fundo de cada olhar uma árvore que se desfolhava em aceitação de que nada, nada mudaria.

17 julho 2010

Inesperado sol

15

Não era somente um rosto que se configurava em arranjos na sua mente ao vê-la. Refugiava-se naquele rosto, e via, sim, uma velha e grande mangueira espraiada sobre um rio de fundo arenoso e águas claras. A sombra poderosa se instalava sobre o rio e suas margens, atravessava-o para o outro lado e as raízes da árvore criavam desenhos escuros no chão, riscos de letras incompreensíveis, palavras sem sons. Ele pediu um copo d'água, ela surpreendeu-se, água?, e trouxe-lhe. A palavra água com a interrogação reforçou a visão do fluir manso do riacho sobre as areias rasas embaixo da mangueira. Paravam ali, mas logo corriam rápido depois da pequena praia num estreitamento do rio pelo barranco de um lado e uma face de pedra do outro. Aquela sombra, a velha fábrica em que todos pensavam ser ele o novo gerente, a água que se comprazia num remanso e que logo encontrava as corredeiras diziam-lhe confusas orientações. Então começou a perceber o bar e os vários olhares sobre ele, o recinto, grande, talvez um antigo restaurante, abrindo-se em claridade, revelava seus vários elementos, coisas e pessoas.

12 julho 2010

Inesperado sol

14

Um sorriso triste, mas um sorriso, apresentou aquela mulher junto ao balcão. Havia algo de passado, de grande, de maior pelo menos, naquele bar e naquela mulher. Os anos, não muito mais que trinta tinham lhe ressecado os cabelos, a pele do rosto rosada não escondia o fulgor do sol que nele se tinha infiltrado por anos em exposições de vermelhas horas, agora definindo algumas manchas. O olhar expressava simpatia, resignação talvez, e era pela resignação que a simpatia se manifestava naquele sorriso e que ele logo acolheu. O que sentiu por ela, sentiu por intuir que nela corria um destino assim, destes dos quais não se pode mais desviar, tal qual o seu. Qual o dela ele não sabia, o laço entre os dois apenas existia, sem significados e soluções. Se era assim podia se aproximar dela sem medo. E era. Foi o que fez, se aproximou, forjando um sorriso também. Nas primeiras palavras, nos cumprimentos formais, no senhor gerente que ela obdiente lhe dirigiu logo enxergou através daquele rosto uma dúvida, de que maneira se relacionaria com as mulheres, o que surgiria quando seu olhar de cobiça se debruçasse sobre uma delas, revelaria alguma coisa, perguntava-se.

09 julho 2010

Inesperado sol

13

Não havia motivo para rir, mas ria, inclinou-se sobre o volante e endureceu-se nas feições para impedir o riso e o que o riso encobria. Carregava algo na pele, por dentro dela, nos limites entre o que faz rir e faz chorar. Era como roupa suja, aquela que ele atirava longe ao chegar em casa, apressado, desejoso de uma ducha. Mas a roupa se lhe tinha grudado na alma. Talvez um dia visse alvejada a amarela história que carregava consigo agora. Os meninos o rodearam, chamavam-no de senhor gerente o tempo todo, seus ouvidos não se contrariavam mais, ou não tanto, com aquela forma de tratamento. Dobrou-se sobre o motor e um tempo depois, como os meninos, ele vibrava de alegria ao vê-lo roncar. Sentiu sede e os meninos falaram do bar na pequena vila operária ali perto. Pularam sobre a carroceria antes que ele assumisse o volante, não havia como mandá-los descer, e nem sentia vontade de fazer isto, distraia-se com eles, e rumaram todos para o bar.

06 julho 2010

Inesperado sol


12

Dentre os dias que faltavam estava a quarta-feira. Faltava o pano da quarta. A quarta-feira do ocorrido não faltaria mais, ficaria grudada nos pensamentos até quando este se perdesse nos pântanos da memória envelhecida, ai, quem sabe, a memória que desliga e liga em outros jeitos uma mesma linha, construa sem dor, sem peso na verdade, o que aconteceu naquele dia. Meu Deus, foi numa quarta-feira. Agora teria que levar até o inferno aquela quarta-feira. Os degraus da escada não lhe bastaram, desceu-os saltando-os a ponto de cair e se quebrar todo no chão imundo do primeiro andar, abriu a porta com a decisão tomada sem saber em que momento ela teria se formado, ela se dava agora, em cada passo apressado, os olhos não viam nada, o rumo era definido como o rumo de um réptil que segue veloz. Ao dar partida na caminhonete o motor roncou, roncou e não funcionou. Derramou-se por dentro de um depósito bem cheio um liquido amarelo de frio que lhe desceu pelos entremeios da barriga. Desligava e ligava o motor e ele não funcionava.

28 maio 2010

Inesperado sol
11

Eles chegaram com o almoço, com olhares de querer entrar nos velhos escritórios. Tomou ali na porta mesmo o que eles trouxeram, quatro pequenas vasilhas embrulhadas em panos de prato e colocou-as sobre os primeiros degraus da escada, despediu-os com um obrigado forçado na gentileza e fechou a porta sem que eles se arredassem dali. Queriam uma intimidade que ele até gostaria de lhes oferecer, mas não devia. A porta fechada fez com que esquecesse os meninos, subiu as escadas e tornou a descer para pegar o restante do almoço. Abriu um dos pacotes de pano, ali estava bordado terça-feira, um prato, a vasilha sobre ele, destas de plástico, continha costeletas de porco envoltas em maravilhoso perfume, abriu a outra, quinta-feira, trazia uma salada de pequenos tomates sobre algumas folhas de alface, a outra, segunda, uma boa porção de feijão e arroz, uma colher de farinha ao lado, na última, domingo, um pedaço de cuscuz branco com muito coco por cima e um belo filete de leite condensado em espiral, por fora, no mesmo embrulho, uma lata de coca-cola e os talheres. A visão da comida, o cheiro, a brancura dos panos de prato lhe acordaram para a fome. Comeu avidamente. Lembrou-se dela, não queria mas lembrou, o amor no cotidiano é belo depois, à distância. A lembrança encerrou o almoço, contraiu o rosto e levantou-se, tomou um pano de prato, o domingo, e levou-o às narinas, fechou os olhos, queria absorver algo daquelas fibras de algodão, uma alma talvez, a casa, o amor, a vida do dia a dia, o calor de uma cozinha, o tempo presente que agora não lhe pertencia mais. O passado o perseguia, e o futuro não amanhecia senão entre brumas.

19 maio 2010

Inesperado sol

10

Senhor gerente, gritavam batento na porta num misto de obrigação e diversão, mas ele não ouvia os meninos. Senhor gerente, senhor gerente, continuaram entrecortando o coro monótodo com risos festivos, até que se deu conta de que aquele senhor gerente era com ele, era por ele que os meninos chamavam. Senhor gerente, disse pra si mesmo em voz baixa aceitando o chamado, indo até à janela. Lá estavam à porta os quatro meninos, olhou-os de cima. Perguntavam, a mando, se ele queria almoçar, e se desejava que o almoço fosse servido na casa do gerente. Já estão limpando a casa para o senhor, disseram. Traga o almoço aqui mesmo, respondeu de imediato, depois vejo estas outras coisas. Admirou-se da presteza em responder como se não houvesse nenhuma dúvida e como se aquela fosse sempre sua voz. Senhor gerente, repetiu, se afastando da janela, sentando-se defronte à mesa. Ali estava do outro lado a cadeira do gerente, vazia, e ele disse com um tom irônico e raivoso, senhor gerente, o que o senhor me diz?

Não havia o que dizer, muito menos para si mesmo, no entanto esperava um pensamento que pudesse ser anunciador de uma outra saída que não fosse só fugir. Decidiu esperar o tal almoço e depois tomar o carro e seguir sabe-se lá por quais estradas.

18 maio 2010

Inesperado sol
9

O teto não lhe sorria, pois que sorriso não teria mais, aquele, lembrou a pressa, era necessário ter pressa, sempre, sem descanço, quis ter pressa, mas não tinha, tinha que tirar do alto os olhos, olhar para o chão das estradas, pisar fundo no acelerador. Forçou a pressa, ela não veio, os olhos percorriam as linhas do forro, as teias, as lâmpadas. A cor, que cor seria aquela?, não era branco, mas amarelo também não, algo ali entre um e outro, o olhar corria lento de um ponto para o outro enquanto a pressa se corroia em disperdícios de idas e fugas. Era bom estar ali, calado, sozinho, escondido... até quando? Forçava-se em levantar da cadeira, em descer daquela sala, pegar a caminhonete e ir embora, mas aquela sala agora tinha algo dele, a limpeza que fizera, podia ficar umas horas a mais, dormir ali quem sabe e bem de madrugada se ir.

Voltou-se do teto, levantou-se, foi para o outro lado da mesa e tomou o lugar do chefe, quem seria? de quem seria aquela cadeira quando dela se ordenou o último mando? perguntou-se. Confundiam-no com o novo gerente, por agora era bom sentir-se assim, quem ele não era. Da cadeira do gerente, ou do dono, ou do presidente se avistava a porta, ela estava aberta, esquecera assim limpando a sala, o vento corria da janela pela porta afora, arrepiou-se, correu para fechá-la, trancou-se e voltou para a cadeira. Tinha que se renovar nos planos, disse para si mesmo, manter a cabeça no lugar, pensar cada passo, mas já estava bem longe, podia relaxar um pouco, dar-se um descanso, permitiu-se. Fechou os olhos e ouviu os meninos lá fora, já não brincavam mais de avião.

17 maio 2010

Inesperado sol
8

O ardor do trabalho lhe devolveu por um tempo um sossego, um leve e bom sossego que se confundia com o cansaço. Subira e descera várias vezes aquela escada com o balde d'água, arranjara vassoura. A sala agora estava limpa, bem limpa, havia ainda coisas a fazer, mas estava limpa. Os vidros da janela ainda esperariam com suas nuvens de poeira. Ajeitou uma cadeira adiante da mesa e outra atrás, quis sentar, titubeou entre um lado e outro, escolheu sentar adiante, como se fosse um cliente. Sentado, através da poeira nos vidros da janela, viu um pedaço de mundo que não lhe dizia nada, que lhe era muito semelhante para dizer algo que ele já não o soubesse, o lado de fora, velhos barcos, um ancoradouro vazio, pássaros voando sobre eles, nuvens se sobrepondo ao brilho do céu que se abrira pela manhã. O que ele sabia era o que ele tinha feito, soterrado estava. Levantou-se e foi para janela, abriu-a, voltou para a mesma cadeira, procurou a posição que ocupava antes de abrir a janela, inquietou-se pelo desconforto de não ter mais exatamente o mesmo ângulo de visão.

Olhou a mesa limpa, os objetos dispostos sobre a superfície marcada por pequenos vincos e manchas, palavras sobre palavras, números sobre números, somas incompletas, rabiscos e tensões, nada viu. Recolocou-os em posições diferentes, nada viu. Incomodava-o, de repente, a hora do dia, agoniava-se com o leve vento com cheiro de mar, o frio daquela espaçosa sala, queria que fosse nove horas da manhã, não era, olhou o relógio e passou as duas mãos sincronizadas sobre o cabelo, indo da testa para a nuca, entrelaçando-as ali, abriu os cotovelos ao modo de formar pequenas asas, a cabeça se jogou para trás e os olhos caíram no teto. Os fatos retornaram, as imagens se precipitaram de enxurrada naquela sala, apertou os olhos contraindo todo o rosto em expressão de angustia mais que dor, dor mais que medo, medo mais que idéias do que fazer.

15 maio 2010

Inesperado sol
7

Ficou ali no carro por uns momentos, desses em que a vida parece ser apenas a recordação de dias. As recordações, no entanto, se esvaem como nuvens que mudam de forma e cedem lugar aos desafios de viver. Retomou a chave, foi em direção ao prédio, abriu a segunda porta. Não quis olhar o ambiente, mesas, máquinas de escrever, armários, janelas fechadas. Subiu logo à sala no andar superior, uma outra porta e tudo estava bem disposto, quase arrumado, mas tudo coberto de poeira e de um ar que mesclava mofo e sonhos. Desceu e procurou uma copa, uma cozinha, um banheiro. Entrou numa cozinha, abriu a torneira, a água jorrou forte e enferrujada e logo clareou. Tomou um balde ali num ármario depois de abrir e fechar muitas portas em cômodo escuro anexo à cozinha. A água continuava jorrando em barulhos de vidas insurgentes. Não sabia exatamente o que aqueles gestos criavam em relação ao futuro, mas executava-os como se os propósitos fossem claros, lógicos, com intenções produtoras de muitos sentidos para um dia.

Mas não, absolutamente não, não sabia senão o que procurava, um pedaço de pano. Ali estava, ao chão, resseco e cinza. Tomou-o, serviria, mergulhou-o no balde e ele reviveu-se entre soltar a cor e avolumar-se como um universo em expansão. Esfregou, esfregou o pano, trocou a água, esfregou e torceu o caldo escuro e suculendo dos dias presos nele. A maciez voltou, o cor se amenizou de suas asperezas cinzas e fadigas. Havia desejos de amarelos, de vermelhos e vinhos, mas apesar dos torções, das trocas de água, dos esfregões, o domínio do peso, do chão, do tempo persistia em suas fibras. Encheu o balde uma outra vez, mergulhou-o totamente na água. Lembrou-se da segunda porta, largou o balde aos pés da escada e trancou a porta, sentiu-se melhor.

Subiu como se já fosse conhecedor de cada degrau daquela escada em muitas subidas e descidas, entrou na sala e olhou para a mesa. Grande, de madeira escura, com boas e várias gavetas de cada lado do folgado vão para a cadeira. Cuidadosamente retirou o que estava sobre ela, papéis, livros, canetas, pedras coloridas, duas verdes, uma ocre, que serviam de peso para segurar papéis, um cavalo de bronze. Mergulhou as mãos no balde e sentiu a água. Não a tinha sentido ainda, sentia agora, era a água que vinha daquela velha caixa com certeza, água fresca, confortável como luva que lhe vinha ao relógio. Olhou as horas, o metal reluziu en refração, não se importou com a hora, tomou o pano bem torcido e percorreu a superfície da mesa de um lado a outro na horizontal, fez caminhos retos, tortos e um brilho foi se acendendo na madeira, quase também em seus olhos.

21 abril 2010

Inesperado sol
6

Logo encontrou o prédio da administração. Estava ali, imponente ainda, mesmo que no desuso e na carência de reparos, sobre pequena elevação do terreno, bem defronte ao cais e a uma certa e boa distância da siderúrgica. Um prédio de dois andares em estilo eclético que parecia datar das primeiras décadas do século vinte. No frontal, acima da porta principal ladeada por quatro janelas de cada lado, o mesmo se repetindo no andar superior, também se via aquele nome que se derretia no alto da caixa d'água.

Apareceram assim como que do nada quatro meninos capitaneados por um branquelo e magro de uns onze anos que foi logo perguntando se ele iria reativar a fábrica. Olhando para as chaves estava, olhando para as chaves continuou sem lhes dar atenção. Tentava descobrir e acertar de primeira a que abriria aquela grande porta de entrada. A porta está aberta, senhor, disse o tal menino, a segunda é que está trancada, e bem trancada, e o menino disse isso empurrando a banda direita que foi cedendo e girando sobre suas dobradiças sem ranger.

Como por uma simples vontade de contrariar à gentileza e esperteza do menino, mas não era isso que lhe definia as atitudes naquele momento, voltou à caminhonete alvorada 62 e ordenou com uma certa rispidez que os meninos o deixassem trabalhar. Saindo correndo com os braços abertos brincavam de aeroplanos voando, os quatro aviões tinham uma das asas se formando em desequilíbrio com o resto do corpo pois levavam goiaba em uma das mãos, ou outra fruta mordida, não reparou bem. Nos roncos guturais e suaves daqueles pequenos aviões ele ouviu um indistinto mas apertado sentimento, uma música, stardust talvez, ou o som descompassado que se deu no vão entre a porta que o menino abriu e o filho que não chegou a ter com ela. Amava-a. Desacreditava do amor, amor, que amor é esse? amava-a. Embora o meio-dia não tivesse marcado o rosto de ninguém por ali, aquela música fazia o sol ir adiantado, bem adiantado em tardes de olhares nômades.

17 abril 2010

Inesperado sol

5

Olhou para o molho de chaves jogado sobre a poltrona no lado do carona. Elas pesavam-se imóveis de muitas portas, de voltas nas ferrugens escondidas, nos escuros internos de gavetas, nos seus segredos. Um aro de arame em umas partes expondo um brilho pela fricção suportava-as espalhadas ao redor como raios de um sol esquecido de seus eixos, parado. Olhou para as chaves. Não havia nenhum vínculo com elas, teria de descobri-las no uso, nas portas, nas importâncias. Apenas encontrava nelas densidades de coisas paradas, coisas que prendem sentimentos em impossíveis felicidades. Umas traziam marcas de usos, outras marcavam acúmulos e cores de esquecimentos.

Jogou a marcha para o ponto morto, tomou o molho na mão enquanto seus olhos se iam das chaves para outras paragens. O modo com que fez isso parecia traduzir uma intenção de salvação, assim, a dar às chaves a vida do movimento e do tilintar. Salvava-as pelo movimento, fazia-as respirar pelo tilintar, ligava-as em família no barulho. Ficou ali brincando com as chaves, todo o corpo parado, apenas a mão direita movimentava as chaves no molho, e os olhos, os olhos embaçavam-se escravos na bifurcação da estrada daquele parque industrial abandonado.
O tilintar depois de um tempo impreciso, um tilintar mais agudo ou mais melancólico, ou uma onda arrebentando-se mais volumosa por ali ao fundo despertou-o. Não queria acordar, não queria o tempo todo pensar aqueles pensamentos, o franzir da testa, o leve movimento de negação da cabeça quase imperceptivel delineavam a presença da contrariedade, a despeito da firmeza da postura ao volante. Impunha-se, todavia, a necessidade de voltar às escolhas, às decisões. Largou o molho sobre a poltrona, abriu rápido o porta-luvas e se acalmou. Ali estava a arma enrolada em macio, velho, manchado feltro esverdeado.

O carro roncava parado em ponto morto, precisava de algum dinheiro, aquelas chaves poderiam, por um jogo de sorte, de um modo ou de outro, facilitar a viagem, se bem que já estava bem longe e deveria se permitir uma noite tranquila de sono. Engrenou a primeira marcha, e os pés, na embreagem e no acelerador, mantinham a caminhonete entre voltar daquele engano e seguir para as velhas instalações. Seguiu na direção da siderúrgica.

15 abril 2010

Inesperado sol

4

Às escondidas, por vias que não se sabe quais, de repente, uma serpente de imagens recordosas se insidiou por sua mente, sem veneno, sem susto, quase como amiga. Era uma serpente vencedora, vencedora pela simples presença nele, delimitando território, garantindo domínios. Se a manhã se levantava inquestionável sobre as decadências daquele lugar, as recordações se sobrepunham em tentativas orgulhosas sobre as culpas, a culpa. Foi o que foi, ele pensou, se por suas mãos ou não, o destino tecera seu manto com o fio do carretel dos acontecimentos.

O fato de ter parado a caminhonete ali deflagrava e revelava talvez um segundo movimento causado pelas recordações, à despeito do seu querer e de sua bem sucedida fuga, o movimento da sua mente queria a afirmação de uma verdade. Mesmo que incerto das palavras havia entre o olhar disto e daquilo naquele mundo abandonado uma insistência que forçava a lingua para a voz, e mesmo que por contenção na garganta ele dizia que a amava. Sim, era amor. Todos falam de amor e aquilo era amor, aquilo teria sido a sua experiencia de amor. Ele a tinha amado, dizer que não era amor seria como negar que o sol se infiltrava naquele lugar de abandono.

A realidade da manhã, a convicção que afirmava como amor o que sentia por ela, não se manifestava todavia na clareza em relação ao dia da semana. Seria terça ou quarta-feira? Tinha mais dúvida aqui. Estacionara numa bifurcação; uma via se ia para a pequena siderúrgica e o estaleiro, a outra ia para um tipo de vila operária

12 abril 2010

Inesperado sol
3

Jogou fora a guimba do cigarro usando o polegar e o dedo médio como alavanca, e a pequena brasa rodopiou no ar extinguindo-se em invisíveis resquíscios de satisfação. O gesto era mais um gesto sem foco do que a indiferença de jogar para o ar um resto de cigarro, num arremessar impiedoso, para que se danasse a brasa fumegante ali na pequena viagem, se bem que também era isso. Caía em curva ascendende e depois descendente, mas caía sempre, inexoralvelmente, a guimba. Caía a vagueza do ver a velha caixad'água, o seu derredor, ao fundo os velhos galpões, os guindastes marrons de ferrugem, caía sem origem e sem destino, um fosco e viscoso brilho de uma canção ao longe em recordação inesperada da qual não se é capaz de distinguir as palavras. O gesto e o olhar que o acompanhava tinha aquele peso de queda que tanto pode ser o peso de um amor quanto de várias tristezas. O amor é sempre único, as tristezas se acumulam, sacudiu a cabeça espantando pequenos mosquitos.

Logo e assim seguindo, dirigindo vagarosamente, avistou por detrás de umas carcaças de caminhões, pastanto em abundantes trechos de capim entre os metais enferrujados, uma branca e doce vaca de pêlo brilhoso, com seu bezerro. A vaca comia aqui e acolá sem ter o que procurar dada a abastância de comida. O bezerro fungava-lhe os úberes e dava-lhes umas estocadas com o focinho para depois saciar-se do calor e do sabor materno. A vaca se entretinha entre abaixar a cabeça e reerguê-la para mastigar o que tinha colhido com seus dentes e com sua lingua áspera e saliventa. Correu-lhe pela pele, no intercurso do encontro, do que se depreende dos encontros, do que um encontro anuncia, um sentimento de retornar e pisar fundo o acelerador, e com alegria arremessar o molho de chaves na direção da guarita e seguir pela cidade afora, vazar seus limites, ir embora, dando prosseguimento, sem atalhos, ao seu destino.

10 abril 2010

Inesperado sol
2

Ao atravessar o portão e logo mais adiante deu-se com um pequeno riacho que cortava a estrada arenosa. A água era limpa, limpa, o chão de areia da estrada não a maculava com nenhuma sombra de lama, mesmo quando as rodas da caminhonete lhe cortaram o fluxo. Uma curiosidade fez com que ele parasse ali, a abservação do ambiente, do lugar era o ganho que lhe permitia alguma posição de segurança. Olhou e viu que a água corria de uma caixa, velha e grande caixa d'água, com grandes nomes corroídos que não interessava ler, do alto vinha o filete, musgos e plantas ali se fixaram, e o vento frio que no alto gemia mais forte roubava-lhe com cruel constância leves gotas para deixá-las respingar por ali, tornando a vegetação das proximidades mais verde e viçosa.

Algo lhe ocorria na mente, não conseguia precisar o quê. Era uma espécie de saudade, uma força de raiva, um desejo fustigante das partes espirituais do estômago quando se vai e se vai e se vai distante ainda da realização de um querer. Resolveu sair do carro, puxou do bolso a cartela de cigarro, repetiu mecanicamente aqueles gestos de por o cigarro na boca, procurar num bolso, no outro, no casaco o isqueiro, e então vieram na sequência os primeiros desenhos de fumaça, pensamentos esvoaçantes, afônicos. Uma satisfação momentãnea parecia dar-lhe ali um amparo de viver outra vez naquele dia.

Recostado no paralama verde azualado ele desaguou-se em minutos perdidos, quantos não sabia. Era bom, respirava e fumava, respirava e olhava o rio que nascia da caixa d'água. De repente um pássaro vermelho, que pássaro era aquele?, veio junto com um olhar desprevenido, o vermelho vinha e ele não foi capaz de precisar de onde ele vinha. Vinha da caixa d'água, da vegetação ao redor, do topo da caixa. Acreditou por final, deu-se este entendimento de que o pássaro vermelho e a caixa d'água formavam um abraço, haveria por ali em algum recanto um lugar de ninho. O pássaro seria uma mãe com filhotes, não era muito grande, mas esperto sem ser agressivo, ele deu uma revoada sobre o espaço onde o carro tinha parado e se foi confabulando com o mundo na direção que seguia a estrada.

09 abril 2010

Inesperado sol (título provisório)

1
O dia tinha amanhecido com um ar de outros tempos, tempos bons, tinha algo daqueles em que se vive na infância, tempos em que os dias não são caminhos de imprevistos e rumos, são presentes, atualidades, nada mais, era abril, e se amanhecia mesmo, se o dia recomeçava, a manhã tinha uma feição de verão, a despeito de uma linha, cicatriz de vento frio soprando. Ao sair da camionete chevrolet alvorada 62 um além do prazer de esticar-se ao sol veio-lhe ao corpo todo, o resvalo do frio, arrepiou-se num entremeio de prazer e cansaço, tinha dirigido durante a noite toda, e agora, no dourado do sol nascente resolvera parar ali, nem sabia direito onde estava, rodara pela cidade desde a madrugada alta, lá pelas duas, quando cruzou seus limites, chegando. O braço do mar ali formava uma pequena baia de águas fundas onde se abrigava um abandonado porto, avizinhado de velhos galpões do que teria sido uma pequena siderúrgica, um estaleiro de pequenas embarcações, barcos de pesca talvez, se bem que ali também se degradavam embarcações maiores, o cenário lhe ofereceu um olhar do qual não se distinguia sentimentos, senão aqueles que ele sondava em si mesmo sem saber ao certo o que se aliançava entre o que ele trazia e o que ele encontrava. Ao se aproximar do portão fechado com correntes e cadeados um segurança gritou-lhe do alto de uma guarita que ele pensou também estivesse abandonada, e ao se aproximar do portão, do alambrado, não era a intenção de entrar que lhe movia os passos, mas a simples vontade de ver mais de perto aquele lugar, e o mar por ali, distraia-se na verdade. O senhor demorou, disse o segurança, aguardávamos pelo senhor deste a semana passada. Antes que ele tivesse palavras para dizer o que teria de dizer, já o outro abria-lhe o portão, e abria a mostrar que ele devia entrar com o carro. Logo veio-lhe o rapaz com um farto molho de chaves, dando-lhe boas vindas e desejando bom trabalho.

06 abril 2010

O último porto do rio ( ÚLTIMO CAPÍTULO)
56

Do outro lado, em frente à igreja, em morro ainda mais alto, o cemitério. Com as calêndulas nas mãos, olhei para o altar da santa, fiz um pequeno gesto de reverência com o inclinar da cabeça e saí, sem me persignar. Fui sozinha, o marido voltou para a venda, subi o morro com o ramalhete nas mãos. Há momentos em que não se pensa, ou o que se pensa é o passo que se dá, o lugar certo de pisar, o lugar certo a se olhar na paisagem nova. O que se pensa pode ser também o sentimento de um fluxo de coisas esquecidas, lembranças e desejos, o que se quis e o que se viveu. O que se pensa pode ser ainda o não querer pensar no amanhã. O momento ali me bastava, se me explico.

Não sei te dizer se era belo ou não o dia, o sol de verão no céu lavado e arejado garantia uma melancolia de meio-dia. Tu já sentiste a melancolia do meio-dia, um caminho entre ir e se deixar levar? entendes? O grupo que tinha acompanhado o enterro descia, entre eles uma pequena criança com um olhar de mundo grande em rosto apertado de sustos, uma menina, levada ao colo por um senhor negro.

Um distinto senhor, bem vestido, de pele clara, o único dentre os negros que participaram do funeral, estava ainda de pé olhando a cova coberta de uma terra avermelhada e úmida. Não havia nele sofrimento, apenas luto. Tu não entendes? confesso, também não, estabeleço entendimentos ao modo de inventar sentidos para o mundo que se abre em meus titubeios. Agora vejo que um luto sem sofrimento é um luto que joga o olhar bem longe, um olhar que despreza o perto, um olhar que atravessa o que está posto e enxerga lá. Tu agora entendes, eu sei, teu próprio olhar não nega, tantas vezes eu percebi que enquanto tramavas os arranjos de flores teu olhar enxergava lá. Eu digo, e não me contestarás, tu avistavas lá por e através do que fazias. Enxergar assim dói mais, e ao invés de dar existência ao sofrimento, salta-se para o luto.

Ele dobrou-se e acariciou o nome na cruz, Maria júlia. Despedia-se com um último gesto, mas ainda não era o último. Então ele arrancou os sapatos e as meias. Ó florista, um seu pé era negro. E ficou ali plantado com os pés na terra, depois, com a quietude rompida por pequenos ruídos em campinas anoitecidas à beira de estrada vazia ele olhou-me e se foi, com os sapatos pendurados nos dedos da mão direita. Fiquei ali. Cantavam ao redor do cemitério, nos matos e árvores, estes pássaros que se alvoroçam e calam ao meio-dia.

Tentei tirar do ramalhete umas calêndulas para deixar no entrecruzamento da madeira com o nome, outras eu colocaria aos pé da cruz, outras eu deixaria cair assim, ao sabor da queda, sobre a terra. Não consegui. O que fizeste, ó florista, com os arranjos, com as dobras dos arames, de que maneiras amarrastes todas as diferentes flores num único feixe? Espetei meu dedo, que sangrou, e não consegui arrancar do arranjo uma calêndula sequer. Então desci, e fui até a margem do rio e naquela terra densa e úmida plantei o buquê de calêndulas, depois voltei-me para a barcaça, abri a sobrinha e desci minha mão marcada de sangue nas águas do rio.

FIM

04 abril 2010

O último porto do rio (penúltimo capítulo)
55

Estava ali no altar uma Imaculada Conceição, linda como nunca vi, talvez exatamente assim eu enxergasse a santa porque meu olhar era solto de outros pesos naquele lugar. As curvas do seu manto esvoaçantes faziam dobras de coisas distantes, eventos e acontecimentos adormecidos, mas presentes, como um corpo morto mas ali, marcando um território no silêncio da capela, onde o eco de qualquer ruído era a resposta, a irrupção de dias já idos e cores envelhecidas em novos pedidos à minha alma. Perco-me em dizer-te, refaço-me em escoras mau erguidas nestas palavras, desculpa-me. O marido percebeu meu olhar cativo daquela imagem, mas não sabia ele que o que me detinha na escultura era a curva do manto que contornava o braço direito da santa, do ombro até a base de suas mãos postas sobre o peito. O tecido contorcido e leve ao mesmo tempo, num dourado triste e gasto de muitos olhares, dobrando-se sobre o azul fosco da face externa do manto, o vermelho escuro da túnica por baixo, ó florista, definiram para mim um lampejo de vida, qual não sei dizer além do que digo.

Ali não rezei, não se reza a uma curva, eu sei, meu Deus, o que falo? Lembrei naquele momento das tuas calêndulas, o belo ramalhete, e disse em voz alta, As calêndulas! O marido perguntou-me, Que calêndulas? As flores que trago na barcaça, respondi. Sim, sim, disse-me, aquelas flores que mandas fazer para as covas dos indigentes? Sim, respondi, mas estas quando encomendei tinha a senhora tedesca na intenção do presente, escolhi com cuidado o tipo de flor e como deveria ser o ramalhete, vistoso e abundante de tons de amarelo, nenhuma parcimônia na ilminação do buquê. Depois desisti da idéia e trouxe as flores comigo. Queres oferecê-las à santa? vou buscá-las, ele disse descendo o morro da capela.
Enquanto ele foi até a barcaça voltei-me para a porta da igreja e ali fiquei entre a sombra e o sol naquela linha tão bem definida, mas imprecisa todavia, a cada segundo movendo-se sem se mover. O rio espraiava-se manso, cumplice da curva, mostrava-se ali mais feliz, menos triste talvez seja o melhor a dizer. Ó florista, se tuas mãos hábeis elaborando singulares formas e arranjos me ajudavam a dizer coisas que normalmente ficariam sem nome, o rio depois da curva do manto da santa, o Santa Maria cúmplice da curva no deixar as coisas irem, o rio vagarosamente desbarrancando a curva em carinhos de destruição, o rio, ó florista, o rio ali me diluiu como a um torrão de barranco. Haverás de me supor estranha, na verdade o que sei dizer é que a curva paria-me em número impar. Dói ainda o descompasso de nascer na imparidade, coisa que vai me refazendo contudo, pressinto.

02 abril 2010

O último porto do rio
54

Antes de chegarmos ao Último Porto do Rio ancoramos num pequeno cais conhecido como Cais da Curva dos Pretos. Era um pequeno ancoradouro, um muro de pedras construído na margem esquerda de quem sobe. De frente para o cais um largo que ia dar num sobrado com três portas no andar de baixo onde funcionava um comércio, ao lado e na mesma linha mais duas casas e um armazém já bem velho. Do lado direito de quem olha do cais, numa elevação, uma capela. As paredes, brancas num dia distante, se tingiam de estranhas figuras cinzas que escorriam pelas suas faces de mulher abandonada de amores.

Da capela, enquanto nossa barcaça encostava no ancoradouro, saiu um enterro composto de um pequeno número de pessoas. Uma tristeza só, não somente pelo luto daqueles que seguiam com o caixão, mas pela composição da capela, do vilarejo, do sol escaldante com o enterro. Meu marido queria fazer ali uma parada rápida, esticar as pernas, ir à venda, estas coisas. Eu decidí uma demora maior. Logo quis ir à capela, agora vazia e triste. Subi as escadas de pedra e do alto, antes de entrar, voltei meu olhar para o cais. Ó florista, o olhar é pássaro faminto, de azas disformes, pássaro que busca incessante o alimento de ver, mas ao ver o que sacia, de maior fome se faz outro revoo.

Do alto olhei o rio e a curva, o pequeno cais, as barcaças, o enterro que se ia do outro lado subindo o morro do cemitério, e aquele lugar me iluminou os olhos de uma luz fria, extinguidora de consolos. Tu sabes como é isto? Explico, é quando todos os teus sentidos de viver, os que construíste de pedaços dos teus dias, se desmoranam todos, e tudo fica vazio. Estremeceu-me por dentro um relâmpago de entendimento do que dizia aquele sujeito nas cartas que me chegavam às mãos. Sim, a desolação daquela cena, o que era externo e próximo, o fora que casava com meus interiores, o sol escaldante calando a todos e a tudo esvaziava-me do que me criava sentidos de viver, e ainda, enquanto escrevo, me recupero deste esvaziamento. O lugarejo tornou-se uma ilha de silêncios e os rumores que se ouviam eram sons que vinham de fora, um fora longe, um grito distante de uma mãe chamando um filho, um canto de pássaro quase inaudível, um mugido de vaca, um latido de cão. Fiquei ali à porta da igreja olhando aquele mundo. A demora foi tanta que o marido veio ao meu encontro. Com ele entrei na capela.

27 março 2010

O último porto do rio
53

O que tens a dizer, ó florista, do amor? Podes dizer-me da vida, a vida, um balanço de árvore que se avista de uma janela de um segundo pavimento em tarde madorrenta. Escrevo-te ao amanhecer, mas parece-me tarde. As cortinas em leves movimentos de um resto de vento que traz o cheiro das folhas verdes fazem pelo tecido fino o laço entre um acontecimento e outro, a ruptura, o limite. Escrevo-te do Rio de Janeiro, pois minha passagem apressada de despedida pela tua oficina não me permitiu as palavras que eu te prometi sobre a ida até o Último Porto do Rio. Ainda tenho dificuldades de dizer o que escrevo, pois nem sei se importa dizer, se haverá em meus mares, ou nos seus, nas aves, andorinhas e gaivotas que me cercam, nos barcos que me atravessam, um novo movimento de rumo. Mas, sigamos. Por mais que a vida seja assim, assim vamos, vivendo-a, o adeus se dando na maior parte do tempo oculto na ilusão e no estranho prazer de viver, anseio de continuar a existir, apesar.
Lembro-me agora, enquanto me deixo ser o que são estas palavras que escrevo, tua singela e discreta presença no cais. Do vapor te avistei e o teu gesto, de mãos vazias de qualquer flor, acenava o mistério de um sonho, isto que une e separa os dias uns dos outros, o que separa o sol da montanha no momento que os dois se tocam, o que leva pelas palavras o poeta para longe dos mundos que ele alcançou. Doi-me agora mais o adeus, vejo a cidade pequena encostada no morro, um presépio que não se desmontou, em fevereiro, tudo se indo para o universo infinito, a claridade da manhã impedindo o disfarce das nuvens nos olhos, ciao, vidiamoci presto, queria dizer às pequenas coisas vividas ali naquela pequena capital de província, o penedo vistoso, ainda mais calado em sua posição de guardião da ilha, tu voltando para a oficina, para outras flores. Os imigrantes logo chegarão, viverão outros olhares sobre a mesma ilha, como primeiro passo de uma vida completamente nova, motivadora de todos os esforços, fonte de força para suportar os sacrifícios a que ela, a vida nova, se submete e sobre os quais se levanta. Fico a imaginar, disse para o marido, o que sentirão os imigrantes ao entrarem na baia em direção ao porto. Ele não responde, silencioso também, distante, somente abraça-me. Penso-me como um deles, um imigrante, tudo para trás, tudo pela frente. Mas não sou, invejo-os.
Começo a dizer-te. Levantei-me com o sol, mas grossas nuvens de chuva se avizinham cinzas da janela que abri. Começo a dizer-te, já com os olhos distantes de tuas habilidosas mãos, o que foi minha viagem pelo Santa Maria. Quisera agora ver as tuas mãos juntando amarelos em pétalas grandes de girassóis a modificar para melhor o que digo. Forço a memória para ver um girassol bem amarelo, luminoso, em tuas mãos, não me recordo. Fizeste girassóis? eu nunca presenciei a feitura de um. Surgem-me as hortências, aceito-as. O arranjo das palavras agora se vai pelo azul plácido e pela manhã que já se recolhe em respingos de chuva . Assim como as pelejas de tuas mãos a vida segue por aqui. Logo perderemos o contato, as cartas cessarão, talvez mesmo esta primeira seja a última. Agora relato a viagem pelo Santa Maria, desejo relatar. Ensaio o que vou dizer, usino-me por dentro em procuras de sentidos, faço alguns, incipientes.

Cuida de ti, ó florista, sinto vontade de dizer-te, cuida de ti nas flores que confeccionas, mas não digo, também não mudo de folha de papel, não rasuro o que se tornou letra. Mas, sigamos. Conto-te um capítulo, apenas um, e único. Do mais importa as habilidades que tens de transformar o vazio dos arames, tecidos e papéis em um sentido, bom quem sabe, frágil sempre, de seguir, todavia. As calêndulas, lembras as calêndulas?, pois bem, o capítulo que te relato é somente o capítulo das calêndulas.

20 março 2010

O último porto do rio

52

As noites, passadas, todas, se somam em peso e caem sobre o quarto, de repente. O espaço entre o que falávamos silenciosamente e o momento do cair das noites, parece, não existiu. Maria Júlia afrouxa o aperto que mantinha com suas duas mãos sobre a minha direita pousada sobre o seu peito quando olha para a menina para chamá-la para si, sem chamar. Uma nuvem fria de orvalho escorre entre as palmas, separando-as por tênue limite. A menina corre, escorada na porta todavia, em ruas de abandono, com um leve mexer de corpo entre ir até à mãe e ficar onde está, presa. Uma mão estendida nos seus olhos aponta para a mãe como a dizer a um adulto, sem palavras, acuada, onde está a tesoura que ela tomou como brinquedo e largou onde ninguém conseguia achar. Zune em minha mente um som agudo, o de um transporte súbito para um lugar, um campo, numa manhã de fim de outono, manhã iluminada mas fria, onde numa peleja sem sentido vence o vento a disputa por cada centímetro da pele que se arrepia. Giro, giro e avisto as montanhas ao derredor, as árvores, as colinas ondulantes, as pastagens e os pássaros, muitos pássaros, alvoroçados bandos de espécies diferentes, todos voando e atualizando suas comunicações sobre o frio próximo do inverno. Não há casas, nem estradas, nem rios, apenas prados verdes, cercas velhas, árvores perdidas aqui e acolá. Alguém aparece e toma a menina que parecia uma estátua barroca em madeira sem pintura presa ao portal. Leva-a. Outra pessoa toma a mão de Maria Júlia da minha e planta nela, na umidade em que cultivamos pequenos e suaves momentos, a haste que não brotará, de uma flor de fogo, uma vela. A pessoa aperta aquela haste infértil nas mãos de Maria Júlia como se acreditasse, por costume de quem lida com lavoura, fixar futuras raízes ali nos vales e linhas daquelas mãos doces e ainda flexíveis, macias, cheias.

09 março 2010

O último porto do rio
51

Ou morro, eu sei, ou sou enlouquecido ou me ensurdeço assim como agora, retirando do mundo seus ruídos e os rumores encachoeirados de dentro de mim. Vejo tudo por uns momentos sem sentir, depois voltam as insossas agonias, mas na surdez imprevisível alevanto-me como folha seca em ares de ingenuidade e uma boba alegria, uma fria alegria de viver. Nessas horas a vontade que vem é a vontade de andar, andar, andar todas as estradas possíveis. O trágico é chegar, e chegar quando se quer andar, o acaso e o incontrolável, montanhas impassíveis sobrepondo-se às planícies que vivo. Chegamos à casa. Maria Júlia já fora informada da minha chegada e me esperava, bem vestida, cabelos arrumados e uma força de sorriso nos olhos brilhantes e abatidos. Talvez agora ela também apenas me enxergue naquela espécie de silêncio, surdez, mundo calado, a dor renegada e aceita. Nos falamos sem nos ouvir, falamos um para o outro coisas bem diferentes do que dizemos em voz alta, se falamos Estou bem e você?, falamos no duplo daquela frase, pelas costas das palavras, pela traíção delas, nos entendendo, Não estou bem e sei que você também não está. Se falamos, Nós vamos descer o rio logo logo, vamos juntos, como combinado, realizar o seu desejo, a força da dor que carregamos em nossos destinos diz O tempo passou como um rio, nossa barcaça está no cais incapaz de navegar. Ficamos a olhar um para o outro, capazes de conversas que ninguém ouvia, um condoendo-se do outro, até que nossos olhos mornos e tristes caem sobre uma pequena menina assustada, olhos arregalados, que também parecia participar da conversa silenciosa. Ela olha para Maria Júlia olhares de mil palavras, para mim olhares de mais mil, além das perguntas que lhe ocorrem sobre o estranho homem, eu, ao lado da cama da mãe. Na claridade suave do quarto seus inocentes e já marcados olhos me surpreendem e me machucam uma dor que não dói. Ela fica parada entre a sala e o quarto, o corpo torcido pela timidez mais para a sala, encostado no portal, o olhar totalmente esticado para o quarto, para Maria Júlia, aquele mesmo olhar de anzol, uns quatro anos. Os três falamos de amor, amor sem sentido, amor trágico, amor em linhas de uma mesma rede, peixes presos, amor que se debate ao ser puxado para fora do rio.

08 março 2010

O último porto do rio
50

Lá vem o Onofre, diz José Bento, custei a ouvir, a casa perdida na desolação da pequena colônia abandonada que ficou para trás ainda me prendia a atenção e esfriava-a de um vento sul fora de época, dava-me um frio de sentir o destino como um inimigo que tendo vencido a peleja oferece a mão, Lá vem o Onofre apressado, repete, e então ouço, mas sem muita atenção. Senhor, continua, há algo estranho com o Onofre, este homem é sempre lento, parado igual maré morta, e o que o faz ter tanta pressa agora é o que vou saber. Então olho para o negro que vinha, e o seu cavalo manifestava, como o dono, o descostume da pressa. Mas vinha num bom trote, mesmo descompassado, vinha, e logo nos alcançou. Vou buscar umas ervas nas bandas da cachoeira do Zé Valente, respondeu às perguntas de José Bento, Maria Júlia não está nada bem, piorou nos últimos dias, parece impaludismo, mas é coisa mais grave, todos sabem. Ele falou assim sem saber de mim, sem saber que suas palavras me alcançavam como pedras, toras de madeira desatadas das amarras, tropa em trilhas estreitas e lamacentas escorregando pelas ribanceiras. Maria Júlia já vem doente de um tempo, mas agora as coisas se complicaram, ela anda com aquelas febres e calafrios de impaludimo, está muito pálida e fraca, continua o Onofre. Um silêncio rasga o céu e cobre todas as bocas, todos os pios de pássaros, todos os borbulhos de água, fico surdo ou o mundo perde os seus ruídos. Logo, na surdez, vejo o Onofre se despedindo, justicando sua presssa e se indo na direção contrária à nossa. Tento recordar aquele dia no baile, o último, o pedido que ela me fez, mas nenhum elemento novo me dá a recordação. Sobrepõe-se sobre a recordação do baile, daquela nossa conversa, sobre o seu pedido, a imagem de Maria Júlia no cais, me olhando, me olhando, me olhando com aquele seu olhar de anzol, sua sombrinha parando-se de seus giros... Meu Deus! e, agora, na recordação, por detrás dela, ao contrário daquela manhã, ao contrário da luz do dia, o que vejo é uma lua, cheia, solene, se erguendo num céu aberto. Começo a correr, Calma seu João Francisco, melhor é manter o passo acelerado que correr, diz José Bento. Seguimos. Se não leio em mim os mapas dos entendimentos das sinas, mapas encobertos pela neblina do frio destino que como sombra me acompanha, inimigo solidário, algo me concede, na ausência dos ruídos e das vozes, a percepção do rosto de José Bento. Seu rosto vai se tecendo de umas linhas novas, uma linha de aflição se encontra com outra, que se cruza com outra, e se emaranham todas no entorno dos olhos que se lançam dezenas de metros adiante, apertados e fixos no rumo da estrada. Observo-o de resvalo, num momento e noutro, e enquanto olho me indago, sem os tais mapas dos entendimentos de viver, sobre o amor que uma pessoa pode receber, ser tão querida, e, mesmo assim, não encontrar o sol levante, ter uma vida de se alongar em noites, ser capaz de chegar até à madrugada, pertinho da aurora, mas, mas nunca amanhecer em sol. Por quê?

06 março 2010

O último porto do rio
49

Chegamos ao cais dos pretos e logo seguimos a pé por uns quatro quilômetros, caminhamos sem muita conversa, ou quase nehuma, a marcha acelerada, o ar carregando a densidade do sol forte sobre a terra molhada, as plantas respirando e exalando seus cheiros. O agreste e o doce de um pequeno canavial de um lado, de um cafesal do outro, me empurram para onde não sei, nenhuma imagem ou sentimento se abre em clareiras na memória, somente uma sensação, uma sensação de que um tempo bom que sustentou minha vida, um dia, muitos dias, resvala agora na minha pele, no veio do suor que escorre sob a camisa, mas não lhe dou crédito. Ao mesmo tempo em que o dia aberto me alivia, me torna leve, do mesmo modo, um segundo depois, me condensa um tijolo áspero que não se encaixa em nenhum dos meus vãos. Se contente vou, tão perto de me encontrar com Maria Júlia, e este é o contentamento que me faz feliz, ligeiramente feliz, vou também incerto do que farei depois, como serão os dias seguintes, que vida vou levar adiante. A estrada agora forma uma pequena reta de solo arenoso e branco, lavado, a areia brilha, a mata ao lado, um trecho curto de mata margeia o lado esquerdo, ali dentro da mata corre um córrego, um veio, águas limpinhas seguindo por baixo das raízes, muitas folhas apodrecendo em seu miúdo leito, desejo entrar nas mata para encontrar o arroio, abrir as folhas e enxergar um pequeno poço, olhar a água limpa, brilhante, correndo vagarosa. José Bento segue ao meu lado, nem imagina a intenção que tenho de entrar na mata, encontrar a água, molhar o rosto, batizar-me de vontades novas. O trecho de mata acaba, do lado direito me segue uma cerca de arame farpado enferrujado, estacas de braúna inclinadas, inconsolável pastagem tomada pelo mato, nenhum cavalo a pastar por ali, nenhuma vaca, uma vaca e um bezerro fariam ali a paisagem do paraíso, um consolo para os olhos, e o sol, o sol sorridente sobre as guachumbas força-as ao excremento do odor de cansaço, de fastio. Cheiro minhas mãos e os braços, não, não cheiro a guachumba não. Surge uma pequena casa abandonada, à direita, sobre pequena colina, olhando para a estrada. Quem ali viveu? Uma jaqueira no descampado, outra ali, um sonho de frutas abandonado, uma mangueira e algumas laranjeiras secas, estendem-se em silêncios, doces que não vingaram, brincadeiras e risos varridos, não sonhei com meus pais, nunca sonho com eles, a jaqueira à noite me aparece, apenas ela, e sua sombra da tarde. As janelas da casa desamparada são de uma banda só, abertas, caídas de uma de suas dobradiças, mas ainda penduradas, abertas, a esperar um olhar de dentro, dos seus cômodos vazios para o mundo, talvez há morcegos morando ali, mas sou eu que passo e olho, de fora, suas sombras de dor ali por dentro. As vozes dos pequenos pássaros se mostram nos arredores da casa, falam-me de seus nascimentos e suas mortes, como morre um passarinho?, conversam suas insanidades destituídas de dor e de amor e me dizem, morremos sem dor, morremos sem peso, morremos assim, como um passarinho, e riem, pássaros riem e choram, mas não sofrem. Tiro o chapéu, desliso a mão úmida da testa até à nuca, um meu Deus disfarçado, e recoloco o chapéu.

05 março 2010

O último porto do rio
48

Se o tempo continuar firme ainda amanhã subiremos o Santa Maria. Será nossa viagem de despedidas desta província como te falei. Agora invadem-me sensações de não ir, sensações de rir, rir muito, de ir-me embora sem subir o rio, me bastaria talvez escrever, e sei, poderia enviar a carta ao Porto do Rio apenas com o nome do destinatário, mesmo sem endereço, e chegaria com certeza ao autor daquelas cartas. Mas, não. Desfazem-se também as letras dos desejos de escrever ao tal João Francisco. É como se eu compreendesse que o que se sucede em fatos e acontecimentos definiu o que se deu, a leitura e o sonho. Agora sei, o que farei pelo rio acima será apenas um sobrevoo de pássaro que se despede de um prado, de um campo, de um sítio, rodando, rodando, sem tirar ainda do vento o rumo do proximo e último voo. Não me entenda aqui último voo como sinal de morte iminente, não, tudo na vida é último, o que se tem é somente a despedida, a despedida atualizada, permanente, inferno de prazer e castigo em que se diz adeus.

Tu me sabes muito bem, atravessei uns tempos de melodias e suaves arranjos com estas cartas que me chegaram, umas palavras que somei às minhas em tons de amor e coisas perdidas amalgamadas umas às outras por um leve toque de esperança. Mas agora vou, vou subir o rio já não pelas cartas, mas pelo que criei e que sei, se situa no intervalo entre o que vejo e o que já escorreu por entre os dedos.

Tuas flores, as calêndulas, tão perfeitas como nunca fizeste igual, não mais darei à senhora tedesca, minha vizinha, já não é hora de enlaçar fitas, mas antes é tarde e urge desatar e deixá-las soltas. Isto também se dá conosco florista. Esquecer-me-á tu quando a história do incêndio na casa do fogueteiro ontem à noite também for notícia esquecida e a porta que te serve nesta pequena oficina trouxer da rua outros indícios, pobres e insignificantes, de que a vida segue. As flores, tuas calêndulas, levarei comigo, bem embrulhadas e farei delas um ponto de encontro com alguém, com uma criança talvez, e dir-lhe-ei, quem sabe, com um doce e opaco sorriso, leve-as à sua mãe.

01 março 2010

O último porto do rio
47

As águas chuvosas e amareladas do Santa Maria contrastam com o dia amanhecido, com a limpidez de incertezas no ar e com o azul desesperador no céu. As águas, o ar, o azul testemunham, indiferentes, o descer de uma pequena canoa a nos levar enfim rio abaixo na direção do cais da curva dos pretos. Nem sei mais ao certo o que me move, desço porque desço, assim parece, Maria Júlia como as horas, os dias, as pessoas, escapa. O que segue, se segue, se há um caminho, é uma estrada de fuga, um desencontro irremediável. Uma dança breve, viver, talvez. Relembro. O prazer inebriante da perda dos pesos nos sobrevoos da dança me sugere uma nova e pequena ilusão. Solte-se João Francisco, solte-se, dizia Maria Júlia. A lembrança me dá a sensação do ar, mas me pesa agora por dentro da cabeça o mesmo desconforto dos passos que não voavam de início com os de Maria Júlia, mesmo que eu já tivesse dançado, e muito, com muitas outras mulheres. Tremia-me o pé direito e eu contrariava a música. Mas o alecrim, a sálvia, o funcho do seus olhos, o hibisco na pele de suas mãos logo nos fizeram o mais leve casal do salão. José Bento, entre um assovio e outro nunca completando umas das suas toadas, interrompe e recomeça a melodia amorosa e triste, fazendo nos intervalos pequenos comentários sobre o vento. Como não lhe dou importância ele repete, Este vento bom de sol é um vento de aviso, Que aviso?, pergunto afinal, pois que era isso mesmo que ele queria ouvir para me dar a resposta planejada. Um aviso bom, o dia será bom. Todo aquele rodeio com assovios e comentários sobre um bom presságio era na verdade uma tentativa de me animar, ele não pressentia nada no vento assim como eu também não, nem no sol, nem no bando de cambuciras que chilreavam pelos galhos. O que tínhamos pela frente era mais um dia, igual a tantos, um dia que se fazia bonito no ar e no céu, mas se ia feio no rio com as margens cheias de entulhos, galhos secos agarrados nas margens, bananeiras tombadas, águas lamacentas, redemoinhos misteriosos de todos os afogados do Santa Maria. Aviso, nenhum aviso, nada de bom se antecipa, nada digo, deixo que ele determine a rapidez da descida da canoa, remo no seu compasso, o rio vai, um rio lamacento. Penso, um animal morto boiando inchado e agarrado nos entulhos na margem do rio, um porco, um cachorro, vejo, penso nas cartas que escrevi, mas agora sinto que nenhuma pena riscaria uma palavra pela minha mão, uma única que fosse.

23 fevereiro 2010

O último porto do rio
46

A volta para casa agora parece escorrer por um século longe, bem longe daqueles dias estendidos como roupa no varal logo ali no passado, ali onde a vida se ia estagnada, de casa para o cais, do armazém para casa. Alguns poucos dias se passaram desde o momento em que desci ao porto para ir me encontrar com Maria Júlia e atender seu pedido. Mas o tempo, corda atada aos tornozelos, se vai em friezas por vastidões do universo e nos entrepontos dos passos que dou. Não sei se o vinho ou o ar lavado pela chuva faz tudo ainda mais distante, impassível, os fatos e a vida dissociados, o pé se alevanta atrás e se apoia adiante nas pedras do calçamento da rua, o que foi adiante fica para trás, o que se baseou no chão volta ao ar, um avanço e um recuo na zona morta entre o agrado e o desprazer de mais um dia. Desconcentro-me do pensamento nos passos quando José Bento se despede, tomando o rumo de sua casa. Sigo pela rua abandonada e apenas o que quero é uma cama, o estirar-me sem anseios senão o do corpo que quer destituir a alma de seu comando deixando-a às tontas, desamparada, e o corpo fará da sua prostração o escárnio da agonia da alma em se ver sem o poder da vigília permanente, o farol apagado e ela vagante, perdida sobre o mar dos meus anos, perdida de seus rumos nos meus passos, inventando sonhos para não se desprender de mim. Dou-me conta de que estou sem as chaves de casa, a maleta ficou no armazém, ou no gabinete do juiz, Onde meu Deus? Volto ou arrombo a porta, uma janela? Paro. Olho para um lado e para o outro, alguém, alguma coisa poderia me tirar da indecisão, Maria Júlia em outros tempos ao meu lado diria vamos voltar, qual o problema? Aquele sorriso, borboletas amarelas e abelhas sobre a florada do cafezal em manhãs de sol quente depois de chuva mansa, me ajudaria. Volto sozinho ao armazém, sem resignação, sem revolta, alguém, insone, que olha por pequena janela e avista uma nesga de céu com uma lua esvaziando-se e traída pelas nuvens a deixá-la ora escondida, ora à mostra, despida. À porta do armazém sou invadido pelos olhos do menino, o filho do pescador, o feliz, e sinto seu medo, a escuridão como um poço profundo, um túnel imenso ali por dentro onde se escondem os que só se mostram por leves toques na pele. Encontro a maleta, volto para casa e desejo, volto apressado para casa com um desejo, não entendo, sonhar com a jaqueira mansa e amiga, a velha jaqueira cuja sombra ao cair da tarde chega, agora sei, para acariciar as mãos de meu pai, o rosto de minha mãe. Não me importa mais a cama, apenas a jaqueira.

19 fevereiro 2010

O último porto do rio
45

Algo em mim diz Acende um lampião, tateia pelo escuro seguindo a memória de passos passados e encontre um lampião. Outro em mim, destituído de vontades, se alimenta de uma consoladora repetição, uma engastada forma de fixar o tempo na calmaria, no frio de viver longamente um instante congelado, Fica quieto, fica quieto, fica quieto. A dor é maior que a inércia, sempre, a dor sempre vence, até perder de vez. Então, um tempo depois, ainda não de todo derrotado, a dor me põe no escuro dando passos certos pelos espaços dentro do armazém como se os passos é que enxergassem o rumo, os olhos de nada servindo, alcanço um lampião, o mais próximo, a parecer a vida imaginada em ilusões de conduzir os acontecimentos, acendo a luz. José Bento fica à porta, figura delineada pelos clarões, aguardando-me a despeito de não saber o que eu ia fazer. Volto com uma garrafa, coloco-me no chão de cimento, recosto-me quase deitado com a cabeça nas sacas de café, sinto alguns grãos perdidos no chão me pressionando o corpo, ajeito-me, ele se aproxima e se recosta por ali também. As vozes da chuva persistem e recontam histórias que ouvimos sem querer, alunos de uma escola onde as lições impostas parecem tão além da compreensão que ouví-las mais uma vez não custa senão a atualização de um insípido hábito, alunos a lidar com as letras de palavras desfeitas para se montar, por tarefa ordinária, indócil idioma, outras palavras, estas que queimam os olhos e se negam à qualquer possibilidade de entendimentos. Tomamos do vinho no gargalo, um vinho sem cerimônia e por conseguinte derrotado em seus sabores, abandonado de qualquer emanação dos deuses da alegria, descendo peito abaixo sem desatar nós, umedecendo-os apenas, desdenhoso sumo, rio exonerado dos princípios da benfazeja embriaguez.

17 fevereiro 2010

O último porto do rio


44

Todas as águas dos céus, parceiras e antagonistas da sufocante noite de verão que se levanta indômeta sobre os despojos que arrasto nestes últimos dias, parecem querer se juntar às do Santa Maria num cair de zombaria, num correr vale abaixo em risos e murmurosos menosprezos aos meus malfadados intentos. Corremos para o armazém, nos encostamos à parede onde o beiral largo do telhado nos protege precariamente, abro a porta e entramos, mas ficamos ali, na entrada, olhando a chuva sobre o porto, ninguém nada fala, a intensidade da chuva, o barulho sobre o telhado exigem de cada um os pensamentos mais destituidos de palavras, aqueles que mesmo não sendo tristes ganham da tristeza o jeito, o feitio, aqueles que para pensá-los só se pensa na imobilidade do corpo, da voz, do olhar, ao modo de uma hipnose sofrida. O menino se aproxima do pai precavendo-se do medo, percebo, daquela imensidão escura por detrás, dentro do depósito, e somente ele com seu olho que vagueia entre o presente e o futuro curto e certo, o dia de amanhã, se divide entre olhar o porto lá fora e a escuridão dentro do armazém instantaneamente iluminado pelos clarões que atravessam os empoeirados vidros de umas poucas e altas janelas nas laterais da edificação. Nós outros ficamos presos ao rio, à chuva sobre o porto, presos ao que em nós, de um modo ou de outro, já é a consciência de que o rio permanecerá ali, mesmo e tristemente quando o porto se compor somente de umas pedras marcadas, sinais e ruínas de um tempo vencido, consciência de que o que flui é o que se evade inexoralvelmente de nós. Depois de um bom tempo olhando o porto dominado pela chuva agradeço a disponibilidade de José Bento e reconheço a total impossibilidade de descer o rio naquela noite como eu desejara, ele garante descer comigo no dia seguinte e me aconselha a descansar um pouco dizendo-me que minha aparência não era nada boa. O pai pescador e o filho se despedem, resolvem ir sem esperar o temporal passar e enfrentam a chuva para voltar para casa, o menino sai correndo atrás do pai como se fosse a mais feliz brincadeira de muito não desfrutada, a cena que se foi perdendo na chuva e na escuridão fixa os meus olhos naquela direção, o que o negro falava, por um certo tempo, não me chegava nas cavas do entendimento, de longe o som de uma voz amiga, a sua, me dava leve conforto a deixar-me seguir em pensamento, abandonado e livre, correndo também pela chuva afora. Deparo-me com crianças o tempo todo, a cidade tem muitas por todos os lados, mas agora elas me exigiam pensamentos, lembranças, cotas de pagamentos atrasados, dívidas impagáveis. E Maria Júlia? pergunto depois. Maria Júlia não está bem, ele diz. Eu sabia, digo, O que acontece com ela? A chuva ganha força, os relâmpagos se antecipam em respostas incompreensíveis e clarões desnorteadores.

13 fevereiro 2010

O último porto do rio
43

Decidi. Vou subir o Santa Maria. Pedi ao marido e ele concordou, vamos num passeio logo em alguns dias até o Último Porto como despedidas desta província, já que voltaremos ao Rio de Janeiro. Ele é áspero e impertinente, delicado não me é no dia a dia, mas tem em si por causa de nutrir uma nobreza da qual ele não é herdeiro, mas que pensa que tem, mais sou eu do que ele concebida nestes títulos que não me significam muita coisa, uma necessidade de me ser cortez, de me fazer certos agrados uma vez ou outra e ai me aproveito do que posso. De tudo o que falo pensas, sei que pensas florista, que minha vida é isto, un letto di rose, um lago de superfície plácida onde um barquinho vai sem balanços sob um sol poente iluminando de vermelho e amarelo em suaves tons o horizonte. O que de pior acontece nesse quadro que me pintas é que em não faltando nada, falta-me o arremate, e assim sendo, sem ilusão ou com uma dela bem ínfima dose destilada em minhas mãos pelas ditas cartas, tudo se perde em descontentes momentos que se há de viver de qualquer modo.

Não concordas, sei, ainda que não fales não concordo. Observo que vacilam tuas ágeis mãos em leves erros nas artes de compor estas belas flores que copias da natureza ou que inventas em teus recursos, revelando assim que segues ouvindo-me em discordâncias. Imagina, pensa, te explico, se, em tendo feito todo o trabalho da armação, o recorte das pétalas e o revestimento das hastes, tudo com finos tecidos, tendo necessidades de entregar tuas encomendas, um ramalhete de flores delicadas antes em teus sonhos confeccionado, sem amassos e dobras, te vem a faltar as lantejoulas, as linhas douradas, as delicadezas dos desfechos. Imagina estas privações impondo às tuas flores o caráter de um punhado de trapos amarrados. Pois bem, é isto que careço em viver, os arremates, e então tudo o mais se desfaz em permanentes e visíveis incompletudes, com as quais vou e com as quais me acostumei a um certo modo. De outro espeta-me o lençol, não me refresca o banho, as rezas não me consolam, e não me reconheço em vozes cantantes, as minhas, que há muito não consigo soltar entre aqui e ali, entre a sala e a cozinha, entre a porta e o cais em pequenas e bobas modinhas e cantigas.

Tirando estas vezes que aqui venho, quando pelo encanto com a presteza de tuas mãos e pela atenção dos teus ouvidos me ponho a falar, e além do que devo, prefiro o silêncio e o recolhimento. Não é religioso, nem cheio de Deus e de seus santos, mas é um outro o recolhimento, sinceramente digo, é aquele em que dedilho as contas das horas ocas, dos dias perdidos, da insensatez de querer felicidades e estas coisas que se seguem nesse rumo. É nas sombras do quarto e nos nublados da sala que sigo meus longos dias. Me acostumei, estas malditas cartas que começaram a aparecer debaixo da porta é que me tiraram do morno seguir da vida. Ir ao Último Porto do Rio, não me engano, será um passo que na ilusão darei, e nada mais que isso, um candeeiro aceso e colocado ao sol, um café que se passa só pelo perfume a dar à casa um ar de... sei lá, me entendes?
Um ganho secundário talvez advenha da viagem de barcaça pelo rio acima e rio abaixo, o recolhimento de uma paisagem, o desvelar de outros cenários. Olha que as paisagens nos alteram por um momento, ficamos outros, mais leves, num misto de alegrias e melancolias. Este caminho entre a alegria e a melancolia me pega quando me ponho à janela e vejo a baía, os navios, as barcaças. Amolecemo-nos, presta atenção quando olhamos um lugar bonito ou diferente, ganhamos uma certa coisa de água, de vento, que se dá talvez pelo desarranjo das seriedades que nos tornam opacos, rijos, repetitivos. Ah, o autor das cartas? sim, talvez conhecê-lo, talvez, questo mi piace, e aqui não nego a ilusão e a cor da ilusão e o gosto dela, e lá haverei de saber as nuances do sabor. Decerto, se me for possível, a ti com gosto relatarei no que me surtiu a viagem e o que nela vivi.

10 fevereiro 2010

O último porto do rio
42

Um cansaço é o que havia ali, um cansaço dele e um meu, ou um mesmo cansaço em duas pessoas. Se bem que o cansaço ficava ali como um aparador encostado à parede entre as janelas naquela sala. O espaço entre os móveis e entre nós era ocupado por curiosidades e interesses indistinguíveis, coisa a se pensar melhor para entender talvez. Vou agora pelas ruas em direção ao cais. Desejei ficar uns minutos a mais ali, isso confesso, um tempo de uma conversa sobre o que se passa por debaixo da vida ou acima dela, algo que fosse capaz de dar um leve mesmo que estremecido entendimento dos fatos, um juiz bem que seria capacitado para isso. A escuridão se levanta nos vãos entre as casas, nos dentros de algumas janelas não iluminadas pelo lampião da rua nem por uma vela de reza ali nos recantos, na torre imponente da igreja um perfil de fantasma sobre o morro. Ele queria falar-me e eu desejei que me perguntasse sobre a vida, sobre o que era viver aqui perdido nas melancolias da cidade apertada entre montanhas, no fim navegável do rio, perto do sumidouro. Ele fica ali na direção de quem vai para as futuras colônias dos imigrantes, o sumidouro assustador. Angustia-me tal recurso da natureza em conduzir suas águas por debaixo das pedras, o rio mergulha misterioso e só surge bem distante adiante, um mergulho em sono sobressaltado para acordar bem no meio da noite, longe do consolo da manhã, com o coração na garganta e o suor banhando o corpo todo, ah, o sumidouro, a noite, a incerteza, a imprevisibilidade de amanhecer de novo.
Vou para o cais procurando o negro José Bento Caetano, mas enquanto desço para o porto penso que ali, nessa hora, já não o encontrarei. O juiz exploraria da minha vida que conteúdos senão e nada além de pequenos segredos como os que se vão naquelas cartas, minha situação com Maria Júlia, o emprego na companhia fluvial de nevegação, e, sim, o passado. Meu passado. O passado não anuncio mas também não resguardo em selos de sigilo, isto sim reservo para o meu pé direito, o pé preto, escondo-o quanto posso, do mais perguntasse ele o que quisesse. Sento-me por um minuto sem saber o que fazer, vejo uma pequena canoa que poderia me ser útil e penso em descer o rio sozinho, mas desisto, o negro José Bento me será bom companheiro não só navegando rio abaixo na escuridão como na busca de Maria Júlia. Então ao acomodar meus olhos ao ambiente vejo vultos de quem pesca com varas de sobre as pedras, quase invisíveis na noite fechada, o pai e o filho, gente conhecida, pergunto se viram o José Bento, dizem que sim, peço ao menino para ir correndo chamá-lo, Diga que espero por ele aqui no cais com urgência, o moleque sai feliz correndo, era feliz pescando, era feliz no cumprimento do mandado, também fui assim, invejo a felicidade da prontidão do menino, ser feliz nestes casos é uma inexplicação. O senhor João Francisco não deveria descer o rio agora não, vai cair mais chuva, e das grossas diz o pescador, É urgente, o Bento conhece bem o rio, digo, Se eu fosse o senhor deixaria para ir amanhã, o rio está perigoso, alerta o pescador, Ainda mais à noite, continua. Sua voz se torna um canto insosso que se ouve sem ouvir, volto ao ocorrido com o juiz, seu interrogatóro abandonado pelas metades, ele tinha uma intenção que não levou a termo. Caíra em suas mãos algumas das cartas? para ele estaria levando as cartas o tal canoeiro com atitudes suspeitas? Entenderia com certeza o digníssimo juiz que o que digo são inconsistências em palavras de horas enfastiadas. Bem poderia ter ele conhecimento do ocorrido com meu pai, a acusação que lhe fizeram, a morte, a sociedade secreta. Logo percebo que os fatos dos últimos dias vão me desgastando os pensamentos. Passado um tempo chega o menino contente com a missão cumprida e um pouco depois o negro José Bento.

08 fevereiro 2010

O último porto do rio
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Ao juiz talvez eu devesse falar sobre o pedido que Maria Júlia me fez, falar da dívida que contraí com ela, dívida não honrada, pagamento carregado de pequenos mas fartos impecilhos ao seu cumprimento. Mas não, com certeza não seria isso matéria de conversação, estes pesadumes de consciência mantenho eu mesmo por cá em meus juízos, até quando uma água fria de banho na bica fria nos fundos da casa, nos inícios da mata, me der um precário refrigério. Acendem-se os lampiões da rua, a cidade tremeluz pela janela e o que vejo, vejo ao contrário, o avesso, o tremeluzir de pensamentos, umas ruas, muitas ruas que se cruzam na mente queimando-se de pequenas brasas espalhadas por sobre todo chão e no ar. Pode ser que o juiz com sua erudição, através do único e tênue elemento comum que nos une, o Último Porto, me alcance no colóquio um aperfeiçoamento de ser, de delinear nas entrelinhas do que se escreve na vida um desfastio. Veremos o que ele quer. Ele se assenta à mesa principal no gabinete e me aponta a cadeira que eu deveria tomar. Torna-se impossível não cair na lembrança de ver meu pai reunido com aqueles homens ao redor da mesa, balanço levemente a cabeça e devo ter deixado vazar uma expressão de desacordo, dois João Franciscos em pelejas pelo posse do momento presente, um querendo a revisão do passado como se nele houvesse uma chave, o outro querendo manter-se ali, segurando a impaciência, o juiz pergunta-me o que se passa comigo, Nada, nada, digo, Estou precisando de um banho, devo descer ainda hoje até o cais dos pretos, tenho coisas a resolver lá. O juiz pergunta novamente meu nome completo e o nome dos meus pais, respondo de pronto, me pergunta a idade e digo trinta e oito, ele silencia, escreve o que não alcanço ler num caderno que me parece de anotações pessoais, pergunta-me sobre irmãos, respondo que só tive um, João Pedro, adianto o nome, que não sei por quais bandas do mundo ele põe seus pés, nem se se mantém vivente nesta terra de vãos e desvãos, continuo. Indenizo-me do cansaço com a permissão de um discreto aproveitamento da cadeira almofadada do gabinete do juiz, escorrego-me levemente, logo volto a posição ereta no espaldar, ele sorri e pede que eu fique à vontade. Olhando para um ponto perdido para além da janela o juiz tamborila a madeira escurecida da mesa, brilhosa, deve ser jacarandá, ou nogueira se a mesa foi importada da Europa, o que é mais provável, livros e papéis entre nós e mais, entre nós se depositam palavras moldadas em olarias escuras nos vales barrentos de cada um, mas ainda não queimadas no forno da boca. Um movimento de falar se estabelece nele, o tamborilar na mesa cessa, mas logo, no entanto, ele contraria o que pensara fazer, percebo, e as palavras que me dirige são de agradecimento e despedidas.

07 fevereiro 2010

O último porto do rio
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Finalmente assino o documento, bem mais tarde do que eu pudesse imaginar, mais de seis horas da tarde, o juiz, percebo, sem saber onde deixá-lo, Na prisão não Excelência, me adianto, ele não é um criminoso, me porto como advogado, peço desculpas por ter falado, sei, ele pensa no que fazer com o índio naquela noite, ele lê e relê o documento como se soubesse da minha pressa e se colocasse contra ela, mas na verdade ele nem lê o documento que eu já assinara, indo de um lado para o outro da sala com aquela folha na mão se dá tempo tomando o meu, para pensar, toma o tempo que eu devia à Maria Júlia. Mas, se o juiz pudesse ouvir minha voz, esta incessante e silenciosa, poderia se interpor entre mim e os meus caminhos transversos e perguntar Que Maria Júlia?, o que o senhor tanto quer com esta Maria Júlia?, é sua esposa? não?, então, por favor, o senhor João Francisco me permita pensar o que fazer com este silvícola. Ao final, sem alternativa, o juiz decide que ele seja entregue ao chefe de polícia que por ali já estava, toda a cidade se aglomerava à porta. O chefe de polícia entra na sala e recebe as orientações que testemunho, de respeito e consideração para com o botocudo, admiro o juiz por isto, esperava menos empenho de sua parte em resguardar o índio de possíveis maltratos, devia guardá-lo até o dia seguinte, quando seria conduzido ao Porto do Mar, capital da província. Ainda que o verão alongasse o dia, naquele venciam as nuvens pesadas encurtando-o, dando escuridão à cidade antes da noite. Com a saída do indio o juiz não me dispensa, peço licença para me retirar mas ele me faz um sinal para esperar como se algo a mais quisesse comigo, juiz novo, com ares de abolicionista, republicano com certeza, zeloso acima de tudo de sua autoridade não haveria facilmente de deixar transparecer nem isto nem aquilo, era cumpridor de suas funções e obrigações, pronto. Parecia no entanto querer desvencilhar da minha mente as insatisfações, minhas frustrações, meus voos curtos. Encontrava ele alguns pontos de convergências entre o seu caminho e o meu, alguns não, um único, o Último Porto do Rio, sim este era o ponto comum entre nós na linha da teia incompreensível da vida que alinhava pessoas em laços frouxos e logo as abandona em suas solitárias sinas. Sonharia decerto o jovem e elegante juiz uma outra paragem, um outro patamar no mundo de onde pudesse levantar seu voo e não aqui no fim do rio, no Último Porto. Por isso ele quer conversar comigo, este malfeito laço nos prende exatamente agora, ele não sei com quais pensamentos, eu com a aflição da pressa.

05 fevereiro 2010

O último porto do rio
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Era para ser um dia de sol rasgado de azul, preguiças e calor, mas olha que nuvens caíram da noite sobre a manhã. Bem sei que este dia assim combina mais com a tristeza que se vai ajardinando na minha vida. As calêndulas estão lindas, este amarelo dourado que escolheste destila saudades, ou desânimo, desânimo é uma plavra sonora, animada, não é? saudades ou desânimo numa mistura de verão e nuvens escuras. Não, não, este tom de amarelo e este nublado de hoje aliançam em laços frágeis o arrependimento e o tempo perdido, é isso mesmo, presta atenção, percebes?, tu tens a alma com olhos de distinguir o que se deposita sobre as coisas transformando-as, podes ver. Bem sabes que um dia, nublado ou rasgado de luz, é mais que um dia, e estas calêndulas de seda com folhas de fino veludo se condensam de outros materiais, de forças invisíveis que se encontram com o mundo.

Reli hoje uma das cartas do João Francisco e não quero dizer-te nada além disso, esta dentre tantas cartas me fez pensar que estamos unidos sempre por frágeis ligas, mas o que falta por dentro nos ocos do coração faz um fragmento colorido de vidro ser um diamante. Relendo esta carta me dei em dores de saber que estamos unidos, ele e eu, não gosto da palavra unidos mas agora não me vem outra, por esta poeira pegadiça que se deposita sobre a matéria, sobre as pessoas e sobre os fatos, sim, esta mesma poeira que faz com que tuas calêndulas se amplifiquem com outras constituições além de seda e veludo. Não nego, todavia, que sem a languinhenta poeira as coisas elas mesmas se tornem poeira.

Sim, meus filhos já sabem que voltaremos ao Rio de Janeiro e ficaram felizes com a possibilidade de estarmos próximos mais uma vez. Deles, em outras épocas, já senti muita falta, mas hoje são homens feitos, cada um com sua vida, estando lá ou aqui nada mudará os rumos da solidão que traça como competente engenheiro as estradas que me atravessam. Desci para o cais dos Jesuítas e ouví a notícia de que as barcaças do Santa Maria não navegaram por uns dias por causa da cheia do rio. Fiquei ansiosa, agora voltei a aguardar com juvenil expectativa estas benditas cartas. Ali no cais deparei-me com a senhora tedesca, me pareceu feliz, animada, comprando uns peixes e temperos, ela não me viu e nem me acheguei a ela, fiquei a distância e daí mesmo me retirei. Há momentos e momentos, e aquele estava longe de ser um bom momento, muito menos para uma conversa carregada destes protocolos que se dão antes da intimidade. Uma coisa notei, usava botinas Luis XV, pensei em como são frágeis os detalhes quando se olha de um ponto de onde também se delineia o rumo do destino.

02 fevereiro 2010

O último porto do rio
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A cidade do Porto do Rio cobre-se de um grito às quatro da tarde, um desses gritos que se dá quando se quer experimentar o alcance do mundo do alto de um morro e nada muda e ninguém escuta e tudo continua do mesmo jeito. O calor de depois da chuva abafa a todos, o sol cresta as pedras do cais, o céu de segunda feira se vai lentamente sobre as montanhas com um azul de festa perdida, o rio amarelo sujo da cheia se esparrama na quietação das águas do porto em espumas produzidas na cachoeira logo acima. Ancoramos a barcaça e logo me encarrego do índio, levo-o ao juiz, antes aviso ao jovem auxiliar do escritório o que tenho que resolver. Quero sem tardança ainda naquele dia descer o rio, talvez com a ajuda de José Pedro Caetano, para procurar Maria Júlia. O juiz me pede que assine um documento a ser lavrado, tenho que esperar, espero mais do que posso, mais do que suporto, espero, crescem redemoínhos de ansiedade na boca do estômago, a tarde se alonga em desamparos, o mundo decerto continua nos seus giros, em que velocidade gira este mundo?, a vida segue lenta, bem lenta em todos os seus trâmites, nao tenho lugar, sento e levanto, vou até a porta, volto e o bendito documento ainda não está pronto, o indio abancado ali na sala, objeto de curiosidade de muitos, me observa, há um certo ar de solidariedade em seu olhar ao mesmo tempo em que me pede algo que não sei distinguir, sei que me pede, aglomeram-se as pessoas para observá-lo, desvio o olhar do seu, minha obrigação para com ele terminou, o que não se deu com Maria Júlia. Com ela minha obrigação ainda está em aberto, devo, quero honrar minha promessa ainda que tarde, nem sei se por ela ou por mim mesmo, indago-me sem conclusões. Quem haverá de saber se ela ainda mantém o seu pedido, se deseja meu esforço. Um pedido tão simples ela me fez, Deus, é tudo tão difícil, roda desconchavada de seu eixo, vou até à rua, distraio-me por um momento com o passar de uma tropa, esbarro na calçada desatento com um vendedor de cocadas, esparramo-lhe os doces do tabuleiro, tudo vai ao chão, peço desculpa, quase jogo o garoto sob as patas das mulas, peço que passe no escritório do armazém e lhe será pago o prejuízo. Os pensamentos se avolumam em círculos espumentos de futuros que não se abriram, já poderia ter filhos como este das cocadas, como aquele da Leonora. Aquele, num desafio inimaginável quebrou o triângulo dos afetos mal enlaçados entre minha pessoa, o mestre do Maria Luíza e o índio, ele chegou com o vinho e o torresmo e as canecas tilintando e olhou para o índio, foi-lhe ao encontro sem medo, observou-o por uns instantes, o índio arregalou os olhos para a bebida, todos ficamos observando, sem pressa voltou-se e entregou-me o que sua mãe mandara, então fitou-me como se eu fosse o algoz, o responsável pelo padecimento do botocudo. Convidei-o a ficar ali e logo devolveríamos as coisas da cozinha, e, à guisa de ações de instinto, sabe-se lá, ele se foi sentar sobre umas quatro sacas de café empilhadas e com seu olhar destruiu salutarmente o triângulo, instituindo um quadrado entre nós, e ao sentar-se mais alto do que todos determinou a supremacia do seu papel naquele momento.

01 fevereiro 2010

O último porto do rio
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Antes de chegarmos ao cais dos pretos no início da tarde de segunda feira tivemos que pernoitar na parada da Leonora. Rio acima como se é de supor a viagem é mais lenta, e com a enchente ainda mais, quanto maior a ânsia de ir ter com Maria Júlia maiores os ventos das adversidades. Não aceitei um quarto que me foi oferecido, me sentia na obrigação de me manter de olho no índio, e no mestre das ditas cartas, ficamos instalados num armazém, um amplo salão cheio de sacas de café e outros grãos, arroz, milho, e arreios e apetrechos de tropas, abrigamo-nos como foi possível, um lampião foi aceso e pendurado num dos esteios. Nenhum de nós podia reclamar de nada, tudo estava muito bom, acostumados, exceto o botocudo talvez, com aqueles cheiros, irmanados todos no entanto na severidade sob a qual vivíamos nossos dias. Comida não foi problema na pousada da Leonora, serviu-nos ela logo que chegamos ainda com o sol se escorregando em suas despedidas sobre as montanhas à oeste um bom jantar e depois de fartos, ainda que cedo, mas dobrados pelo cansaço, nos recolhemos, cada um no seu silêncio e recanto no armazém. Leonora é mulher de pouca conversa, forte como um homem e ágil nos negócios, mais do que seu marido, do qual enviuvara, que era um homem bom, incontrolado contudo no seu vício de beber. A parada da Leonora ganhou progresso mais pelas suas mãos de viúva do que de esposa. Firme como só, ela logo dissipou a curiosidade sobre o índio repetindo minha explicação para quem se arregalava em curiosidades. No armazém, já noite bem adiantada, ninguém dormia, o cansaço perdia para a agitação, águas ainda rolavam em fortes correntezas nos mundos de cada um, senti vontade de puxar o assunto das cartas com o mestre, não fiz, fiquei com os pensamentos, levantando idéias de que ele copiava minhas cartas assim ao modo de aprender a escrever. E pensando isso deixei me influir de uma leve compaixão e olhei para ele, naquele mesmo momento ele olhou para mim, lembrei do seu pé com aquele tipo de brancura que vai tirando a cor da pele das pessoas, uma doença sem cura mas que não traz prejuízo senão o de tornar a pessoa pampa. Em sendo a minha tez branca de raça galega não entendia o meu próprio pé, preto, numa assim semelhante mas opoente doença, apesar de que doença não era, era de nascença, ou bem poderia ser sinal de um intercurso sexual de algum antepassado com pessoa de raça negra. Meu pai e minha mãe eram tão brancos quanto eu, e de minha mãe jamais seria possível aventar da participação dela numa explicação. O índio recostado sobre uns arreios olhava-me um olhar que eu preferia se traduzisse numas palavras que eu entendesse, entre um olhar e outro eu decodificava ora estranhamento, ora respeito, ora raiva, ora gratidão. O triângulo entre nós três se mantinha, não mais equilátero, eu estava no ponto do domínio da situação, o triângulo apenas sofria com as influências das melodias das toadas dos canoeiros que cantarolavam baixinho as tristezas, estas de viver, de amores não felizes, de se sentir inacabado, de ir, ir, ir sem destino certo. Aqueles cheiros e escuros nos definiam na semelhança da desolação. Procurei concentrar-me em Maria Júlia, e o pensamento nela semeava em mim um sentimento bom, uma leve esperança, uma leveza no peito, aumentava a brandura da luz do lampião, mas ainda, e além, o pensamento nela me amparava daquelas imagens que me assolavam a mente em maltratos de recordação. Inesperado nos apareceu o filho de Leonora, menino de uns dez anos, trazia uns torresmos quentinhos e uma garrafa de vinho e numa correia de couro umas canecas de esmalte tilintando despedidas.

31 janeiro 2010

O último porto do rio
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Passo por letras alheias procurando, procurando, tu sabes, basta ver. Quando eu me for do Porto do Mar, o que não vai demorar, já terei o que não tive nem no Rio de Janeiro nem em Roma, soltei, o que se solta voa, e dessas coisas em voo, das suas penas caídas, palavras são aves, mesmo que aves d'argento, il silenzio è..., tanto quanto são variadas as pessoas assim as aves que lhe saem, fiz o meu nome, tive, assinei-me infeliz. Não no futuro no entanto, poderei nao ser, quem sabe serei outra pessoa. Para um infeliz ser feliz é preciso que ele se faça outra pessoa e isso eu ja não sei se consigo. Ou, por outra mão, a felicidade de um infeliz se fará pelo costume, sentir um cheiro por um tempo, virar hábito e não sentir mais, mesmo que o cheiro seja bem ruim. Mas, levarei comigo a possibilidade de me caber em minhas medidas, iludo-me, de um modo ou de outro, não me entendes bem, eu sei, mas sim, o que me mata me embalsama, deixa prá lá. Este teu olhar, este teu olhar me recordou neste momento minha mãe que falava assim, exatamente, tu não sabes ou sabes, falas pelo olhar, pelo menear da cabeça, no franzir dos olhos, no recolhimento ou na expansão de uma luz que brilha clamando o que não se sabe o quê para além do fundo dos olhos. Tu és morena, bem morena, ela branca, tu és mais corpulenta ela magra, magra, tu iletrada ela culta, mas o olhar... parecido. Falas tu poucas palavras, acredito não falas mais por concentrar-te nas tuas artes florais, mas ela, ela queria e não conseguia. Lembro quando tudo aconteceu.

Na verdade as cartas deste tal João Francisco me fazem falar em mim o que não podia ser escrito, o que se escreve marca, letras de ferro e fogo no couro, retomo, há uma mentira e uma verdade nisso tudo, mais, muito mais calo do que canto, esta música que ouves é o desafino das minhas horas, os meus anos ja se passaram. Peço-te hoje uma encomenda diferente, poderias confeccionar flores miudinhas, bem, bem miúdas, amarelinhas como calêndulas, pensamentos bem arranjadinhos, o que se carrega para os afazeres diários, a vida se compondo na repetição, quero oferecer à senhora tedesca que está montando casa ali defronte ao cais dos Jesuítas, perto da minha. Sei, ela as jogará fora, mas o que faço é apenas um pretexto de manifestar hospitalidade para aquela. Além do mais flores miudinhas são bonitas quando se juntam em ramalhete, vou gostar do buquê em minhas mãos andando pelas ruas, descendo a escadaria da Igreja de São Gonçalo, isto me será aprazível. Estranhas o termo, mas é isto, falei demais em felicidade, mais fácil é viver pequenos prazeres no seguir ordinario dos dias, e nisso não há novidade, assim, ao modo deste agrado, o prazer de estar aqui agora, presenciando o virar das cores, arames e tecidos em teus dedos demiurgos. Ah, me consolo. Mas.

Conto-te. Almoçávamos. O papai à cabeceira da mesa e todos bem comportados, cada um em seu devido lugar. Ela andava sonolenta, distraída, falava umas coisas interessantes, que eu não entendia, e meu pai, solene e austero sempre, em seus controles derrotado naquele dia, manifestava grande irritação com o que ela falava. Tu em tuas flores, me escuta, vais a igreja? Ah, sim, pertences a Confraria do Rosário, pois bem, entendes das histórias sagradas. Sabes bem que o pai de João Batista, emudeceu. As circunstâncias podem tirar a voz de um, de qualquer um, de muitos. Aconteceu, in quell'ora e ela nunca mais falou.