31 outubro 2009

vertere seria ludo I

Por exemplo,
é importante notar
que o inventário do mundo
incluía um verso,

que se perdeu.

Pelas veredas transversas
sabe-se que
o tal verso
foi apagado. Raspou-se a folha

procurando rubís.

No impulso do entusiasmo
removeu-se, por distração,
as cascas das letras. O espírito
expandiu-se e saiu.

Quando isto se deu

houve um estremecimento
que virou a página e
o dia amanheceu.

29 outubro 2009

Sacolas plásticas IV

Verde e aveludada
em veludo eriçado
a lagarta verde alaranjada
escorregava-se como sentimento
rejeitado, sentido, ressentido
na superfície lisa da sacola azul, poema
sacola, lágrimas palavras,
vírgulas viradas em dia de chuva
em sacolas cheias de lixo aos pés
da árvore de onde caíra
a lagarta. Verde luminosa
a larva viva definia
sobre o azul cerúleo plástico,
definição sem muita clareza,
um mundo, qual não se verde,
cinza talvez, e melancólica voz,
linda música ao fundo da cena,
cinema de retinas, manias
de ver.

23 outubro 2009

Sacolas plásticas III

Veio um vento
de onde não se sabe. Frio
não era, não era do sul
portanto. Nordeste de todo dia
também não. Era
um vento do chão. Subia
levantando uma sacola.
Ela se ia cheia, poeira
pra todo lado, poeta num livro
enfeitado. Ela subiu, subiu,
asas de um pássaro assanhado,
alma feliz sem saber
que morreu. De repente
o vento doido juntou
os lados plásticos da sacola.
Murcha ela desceu
torta, tonta, vazia. Quem
passava viu.

20 outubro 2009

Sacolas plásticas II

O resto de suas asas se espalhava,
películas plásticas, pretas, colabadas,
uma nuvem assustadora enrugada,
caída, presa num destino, coisa
triste de se ver. A água seguia,
de um modo ou de outro, ao modo da vida.
Suja mas seguia. A água escapava
até evaporar-se ou cair no ralo e seguir,
mas a sombra ficava, ainda mais enrugada
velha, assustadora. A sombra, a sacola,
grande, preta, agarrada por uma ponta
na pedra do meio-fio não ia, não ia.

19 outubro 2009



Sacolas plásticas I

Rasgava-se em partes brancas
quase pele artificial, hímen
do mundo, a sacola.
Saiam grãos empapados.
Arroz. Atroz rumo, atrás um cão,
magro, correndo. Um caroço
de manga, saliva seca,
laranjas sem vida,
distintas flores vencidas,
corrompidas de cinza se largavam
pelo mesmo rasgo.

16 outubro 2009

V

Também pássaros
e a árvore solitária
num campo que passa.
Uma rua à noite, papelões
e passos vagos. Longe,
olhar que se perde. Então
as horas sondam
as asas dos sonhos
e dizem impossibilidades,
e penduram aflições em seus
voos.

... talvez seja cansaço.
IV

No meio o ponto de início,
uma ocasião. Possível
caminho. A pedra,
uma outra atitude.
O futuro não absoluto, nem senhor,
mas presente ali, na manhã.
A manhã que se vive
mesmo já sendo tarde.

... talvez seja ternura.

15 outubro 2009

III

Recorre-se a si mesmo
e não se é. Escora-se
em muro áspero,
destituído. O conhecido
estrangeiro fica,
e o limite.
O presente torna-se dia
a dia. O que se vê
é o que não pede mais
para ser visto.

... talvez seja tédio.
II

O que se falou foi apenas
um desvio. Amor
que faltou, ou sobrou.
Depois da curva
sentiu-se pendido,
mesmo estando bem ereto.
A ferida: um longe, perto
no aperto.

... talvez seja saudade

14 outubro 2009

(talvez seja é a nova publicação
de poemetos a partir de hoje)

I

Dizer dias seria
dizer morrer. Há
portas que se abrem
para que se possa escrever
outra frase: dizer dias
é dizer romper, quebrar
os olhos vidrados.
Transfigurar-se
do medo ao festejo

... talvez seja gratidão.

08 outubro 2009

Acho que vou encerrar esta série
de poemas - o que contais? - hoje.

VI
(O que contais?)

Ele teve um sonho, mas... ter
é punhado de areia na mão.
Logo a mão e a areia serão um.

Ele sonhou
que poderia ser deus,
no entanto, apenas
enquanto dormisse.

Ao acordar até poderia usar o excesso
do ser deus. Poderia
retirar da pele fragmentos de luz
e fazer assim uma limpeza
da poesia grudada no corpo.

Sapatos, asas, destino,
tudo seria deixado
na soleira da porta de entrada,
e tudo tomado de novo, na saída,
depois do amor.

O que se conta,
incertas verdades, é lâmina
afiada em pedra corisco,
algo que verte:

poema
não carece disso ou daquilo,
basta interromper um rio
e romper-se líquido em outro.

07 outubro 2009

V
(O que contais?)

Ali esfaquearam muitas palavras,
puro amor de transformá-las
em carnes de sustento. Mas

aquele não lhe parecia o lugar.
Avistavam-se as ânsias
de dar ao dia o que lhe bastasse.

Olhou a última página,
a mente do poeta entre
as exigências e o tédio;
o espírito do cientista entre
nuvens de gás e o abismo do cosmo.

Por fim o emblema na escolha:
um cristal, a tarde
e o canto de um passarinho.

Na porta de ir embora lhe esperava,
ao lado do sentido possível,
a experimentação de outra pronúncia.

Uma ponte inexplicável
incompletava-se
entre o sol e o coração.
Faltava-lhe um vão.

06 outubro 2009

IV
(O que contais?)

Ele tremia. As palavras
lhe ofereciam uma perturbação.
Talvez uma viagem, do medo
à esperança. As exigências

ancoravam alguns de seus navios.
Imprescindíveis portos.
Prescreveram-lhe poesias.

Aborreciam-lhe as rimas e o mormaço.
Sabia do morno que corria pelas horas,
mas não das orquídeas amarelas
do jardim, ali. Seria a loucura de apenas

um novo olhar. Bach em alemão
significa riacho. Beethoven diz que Bach
deveria significar mar.

Onde deixar que pousem
os pássaros dos olhos?

04 outubro 2009

III
(O que contais?)

O que ele lembrava,
mais do que das exigências,
era de um desprender-se de uma estrela,
e da queda
na inexplicação de si mesmo.

Mas, ao mesmo tempo,
era por dentro,
nas correntezas de dentro,
que um sentimento sem solução
se lhe aparecia.

Inclinou-se e pensou
no que fazer. Havia vários
corações para aquele gesto
de inclinar-se: qual deles
tomaria para viver aquele
ínfimo momento?

02 outubro 2009

II
(o que contais?)

Ele se lembrou
das exigências
que se lhe tinham sido feitas.

Haveria de plantar
o fogo do fogo
e alimentá-lo
com o vinho do desate.

O diamante do horizonte cegou-lhe,
para que pudesse sentir
a superfície fria do tempo.

Ao fim do dia
voltou-lhe a luz
e as hesitações.

Haveria de, por ofício,
afinar o violino
com o peso
ou a ternura das horas.

Ou, tatear sob o dorso da língua
indícios de novas pronúncias.