30 julho 2010

Inesperado sol

17


Olhou para eles com uma decisão inesperada, por ele mesmo inesperada, convocou-os para uma reunião daí a meia hora. Que reunissem quem eles pudessem avisar. Enquanto se dirigia aos que estavam no bar com palavras resolutas se perguntava a razão de se contrariar em seus intentos, já que o que queria e o que devia fazer era fugir dali, mas com aquelas palavras convocatórias sentia que se ia deixando prender. Sim, parecia ser isso mesmo, se ia deixando prender. Sentou-se, bem como se senta um gerente numa mesa, sentou-se ao lado da janela, o olhar altivo ao modo de dizer a todos ali presentes que ele sabia muito bem o que fazia e o que iria fazer. Depois voltou-se para a janela de onde podia avistar uma parte do porto e deixou o olhar cair inseguro sobre a paisagem, senão inseguro, vago e abatido decerto. Ali balançavam ancorados uns barcos que se prestavam a compor a tristeza daquele lugar com traçados de beleza. Não era o gerente, mas ia aceitando aquele velho porto e siderúrgica abandonada. O que seria fácil, virar as costas e se ir embora como fizera com tantos outros lugares por onde passara, não era fácil. Ele era tido por outro, e ser tido por outro dava-lhe a sensação de deparar-se ao andar ao lado do riacho em meio a brumas, muitas brumas em dia de inverno e chuvoso, com um inesperado sol . Já sabia o que iria dizer aos homens que viessem para a reunião, tudo lhe vinha fácil à mente.

27 julho 2010

Inesperado sol

16


Eram homens sem trabalho que estavam ali, não gostava da palavra desempregados, eram trabalhadores, homens num bar, falando o que o mundo não queria ouvir, estas coisas do cotidiano, da vida. Eram os que restavam dos antigos operários daquele complexo, siderúrgica, estaleiro, porto. Viviam. Viviam provavelmente de pequenos ganhos, pequenos trabalhos, do mais conversavam ali no bar lições menores, aquelas que não interessavam a ninguém. Dirigiam-se a ele, nada era preciso dizer além do que diziam no olhar, e diziam senhor gerente. Sim senhor gerente, aqui estamos, e esperamos ver o que o senhor irá fazer. Ao mesmo tempo havia ali em suas retinas, no brilho e no fosco do fundo de cada olhar uma árvore que se desfolhava em aceitação de que nada, nada mudaria.

17 julho 2010

Inesperado sol

15

Não era somente um rosto que se configurava em arranjos na sua mente ao vê-la. Refugiava-se naquele rosto, e via, sim, uma velha e grande mangueira espraiada sobre um rio de fundo arenoso e águas claras. A sombra poderosa se instalava sobre o rio e suas margens, atravessava-o para o outro lado e as raízes da árvore criavam desenhos escuros no chão, riscos de letras incompreensíveis, palavras sem sons. Ele pediu um copo d'água, ela surpreendeu-se, água?, e trouxe-lhe. A palavra água com a interrogação reforçou a visão do fluir manso do riacho sobre as areias rasas embaixo da mangueira. Paravam ali, mas logo corriam rápido depois da pequena praia num estreitamento do rio pelo barranco de um lado e uma face de pedra do outro. Aquela sombra, a velha fábrica em que todos pensavam ser ele o novo gerente, a água que se comprazia num remanso e que logo encontrava as corredeiras diziam-lhe confusas orientações. Então começou a perceber o bar e os vários olhares sobre ele, o recinto, grande, talvez um antigo restaurante, abrindo-se em claridade, revelava seus vários elementos, coisas e pessoas.

12 julho 2010

Inesperado sol

14

Um sorriso triste, mas um sorriso, apresentou aquela mulher junto ao balcão. Havia algo de passado, de grande, de maior pelo menos, naquele bar e naquela mulher. Os anos, não muito mais que trinta tinham lhe ressecado os cabelos, a pele do rosto rosada não escondia o fulgor do sol que nele se tinha infiltrado por anos em exposições de vermelhas horas, agora definindo algumas manchas. O olhar expressava simpatia, resignação talvez, e era pela resignação que a simpatia se manifestava naquele sorriso e que ele logo acolheu. O que sentiu por ela, sentiu por intuir que nela corria um destino assim, destes dos quais não se pode mais desviar, tal qual o seu. Qual o dela ele não sabia, o laço entre os dois apenas existia, sem significados e soluções. Se era assim podia se aproximar dela sem medo. E era. Foi o que fez, se aproximou, forjando um sorriso também. Nas primeiras palavras, nos cumprimentos formais, no senhor gerente que ela obdiente lhe dirigiu logo enxergou através daquele rosto uma dúvida, de que maneira se relacionaria com as mulheres, o que surgiria quando seu olhar de cobiça se debruçasse sobre uma delas, revelaria alguma coisa, perguntava-se.

09 julho 2010

Inesperado sol

13

Não havia motivo para rir, mas ria, inclinou-se sobre o volante e endureceu-se nas feições para impedir o riso e o que o riso encobria. Carregava algo na pele, por dentro dela, nos limites entre o que faz rir e faz chorar. Era como roupa suja, aquela que ele atirava longe ao chegar em casa, apressado, desejoso de uma ducha. Mas a roupa se lhe tinha grudado na alma. Talvez um dia visse alvejada a amarela história que carregava consigo agora. Os meninos o rodearam, chamavam-no de senhor gerente o tempo todo, seus ouvidos não se contrariavam mais, ou não tanto, com aquela forma de tratamento. Dobrou-se sobre o motor e um tempo depois, como os meninos, ele vibrava de alegria ao vê-lo roncar. Sentiu sede e os meninos falaram do bar na pequena vila operária ali perto. Pularam sobre a carroceria antes que ele assumisse o volante, não havia como mandá-los descer, e nem sentia vontade de fazer isto, distraia-se com eles, e rumaram todos para o bar.

06 julho 2010

Inesperado sol


12

Dentre os dias que faltavam estava a quarta-feira. Faltava o pano da quarta. A quarta-feira do ocorrido não faltaria mais, ficaria grudada nos pensamentos até quando este se perdesse nos pântanos da memória envelhecida, ai, quem sabe, a memória que desliga e liga em outros jeitos uma mesma linha, construa sem dor, sem peso na verdade, o que aconteceu naquele dia. Meu Deus, foi numa quarta-feira. Agora teria que levar até o inferno aquela quarta-feira. Os degraus da escada não lhe bastaram, desceu-os saltando-os a ponto de cair e se quebrar todo no chão imundo do primeiro andar, abriu a porta com a decisão tomada sem saber em que momento ela teria se formado, ela se dava agora, em cada passo apressado, os olhos não viam nada, o rumo era definido como o rumo de um réptil que segue veloz. Ao dar partida na caminhonete o motor roncou, roncou e não funcionou. Derramou-se por dentro de um depósito bem cheio um liquido amarelo de frio que lhe desceu pelos entremeios da barriga. Desligava e ligava o motor e ele não funcionava.