27 setembro 2011

Mas havia uma certa luz vinda de não sei onde

É um pretexto, eu sei, algo que se inventa para uma conversa que parou. Tem uma cena clichê, mas apesar, é certo, este início exige um olhar caolho. Quereis se ter em vesguices por um minutinho? Foi assim, chovia, o dia frio se findava nas luzes já acesas e nas cozinhas quentinhas das casas lá fora, tu vinhas andando com pressa entre os canteiros, mas como também eu seguia com a mesma pressa, e em sentido contrário, nos esbarramos, nos desequilibramos, caímos sentados, caíram as flores que carregávamos. Mas havia uma certa luz vinda de não sei onde. Tu tinhas colhido rosas, e exatamente as amarelas, que para mim são as mais bonitas; e eu margaridas, uma braçada de margaridas, e ainda no embornal atravessado no peito muitos morangos bem firmes e densos de vermelhidão. Teu pai sempre nos espiava. Tua pressa e a minha tinha o dia seguinte - mais uma feira livre - como motivo. Ainda tínhamos que organizar muitas flores e verduras em maços, muitos morangos em caixas, inhames, vagens, muitos pensamentos em folhas. Mas rimos muito, lembras? Éramos tão felizes. Tu recolhias minhas margaridas e eu tuas rosas. A chuva era mais forte. Pelo jeito engraçado que dançávamos recolhendo as flores, os pés afundando nos canteiros fofos e molhados, quem nos visse pensaria que aquilo era cena de um filme japonês. Mas o que aconteceu mesmo foi que nosso olhar caiu sobre nossas mãos, ansiosas, calejadas, molhadas, marcadas de terra e flores, que se tocaram no impulso de apanhar a mesma flor. Foi o tempinho só de um olhar... pronto...  Lembras?

24 setembro 2011

Ninguém sabe onde

foi o que encontraram, o rádio ligado e um relógio com o mostrador amarelado de voltas e revoltas que parecia cansado, jogado ali sobre a mesa naquele quarto frio e vazio. Alguém o esquecera ou o deixara ali. As janelas fechadas, os vidros molhados marcavam um frio próximo, vizinho, invasor. Esfregou as mãos numa tentativa fracassada de dar-se alegria, só conseguiu um ânimo, um leve. No radio uma voz de pequenas cidades, campos e caminhos cantava lookin’ for a good time. Ele só queria ir para Califórnia, tinha pela frente uma longa estrada, e longa estrada é apenas outro modo de dizer que só lhe restava uns poucos sonhos, mas ainda os tinha. Chorou. Ele só queria ir para São Francisco. Iria, de um jeito ou de outro, tirou a mala de debaixo da cama que já estava arrumada com suas poucas coisas, conferiu uns poucos dólares com olhar de desejos de multiplicação, poucos eram, uns centavos a mais de poucos, os colocou no bolso com medos, bateu a porta do quarto quando se cantava nothing better to do. O relógio ficou ali, girando, girando seus ponteiros sobre o fundo amarelado da vida. E fundo amarelado da vida é apenas outro modo de dizer que ele não conseguiu chegar à Califórnia. Ninguém sabe onde.

executar a invenção

semelhanças com curvas de estradas, com redes dependuradas em casa de pescador, com vaso tombado num quintal cheio de folhas. Penso em outras semelhanças também, semelhanças com aquele personagem de Guimarães Rosa em A terceira margem do rio, que se posta numa canoa, e pelo olhar do filho não ia à parte alguma, “só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio”.  Paro aqui... pra mudar o rumo do pensamento, pra fazer outras conexões, pra alterar com abrandamentos o bater do coração.  A invenção... executar a invenção de se permanecer, assim, talvez, ao modo de se permanecer no espaço de uma felicidade, pequena, mas que abre hectares e mais hectares para o cultivo de girassóis, ipês, milho; se permanecer na amplidão do campo de uma saudade e recolher a madeira abundante ali para uma casa de cômodos aconchegantes e varanda vistosa, casa para muitos amigos;  se permanecer nesse abraço cheiroso e dar-se sem receios ao esquecimento, ao esquecimento das horas.

22 setembro 2011

Fronteiras

As fronteiras estão postas, muitas, eu mesmo as coloquei, algumas pelo menos; mas eis que as palavras me sorriem em convites para passar dos limites. Decerto estes limites atravessados vão me possibilitando saúde de poesia, uma frágil força de passarinho, uma insegura certeza de abelha.  Mesmo e apesar dos estranhos movimentos de dança que se dança quando se vem aqui, aqui além da fronteira, e desses trejeitos estapafúrdios que se levam de cá para lá grudados no andar, no olhar, no falar, é impossível viver sem vir. Cada vez que mais se vem embrenhando por estes outros lados, mais modificados ficam os traços da fisionomia e as linhas dos tecidos que se vestem por dentro e que se dobram fora nos gestos. Mas as mudanças não são nem para pior, nem para melhor. São experiências de fazer-se outros. Experiências que marcam, mesmo que só por um instante. Se olhos se arregalam em estranhezas e perguntas indecentes, em meios sorrisos ou em gargalhadas, outros se dão em proximidades e conexões de peles e almas; e é tão agradável, bonito. Não há, no entanto, garantia nenhuma de lucro, de vantagem vindo aqui, montado neste dorso rugoso das palavras em voos irregulares e de rotas indefinidas. Há um leve prazer, mais do que prazer, uma certa paz. Uma certa

21 setembro 2011


pelas manhãs de setembro

Faz-se uma janela ali, abre-se um lago de luz. Ele olhava a manhã e tudo estava nela, tudo. Mas nada estava completo, apesar de pleno. Vou pescar, ele disse. Como vais pescar, o outro perguntou e exclamou ao mesmo tempo. Vou pescar, ele afirmou novamente. Mas havia ali naquelas palavras um outro “vou pescar”. Se te conto agora este conto é pra te fazer um convite. Talvez ele se lembrasse de um poema, um poema de Pablo Neruda, talvez. As certezas se diluem em uma espécie calma de satisfação e anseios. As palavras que aqui ficam voam em várias direções. O poeta falava em pescar luz caída, com paciência, de um poço - que imagino escuro. Caem muitas luzes de volteios macios pelas manhãs de setembro, e não pescar será um desperdício.  Vou pescar.

19 setembro 2011

o último pássaro que avistei

Ele se sentia faminto de dizer umas luzes nesse escuro em que  tateava vagarosamente letras em relevos. Mas dizer poesia é dizer o grito que não pode ser escrito. Estás louco, o outro retrucou, haverias de ter em tuas mãos os calos do trabalho, as cores das tintas com que deverias pintar estas paredes, isso sim, és desorientado desde o ventre da tua mãe. Aquele, no entanto, ouvia sem reclamar. Retomou a palavra e disse que havia em si um desejo de dizer o que não sabia, e só saberia tateando as letras em relevos. De que falas? Onde pensas teus caminhos nessas loucuras? Sossega. Não, ele respondeu, este escuro não me cega, apenas me faz chorar, não me faz louco, apenas me faz desenhar em tateios nessa parede de relevos o vôo do último pássaro que avistei. E quando eu encontrar a rota do vôo tu também em desejos de luzes e sol vai desdobrar  tuas asas mansamente, alongando cada músculo, estirando cada pena, de modo a descobrir em ti mesmo um tamanho muito maior que o que te acostumaste a saber.
conexões azuis, lilases, vermelhas


A árvore vai secando nas pontas... eram vagens de inverno, cheias de sementes, coisas, olhares, outros dias que cairão em manhãs cada vez mais densas de luz. A árvore marca um passo, esse que se dá na rotina, um leve correr das coisas, sem sobressalto, nada de excepcional, primavera, setembro, um dia depois do outro, a vida seguindo. Então já era hora de ir, abraçou-a mais uma vez, um beijo e um leve carinho, vento suavemente sul, imponderáveis conexões azuis, lilases, vermelhas. Talvez não seja outra coisa senão paz, é..., ou algo nas suas vizinhanças, paz, aquela que se percebe também no tronco grosso de anos, e rugoso e belo da árvore que seca suas vagens, que faz reluzentes sementes.

18 setembro 2011

e dizer, a vida

Ali está o livro de Rubem Braga, crônicas tão bonitas, mas o olhar cai sobre um vento. Sim, escorrega pelo vento e vai. Abre-se uma janela, e outra, e outra e o olhar vai sobre a cidade, sobre os campos e a linha de trem. Vai tonto de ser feliz, certo de ser feliz. Talvez nem seja bem felicidade, seja só uma cidade, a da vida, essa situada ali, a lhe dizer qualquer coisa do tipo cachoeira e cheiros, mar e azul de setembro, café e tarde livre. Ou talvez seja apenas idade, idade de ter visto muitos amores, e viver muitos outros, e flores. A orquídea resiste e propõe outros entendimentos, totalmente inusitados. Ah, é bom que se diga, o olhar assim no vento pode até ter uma asa que bate de um jeito que parece o bater de asa infeliz, como asa de beija-flor. Mas, sim. Sim. Acordar e dizer, a vida. Mas dizer é viver... E  se pode escrever... acordar, feliescrever a vida... seguir.

17 setembro 2011


Amigos, vou retomar a atualização do blog. Deixo por enquanto o inesperado sol e passo a publicar fragmentos, escritas que se fazem nos intervalos, escritas que não me exigem maiores elaborações. Um prazer de um descanso, um sobrevoo, outro pensamento, qualquer coisa assim.


Um olhar que diz

As lembranças... suavemente afirmam. Afirmam: o presente não é tudo. Um arrozal de cachos maduros em dia de sol é uma lembrança. Cortar a flor dourada, fazer os feixes, sentir o cheiro do azul do céu em cada cacho encurvado de grãos. O presente é, mas as lembranças fazem o presente, este átimo de tempo, ser vagaroso, delicado, bonito. Se assim não for, o presente será apenas tensão, passagem de ar em espaço estreito, assovio, apito, aviso do fim. Tu não sabes o que falas. Talvez, respondo. O que pensas do agora? Penso que vale um olhar, de amor, amor também para quando o agora já não for mais presente, for passado. Um olhar que diz, vai, não te prendo, se teu caminho é ir, que seja assim, vai e me leva, e me arremessa de lá, do lugar das coisas guardadas, recordadas, me arremessa para a vida.

16 setembro 2011

A sala


A sala recolhia um silêncio e pintava com ele as paredes, as janelas e a limpidez das vidraças. Mas carecia-se de silêncio ali. Era assim que sentias. A sala fundamentava o silêncio nas tábuas enceradas, rangentes e retas que se estendiam solenemente da porta principal para os fundos sob cada móvel. Mas, apesar da boniteza da sala, escapava-lhe a música, faltava silêncio, era o que tu me fazias crer. A sala fazia suavemente tremular o silêncio em cada pequeno movimento da alvura das cortinas. Mas o silêncio não estava ali. Ele estava lá, talvez lá, bem onde a asa de um olhar consegue fazer tremer a flor prestes a cair da galha mais alta do ipê. Ou, quem sabe, o silêncio esteja, não sei ao certo, nas franjas do teu sobressalto ao acordar, no fluxo de sangue acelerado que sentes no coração, ali, naquele momento súbito em que se tem a chance de se apoderar dos sonhos da noite. Não? Nem sempre te apoderas dos teus sonhos?