07 novembro 2010

Inesperado sol

21


Eu matei, ele pensou, eu matei. Então de um salto pôs-se de pé, era hora, passara da hora de ir embora, dirigir sem estrada certa, escolher uma estrada na direção contrária, aquela que segue no rumo oposto à dor, no rumo oposto ao amor, no rumo oposto das lembranças, se existe essa estrada. Foi até à janela, pôs-se ali, as duas mãos espalmadas nas paredes laterais da janela, um cristo crucificado no vão da janela aberta, o vento vinha do mar, frio, a brisa carregada de maresia, a noite de nuvens de chuva ainda por chover batia-lhe no rosto com a escuridão, a noite tornava-o peça principal de uma cena sem espectadores. Eu matei, repetiu em pensamento, eu matei. Jamais pensara um destino assim com o qual curvava-se agora, por mais que se mantivesse ereto. O perfil da velha siderúrgica no escuro da noite emoldurava um mar e um porto escondidos pela escuridão. O que o mundo reconhecia era apenas o ruído indistinto do mar indiferente passando pela janela como se ele ali não fosse nada. Eu matei. O vão da janela parecia ainda maior.

06 novembro 2010

Inesperado sol

20


Sentia sono, um sono inesperado, um sono de sumir pelos universos do esquecimento. Procurou o quarto esquecendo a casa, era o suficiente o que olhara, os objetos que vira na sala, seguia agora outro rumo, quase por instinto, como se aquela casa fosse sua antes, ou como se fosse sua agora, não era nem uma coisa nem outra, era um espaço, um espaço cercado de asteroides informes. Tirou a roupa, caiu sobre a cama, poxou o lençol até o peito. Não dormia fácil em cama estranha, ajeitava-se e não encontrava a posição que o corpo queria, decidiu ficar imóvel, forçar o corpo a esquecer os movimentos, a luta era quase impossível, conseguiu por uns instantes, uns minutos, quantos não sabia, talvez um único, longo, longo com cara de dois ou três. Virou-se para o outro lado, os lados eram iguais com os olhos cerrados, apertados, a impedir os pensamentos, como se acreditasse que os pensamentos fossem fluxos pelos olhos, fluissem por eles em cascatas barulhetas, infindáveis. Determinou-se novamente a ficar imóvel, os pés queriam se esfregar um sobre o outro, concentrou-se nos pés, ordenando-lhes que silenciassem. De súbito veio-lhe a cena, fragmentos da cena, olhos abertos ou fechados agora não importava, a cena estava ali em close. A mãos trêmulas, suas mãos, mas firme, trêmulas nas fibras, nas vibrações das fibras dos músculos contraídos, firme. Tremia-lhe mais agora o corpo que as mãos naquela hora. Vibrava-lhe as mãos com o revolver como vibram os átomos do aço. O revólver apontado e impiedoso.