29 novembro 2009

O último porto do rio

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Acordar, sinto saudades dos dias em que acordar era o natural abrir dos olhos e da alma para o milagre de viver. Agora acordar é dar-se com um sufoco no peito, uma pressa e um pulo, mesmo aos domingos e dias santos. Acordar com a alma deslocada, um vago no lugar deixado, uma dor inexplicável. Em tal situação não há outro jeito senão esperar que o banho frio, o café, o abrir da janela, a escuta de barulhos comuns do quintal, da mata ao fundo, convençam a alma a reocupar o correto espaço no peito. Acordo, mas me engano, o dia ainda não amanheceu. Estou estirado sobre a cama, vestido com as roupas, o peso e a poeira do dia anterior. O lampião aceso ilumina o buraco do deslocamento da alma. Que sofrimento é este, deslocamento de alma, dor que dói mais que luxação de ombro, de dedo polegar. Com um pé forço o sapato do outro e arranco-o. Repito o processo e o outro cai ao chão. Usando o mesmo procedimento retiro as meias. Esqueço-me do pé direito, negro, diferente de todo o resto do corpo branco e vejo-o. O lampião aceso ilumina o pé direito negro. Apavoro-me, tento escondê-lo, não sei o que fazer, mas sei, logo me enfio debaixo do lençol. Esquento-me de umas brasas e ardências de calor, os minutos viram o inferno e entornam seu fogo sobre meu corpo, dou um salto, retiro toda a roupa, exponho-me à própria nudez, volto para a cama e cubro somente o pé direito.

28 novembro 2009

O último porto do rio

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Na medida em que os passos me fazem próximos de casa, quando na noite escura os cheiros são visíveis, o que se aproxima na verdade são recordações. Recordações insignificantes, nenhum acontecimento merecedor de vanglória. Uma esperança vã aqui, uma ilusão bonita acolá, uma casa abafada e um cheiro de mofo depois da porta. Pegar uma barcaça e descer o rio, quem sabe arranjar um novo emprego no porto do mar. Virá, logo mais, no meio da manhã, o insano, gritando e pedindo a nova carta. Escreverei que abro os braços como asas e rodo no pequeno espaço de liberdade que o círculo consagra. Tão hábil no uso das coisas da casa no escuro, agora tropeço na busca do velho lampião, meu Deus! Encontro-o, acendo-o, nem sei mais o que pretendia fazer com a luz, jogo-me na cama e desisto de levantar para apagar a chama. Dormir, no entanto não durmo logo, o cansaço é que me vence.

27 novembro 2009

O último porto do rio

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Ir para o bar é ir para lugar nenhum, onde, suponho, apesar de me enganar algumas vezes, uma mão pesada não me apertará o peito. Ali me caem certas palavras para as cartas que escrevo sem saber para quem. Ficar ali entre uma dose e outra reverte o poderoso fluxo do mundo, força o nada. É nadar em suas águas frias como se fossem mornas. As horas ali também passam, claro, mas a lâmina é tão fina e incisiva que o tempo sangra, e, nem se percebe que há um corte. Depois, quanto tempo não sei, ao voltar para casa, fica o bar ali como se nunca tivesse existido.

25 novembro 2009

Logo mais retomo a atualização do blog.
Por enquanto fica o meu abraço para
aqueles que por aqui passarem.

21 novembro 2009

O último porto do rio
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No pequeno escritório no segundo andar do armazém principal do porto é que escrevo as ditas cartas. Retiro delas o bem e o mal. Nelas me ocupo por um tempo, quando, acho, me permito ser o que não sou, ou, quem não sou. Tenho tido muito trabalho, pois que para mim viver tem sido trabalhar, e o tempo que durante o dia me sobra ocupo com as cartas. Mas se gasto tempo com as cartas, sendo sincero, nem é tanto tempo assim, pois que sou treinado na escrita. A maior parte, quando posso, e a despeito do olhar curioso e disfarçado do rapaz que me ajuda nos papéis, é olhando da janela para o rio e pensando pensamentos de futuros, outros, diferentes daqueles que vão se abrindo diante dos meus passos. Nas últimas cartas, pelos rascunhos que releio, percebo, ando forçando a alegria. O resquício desta empreitada se manifesta no tom de voz levemente alterado que surpreende os barqueiros e carregadores de sacas de café, sempre acostumados ao meu modo controlado de lhes dirigir a palavra. Quando dou por encerrado o dia já em noite fechada, como se tivesse trabalhado mais do que trabalhei, vou para o bar. A cada noite as ruas revelam-se em pesos turvos nos passo que dou. Ainda seria tempo.

20 novembro 2009

O último porto do rio

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Há aqui agora, sem horas para chegar, um barqueiro que vem quando nunca se espera, e me impõe cobranças de umas cartas. Do cais grita impertinente, me chama de senhor, e exige que lhe entregue sem demora as malditas cartas. Fico em dúvida se não deveria chamar-lhes benditas. Fala-me como se me fizesse um favor, eu que tenho que descer ao cais, mal me toma os envelopes e atira-os dentro de uma bolsa velha de couro sem me olhar, voltado que está para os seus afazeres, os que lhe são importantes. Lido com registros, todos sabem, do que chega e do que sai neste ultimo porto no rio, tudo tenho que por no lápis, sem esquecimentos, desonestidades ou distrações. Cobra-me tão seguro as cartas o sujeito, talvez, por me tomar por quem não sou, e como parece sempre muito apressado, não me ouve as explicações ou tentativas. Também não distingo por qual grito por dentro, mais forte do que o deste endoidecido que sobe e desce nas barcaças, é que me dobro sobre a mesa e deixo ir este rio de insignificantes desejos de dizer o que vou dizendo.

14 novembro 2009

vertere seria ludo XIII

Tarde após tarde é o seguimento
de tentar desenhar casas
numa pradaria longe desabitada.
O franzido do sol caindo

sobre o olhar

evoca a matéria verbal
na qual se converterá
a luz do desenho. Além de que
entre outras regras

a ramagem da brincadeira

deverá atravessar o deserto.
Todavia, sabe-se, ele é demorado,
e o que se dá a encontrar ali será,
talvez, pela linha que se encaminha

pela esquerda da paisagem onde

ruas em luas crescentes
seguem pela noite de novas cidades
e depois avançam
pelos quadros de Escher.

12 novembro 2009

vertere seria ludo XII

Pode ser que a vida
se faça de duas metades:
uma consiste em tornar-se,
a outra em inventar

novas sensibilidades

para cada respiro. Cair,
fora do próprio destino,
quando acontece, acontece,
e se vai onde

não se queria ir. O muro

é alto demais, constatam.
Preso, o desejo de asas
se desfaz pelo chão mesmo,
ao som de latidos. O cão

tem o pior grito. No entanto,

a idéia forma um repuxo
e um amarrotado movimento
no desejo antigo: sair por aí,
se reencontrar, e ver no que dá.

11 novembro 2009

vertere seria ludo XI

Os dias, frágeis louças do serviço
do prazer, se contam em somas
de prejuízos. Jogo que se impõe
viver, a se querer ou não: lançar

pétalas ao fogo até restar a haste

nas mãos. O limite do número de pétalas
tornar-se-á sentido e significado quando,
por entre as equações de rosas desfeitas,
se levantar em geometrias lindas

o inumerável amor. As pétalas se vão

ao fogo, a haste guarda-se no bolso.
A espionagem amorosa dos entendimentos
dos segredos desenhados na louça,
não desprezará, no cômputo geral,

o peso do perfume.

09 novembro 2009

vertere seria ludo X

O peso de uma pedra
se dissipa (há uma chance)
na luz de um olhar.
Pégaso atravessa a tarde

em corpúsculos invisíveis.

Quem irá cavalgá-lo não
será a pergunta, mas
como abandonar-se ao seu voo,
pela densidade de cada coisa,

de cada dia. Não restará

da transparência um vidro estilhaçado,
o tédio. Há de ser (espero)
o dia comum um imenso livro
amarelo, o tratado da dança

e do canto, aberto na página que versa

sobre a teimosia deste jardim resseco
que naquela rosa se transubstancia.