31 outubro 2008

A vez do amor

Tomar o barco à tarde e remar. Ir até a ilha.
Ir para ver de lá o sol se esparramar nos confins.
Ir para olhar e escrever num caderno de capa dura,
num caderno bem guardado debaixo de uma pedra,
o desenho das águas, a história das estrelas e conchas,
o enredo dos barcos e praias, a música de cada coisa.

De tanto repetir o mesmo caminho virou esquisito
na boca do povo, no olho da vila. Um menino ainda.
Se falava muito do tal caderno que ninguém via,
onde estariam escritos mistérios e oráculos
aprendidos com a avó quando viva. Agora era só.
Mas dele também se dizia uma verdade
bonita como marlim azul:
ninguém sabia pescar como ele,
só ele mesmo entendia onde os cardumes em festa
se perdiam nas tramas das redes.

Num dia de vermelho arroxeado no horizonte,
ele não voltou da ilha. O barco também sumiu.
Lá se encontrou o caderno num local bem visível,
com uma única página escrita.
Estava escrito: sei escrever, mas não escrevi.
Eu só traçei destinos, somei o que vi a cada dia
e embelezei a ilha com o gesto da minha mão.
Brinquei de maestro diante de uma imensa orquestra.
Agora é a vez do amor, é preciso partir.

30 outubro 2008

Un cuore senza poesia è come una cattedrale vuota

...alguma coisa. Tarde da noite,
escuro como breu. Estranho ruído.
Colamos o ouvido na porta.
Alguma coisa... o que será?
Batiam à porta. Batiam nossos corações.
Depois de um tempo sentimos vontade
de dizer qualquer coisa. O que importava
era falar em voz alta e recolher o que viesse
como resposta do que batia. Nada saía.

Nada respondia.

Resolvemos, quando o barulho cessou,
bem depois, abrir a porta. Nada, ninguém.
Reconhecemos por um pequeno rastro
quem nela batia. Quem à porta batia
era uma espécie de poema
não muito conhecida, de pouco valor.
Não acolhido se retirou, sabe-se lá para onde,
e deixou na soleira da porta a tal pista,
uma frase, pequena incógnita frase:
a catedral está vazia.
Parecia a frase final do poema, perdida
pena de asa batida, que se desgruda
exatamente na hora de alçar vôo,
quando o esforço é maior.

Tomamos a pena e choramos, choramos.
Mesmo sem valor, aquele era o nosso poema,
a nós oferecido pelos segredos do mundo,
para aquela noite que vivíamos.
Choramos abraçados e depois rimos, rimos muito,
esfregando a pena no nariz um do outro,
nos olhos e nos ouvidos, a catedral está vazia,
nas mãos, no corpo todo, no coração.
Com a brincadeira e a dorzinha do poema perdido
instituímos sem perceber uma liturgia, um rito, uma magia
que celebrava o que perdíamos e o que ganhávamos no amor.
Nutríamos uma esperança: o poema retornaria,
mesmo que outro, e ainda que não mencionasse,
por delicadeza, que a catedral estava vazia.

29 outubro 2008

Os requisitos e as importâncias

Procura-se quem de veias e sangue acredita
na vida, nos mistérios, no amor. Ele
alegra-se com o anúncio. Há vagas!
Encontrará, é a chance, o que a ventura propõe,
o que sempre esperou. Já era hora.

Há que se ter entusiasmo, ser verdadeiro,
barba feita, roupa alinhada, um cheiro amadeirado
com notas de pimenta. Ser gente
é o que importa mais, mas não se pode esquecer
as habilidades antigas do vento, da chuva, do fogo...
Também ser como óculos certos para desejos de leitura,
espelho sem ferrugem onde não se vê o tempo passar,
e taça translúcida para vinho tinto, paixão.

Bem... ele assim supôs os requisitos e as importâncias.

Pronto. Fez-se a foto do candidato (sou eu?).
Ela analisou no retrato umas fumaças vazando
pelo olhar (tristeza não era, seriam meus pecados?
ai meu Deus!) No relatório final a recomendação:
é um olhar muito impregnado de constelações,
explosões, esse exagero de fogo poderá,
ela escreveu, ressecar-lhe a visão da mundo real.

Ele (eu?) foi considerado inapto.

28 outubro 2008

Um fio de esmeralda


Existe um planeta sem sol, bonito,
bom de morar, mas precisa de luz.
Vou arrecadar fundos
para mandar fabricar um fio, longo, longo
que ligue este mundo
com aquela beleza escondida.
Um fio de esmeralda.
Vou montar uma usina na bica da quina,
na esquina da casa do mar.
Quando vier qualquer chuva
e a água cair pela bica
a usina vai começar a funcionar.
Depois, quando o vento passar,
vindo do sopro na vela do barco,
do toque na asa da gaivota
e atravessar olhares na janela,
produzirá abundante energia.
Quando a maré subir e descer
dela também vou pegar essa dança
de sentimentos, maresia e saudades
que faz a luz aparecer das coisas.
Depois vou mandar para lá, para longe
pelo fio que se tece de esmeraldas.
(quase disse que se tece de esperança. Titubeio).

Se pensei esse sonho
ou delirei esse pensamento, não sei.
(Terá sido um novo movimento de amor
em velhas e fundas sombras?)

27 outubro 2008

Um suposto conhecimento

Antes da existência
ele acariciava o meu destino
nos olhares, o amor.
Tornei-me, mas sou somente
a irrupção dele num ponto
do chão misterioso.
Dobrei-me sobre o coração e pensei
um pensamento de beleza, bondade.
Espanto. Foi demais para entender...
Veio um suposto conhecimento,
o que é o amor.
O mundo além do mundo,
outro mesmo mundo apesar,
próximo. Do outro lado,
dentro quando se olha,
fora quando se vê.
Com as recordações
o espírito fez meu corpo.
O amor constrói a casa
da alegria para onde eu vou
mudar.

26 outubro 2008

O que passa?


Saber o que fazer ele não sabe.

A tarde que cai como peso,
mais uma vez é que cai.
Talentos, quantos? Muitos. Ousa.
Mas o mundo lhe engole o coração,
na estrada fica uma cratera de muitas agonias,
ou uma única perplexidade com um raio maior
do que o raio azul-dourado do mais belo poema.
A beleza lhe diz o amarelo do girassol, veja;
a água fazendo música na torneira, ouça.
Um fragmento definiria tudo, pressente,
mas o tempo passa, passa e nada,

nada, nada, nada. Sente.

O amor vai, como um trem, leva, carrega
e abre portas, lindas portas por todos os lados.
Quer acreditar. Não sabe se...
O vento do movimento do que passa
– o tempo ou o amor? –
beija-lhe a face, toma-lhe pela mão.
O amor vai, leva, carrega, passa.
Passa... ele balança.

Há muitos que não embarcam.

25 outubro 2008

Luz-água das palavras

Eu ia indo. Então,
decidiram me reiniciar
no mundo da luz.
Me pararam na curva da estrada.

Nada fizeram comigo
a não ser pôr na minha língua
como pitada de sal
umas sílabas,

sílabas-deus,
e me disseram,
Efeta! Hic, hodie!
"Lux, etsi per immundos transeat, non inquinatur".

Vida sedenta,
curva da estrada,
observar que ela toca o rio,
a sede por hoje pode ser saciada.

Vida verbo,
curva da estrada,
hodie, o respiro, a poesia per immundus transeat,
a luz-água das palavras.

(A frase entre aspas é de Santo Agostinho e diz que a luz, mesmo que passe pelos impuros não se polui. Efeta, abre-te. Hic, hodie, aqui, hoje).

23 outubro 2008

O M da minha mãe e o B do meu pai

Gavetas.
Em gavetas? mais do que isso,
em cheiros, cheirinhos puro carinho,
no tempo perdido passado,
tempo vivido e achado
em odores e perfumes,
no tempo pego pelo olfato,
descobri outro dia, feliz,
junto com coisas de mãe, guardados,
minhas primeiras letras e um parabéns
sobre a folha amarelada.
Folhas de papel almaço
unidas por uma fita azul;
na capa um menino desenhado
por detrás de um grande “um”
dizendo: o primeiro ano foi difícil,
mas passei.

Um dia, tudo,
nas origens, horizontes
entre as montanhas,
pequena colônia de imigrantes
com sotaque italiano
aprendendo português.

Gestos em ensaios,
eu lembro bem,
uma mão sobre a outra
a professora, a mãe
ensinando um caminho
que não mais, não, não tem mais fim.
Eu adorava o M maiúsculo da minha mãe
cheio de voltinhas como flores em buquê
e o B do meu pai
como a boléia de um velho F(e)N(e)M(ê).

22 outubro 2008

Desnecessário necessário para viver com mais ternura
(como escrevo poemas)

Num momento qualquer, numa sala de espera;
no vácuo de certos dias e de certos sentimentos;
na sonolência de cansaços, ou de tédios;
no retorcer de esgarçadas paisagens, escrevo.
Estátuas líquidas aparecem do nada e são solidificadas
sobre fibras de longas e dançantes árvores prensadas
ou sobre planas telas brilhantes do mundo em rede.
Falsos moinhos são movidos por ventos duvidosos
que sopram sem rumo, sem propósito, desatino talvez,
definindo cruzamentos, construindo narrativas e aparições
de jardins em geometrias; mas caóticos escritos esconderijos
e armadilhas, jogo antigo não abandonado,
que se joga sem inspiração. Elementos e verbos que se ligam
ou se desfazem, concordam ou não reagem de jeito nenhum.
Jogo permanente, viciado jeito de dizer o desnecessário
necessário para viver com mais ternura.

Noutro momento quem navega em seus próprios dentros
se leva em viagens, sublimes olhos sedentos,
em si mesmos é que vêem a beleza que avistam
no horizonte destas linhas, estátuas enfileiradas, artes brincadas,
monumentos de águas tintas e de nadas, apenas poemas.

(Disse um poeta - penso que o Leminski - qualquer coisa assim: poeta também é quem lê poesia).

21 outubro 2008

Através do deserto comigo
(não me proponho a postar longos textos aqui, mas ai vai uma exceção. Para se ler rápido e em voz alta )
Com carinho dedico aos blogueiros amigos.

Atravessar o deserto, escriba doido,
com gasturas de areia nos pés, entre os dedos,
com suor e o peso de passos longe das caravanas
para escrever em E-pergaminhos.
Querer saber o mistério sabe-se lá de quê.
Não querer mais ver tv,
nem seguir como guias, estrelas
que não tangenciam minhas elipses.
Talvez melhor mesmo seja andar
no silêncio, desgarrado.

Travessia do deserto
sem encontrar tesouros. Ouro?
Estás brincando.
O que fica...
lábios que se oferecem,
promessas. Silêncio. Peregrinação
areias, rochas, no sabor delas mesmas,
enquanto os caravaneiros e rebanhos se deleitam nos oásis
com tâmaras e passas
e cafés de puro perfume.

Atravessado pelo deserto
no silêncio cortado em dois,
em três, em mais, em mil,
ter que se ver cara-cara e enfrentar
o que não se quer ver. Avistamentos
da alma, de eus, de óvnis, de corpos,
câmaras por todos os lados filmando a desgraça,
cortes que se arregaçam em revelações apócrifas,
evangelhos de tão poucas boas notícias.

De través a diária e desertificada escritura,
o silêncio da página, janela,
amplificador de sussurros,
perceber, escriba, afinal,
que tudo não foi senão o efeito de,
doidejo,
gorjeios de pássaros-bússolas
essa pulsão para fora, para o sol, para o grande nada,
o minúsculo tudo, numinoso, apavorador.
Eles, pássaros, criam rastros
marcam as palavras,
migalhas de achados, grãos de significados,
ao mesmo tempo em que os devoram.

Desertar da pretensão da saciação, fome maldita,
me leva, me incita, me excita e decreta
minha sina na ponta dos dedos,
na ponta do lápis,
da caneta ou de qualquer coisa que sangra um sangue
sem nenhuma paga ,
doidejo pleno, êxtase pela metade.