20 fevereiro 2012

Tu te percebes em inquietudes, é nas palavras, é nas letras que elas florescem, no que fico escrevendo no avanço da noite, são minhas eu sei, tu não te acometes delas, as inquietudes a mim assolam, fazem tremer o assoalho da velha casa e me incitam a ser, ah, que cansado às vezes vou de ser este, e quero outros eus para me viver, te dou um exemplo de um outro eu, aquele que tem um barco ancorado ali, barco que perdeu as tintas, tintas de cores que não gosto mais, esse quero ser, e já sou, as inquietudes me escoram, todavia, me amparam ainda, até quando não sei,  de certo modo são elas que me fazem viver, vivo por elas, elas me põem de pé, me fazem andar a despeito do cambalear - mais dos titubeios do que da embriaguez - sim, sim, ainda te amo, acredite, não te agrado sempre minha querida? ainda vou contigo lá onde queres, mesmo que eu não deseje ir, tu sabes, este momento agora meu amor, nessa rua, nesse sol escaldante, o suor me fazendo um vassalo qualquer da ilusão do carnaval, é por amor, na verdade me queria ver no mar, não exatamente no mar senão meus olhos, jogados de cá de uma varanda, tomando um vinho de viagem, é, pois explico, um vinho de viagem, ao raiar do sol da terça-feira de carnaval, vou-me, não me indagues mais que isso, esse outro ainda não sei quem serei, bebemos, mas nem tanto, não é mesmo querida? calma, fica tranqüila, o amor se arranjará em modos de ficar, como já te disse, só quero outros eus para me viver, tudo bem, tudo bem, me explico melhor, só quero outros eus para me viver... e te amar.

05 fevereiro 2012

Ia, não sabia exatamente para onde, talvez para a casa de uma de suas irmãs, uns sete quilômetros, talvez confessasse sua dor à irmã, eram tão unidas, talvez falasse do seu amor, ou não, seguia a estrada sem querer voltar, a tristeza a perseguia desde o dia que partira aquele, empregado risonho, bom trabalhador, vaqueiro destemido, seu pai o despedira, foi-se a pé, uma pequena bolsa de couro jogada nos ombros com uma única peça de roupa, a outra, vestia, a de trabalho, não tão bem lavada, passada às pressas pra secar mais rápido, sem tempo de ficar no varal, viera um dia bater à porta da casa de seu pai pedindo trabalho, avistara-o da janela quando a porteira bateu e viu que um estranho se aproximava, quem será? perguntou-se enquanto cantava uns versinhos, sentiu ali, sentiu, não inventava, sentiu ali que seu destino viria a mudar, mas triste agora caminhava, seus passos queriam fazer os dele, ir aonde ele teria ido, para onde se foi? esperou que ele voltasse e não voltou, passaram os dias, veio uma chuva que se alongou por semanas e ele não apareceu, ela pensava, ele voltará num domingo qualquer, ou num sábado à tarde, para vê-la com a desculpa de que queria rever os amigos, os outros empregados em seus galpões pobres e cheios de outras coisas, arreios, ferragens, as camas cada uma num canto que o pobre escolhesse, seu pai não permitiria que conversassem, mas ela saberia, foi por mim que ele voltou, pensaria exultante de alegria, sofria ele do mesmo mal que ela, o desejo de ver, de estar perto, vieram de novo os dias de muito sol , ele não, nunca mais, mais de mês, e hoje, dia de Santa Inês, ninguém trabalha, seu pai não permite em homenagem à sua santa, estão todos de folga, os empregados no seu galpão, estirados em suas camas com lençóis que precisam das águas do riacho, e ele? Águida segue a estrada, o sol das duas da tarde se distancia de suas dores e faz o mundo todo indiferente, tudo queima na solidão da estrada, os passarinhos cantam aqui e acolá perdidos, Águida pára, olha ao redor, não avista nenhuma casa, o gado se amontoa na sombra fresca perto da mata, então desiste de ir à casa da irmã, tão longe à pé, volta-se e avista alguém que vem à cavalo, teme que seja seu pai.

24 janeiro 2012

Subia, sol escaldante, o pequeno caminho que o levava ao alto do morro onde ia buscar o gado, subia a pé, o pasto já sentia a falta de chuva, e corroia-se de raiva, pois tinha certeza, seu irmão mais velho tinha descoberto onde guardava suas economias, um dinheiro de longo tempo acumulado de pequenos ganhos, um dinheiro pouco que o pai lhe dava e que economizou, pensava numa bicicleta, aquela azul marinho da loja do seu Guilherme, e assim como um pensamento que vem e vai o dinheiro sumiu, seu irmão fez que não sabia, achava-se pelos seus dezoito anos no direito de impor-se sem explicação, dormiam no mesmo quarto, três camas, na parede sobre a cabeceira um quadro de santo para cada um, São Lourenço sobre a sua, o de dezoito sobre o qual caiam suas sérias desconfianças tinha um anjo de asas bem grandes, ele com quinze e o de quatorze com São Roque, este de quatorze lhe tinha muita estima, mas o mais velho desde pequeno gostava de lhe impor sacrifícios e humilhações, nunca de todo conseguia, mas não conseguindo a contento sempre tentava, com as mais inesperadas atitudes, e de nada adiantava reclamar ao pai ou a mãe que não se envolviam com as brigas dos filhos, tantos que tinham, doze, uns já casados e outros ainda moleques, e sabia agora, ele tinha roubado suas economias, decidira vingar-se, haveria de encontrar um jeito, queria matá-lo, mas antes tinha que pensar onde ele poderia ter escondido o dinheiro, os dias passaram e com eles seguiram os pensamentos de nuvens pesadas que não chovem, mormaço e agonia, nas tentativas não encontrara sucesso, procurou por todos os cantos em que o irmão poderia ter escondido o que roubara, o gado desobedecia-lhe, corria para cercá-los e levá-los ao curral, xingava os animais que não lhe obedeciam de imediato, uma das vacas com cria nova exigiu mais cuidado e paciência, acalmou-se um pouco olhando a fragilidade do bezerro, e ao chegar do curral, suado e sujo, em frente de casa no terreiro onde o pai fumava seu  cigarro de palha, o sol abaixava-se em melodias de tristezas no assobio de alguém por perto, viu o irmão, que voltava do lugarejo ali distante uns cinco quilômetros, todo sorridente e pedalando uma bicicleta novinha, exatamente aquela que ele tinha namorado no Armazém do seu Guilherme, comprei pai, economizei um dinheiro e comprei.

20 janeiro 2012

Levantou-se no escuro, a manhã ainda era uma espera de demora, sentia um cheiro no ar, mas não era cheiro do café que sua velha mãe fazia bem antes do sol nascer, levantou-se como se fosse dia de semana, como se fosse para a lida, a noite ainda se expandia sobre o telhado e sobre o milharal, levantou-se devagar para não acordar a mulher, o filho pequeno no berço, sentia um cheiro no ar, passou pela cozinha, a benção mãe, que cheiro é esse? a mãe escolhia feijão, o monte sobre a mesa já dividido pela metade ao lado de uma lamparina com chama fragil, Deus te abençõe, uma flor dessas que soltam no ar seus cheiros à noite, respondeu, foi andando pelo quintal, seguiu pela estradinha até o rio, arrancou a calção que usava, foi entrando aos poucos na água, era fria, mas gostava daquele frio, a noite tinha sido muito quente, de nada adiantara as janelas escancaradas, dormira pouco, ouvia os ruídos do mundo, sapos, ventos, pios de uns pássaros, tristezas e lamentos antigos que ainda reverberavam por aquelas bandas, achegou-se a uma parte mais funda do riacho, abaixou-se e deixou a água limpa, transparente mas coberta ainda pela película da noite na altura da boca, ficou ali, a água entrando e saindo da boca, e pensava, pensava, não queria, resistia o quanto podia, mas iria para a venda ainda pela manhã, não suportaria o domingo sem ir à venda, e se fosse beberia, beberia, beberia, voltaria trôpego para casa, cairia na estrada, como sempre, os filhos?, os filhos rapazes não mais iriam buscá-lo, nem a mulher, talvez a mãe fosse chorar ao seu lado sem forças para levantá-lo, talvez ficasse ali ao seu lado com um terço, um cantil com água, um velho e puído pedaço de pano na mão. Ah, mais um domingo.

11 janeiro 2012

Desânimo?, preguiça?,  vontade de ir-se embora, viver outra vida? não!, aquilo era a vida, a sua vida, também não sabia direito o que queria fazer, só tocar a velha concertina do tio já falecido, isso queria, que ficava no paiol dos arreios, mas agora, agora teria que voltar ao cafezal, abandonar a sombra da árvore, árvore tão boa, tão triste, tão quieta de tantos anos e coisas vistas, uma árvore vê muitas coisas, fica parada e olha todas as direções, tomou as coisas, a peneira, a água, teria que ir, havia muito café a apanhar, o sol escaldava as idéias, mas iria, e já ia, um atrás do outro, seus irmãos, roupas de trabalho todas manchadas e remendadas, pensava demais, pensava na concertina, em música, em ficar no cômodo das selas e arreios, naquela velha cadeira tocando, aprendera observando seu tio, maravilhoso tocador, mas bruto como um cavalo não amansado, jamais ousou pedir umas lições, tinha olho e ouvido para observar, que aprendesse por conta própria, queria ficar tocando, tocando e inventando música, umas letras de amor com português errado, sua professora falava bem português, não tinha mistura de italiano, viera de Vitória. O que faria? Iria para o cafezal, olhou para as mãos duras como couro mal curtido, lembrava enquanto seguia, na mistura de pensamentos, do amigo que fora caçar e matou-se. O que aconteceu ninguém soube, dizem que não queria servir o exército, corria a notícia que alguns rapazes da região que serviam em Vitória já tinham sido enviados para o Rio de Janeiro, já esperavam ordem para embarcar para a Itália, melhor rezar por ele uma ave-maria, mesmo que viesse a se perder na reza, na segunda parte, antes da hora da nossa morte, sempre se perdia quando rezava sozinho, mas devia rezar por ele, os urubus uns dias depois marcaram o local, foi encontrado, tinham sido amigos de escola, sentia pena dele, estava com tudo pronto para o casamento, também ninguém explicava como fora assim decidir casar, nem se sabia que ele estava namorando, ia casar bem novo, com 17. Pensou, à noite, mesmo cansado e com as mãos duras iria tocar, viriam alguns, se sentariam ali, sua mãe, uns irmãos, os mais novos, uns empregados, seu pai ficaria da varanda observando o mundo, e esqueceriam a vida.

30 dezembro 2011

Cansa-se, mas continua a pedalar, segue, levanta a cabeça e vê o nublado da tarde. A volta para casa sem dinheiro torna-se longa, não havia vendido senão uns poucos doces, nada, a festa logo se dissipou depois da missa por causa da chuva, afetou-se de uma tristeza, sem querer, mas não se entregou, recolheu o pouco dinheiro contado mais de uma vez, daria ao pai. A cada vez que somava as poucas notas queria diminuir no peito a distância que o oprimia. Agora, nos pedais da bicicleta, cansava-se de viver, mas não, não desistia, esgotado fazia ainda mais fortes as pernas para pedalar e subir a ladeira na curva da estrada sem descer da bicicleta. Para chegar em casa tinha uns oito quilômetros pela frente. Queria comprar novos sapatos, já se ia em tempo de namoros, estava de olho naquela menina, Mirian. Casaria-se com ela, sabia. Tão linda, mais doce do que linda, tranqüila e tímida. Linda afinal, pois que lindeza é a soma disso tudo e outras coisas, o olhar, o olhar com a cabeça levemente inclinada para frente, as mãos grossas do trabalho na lavoura e brancas como leite, a voz de segredos e de modinhas de amor. Mas ainda não tinha o dinheiro dos sapatos, nem pediria ao pai, tão pouco conseguira na festa, tinha que dar um jeito no único par que possuía, reforçar a sola, engrossar as trincas e rugas com cera preta e então polir, polir, polir com a velha flanela. Chegou ao topo da ladeira, olhou sem muita demora para a estrada triste e solitária que se espichava para trás, mirou adiante e pensou, 1954 vai ser um ano melhor.

21 dezembro 2011

Ela se levantou e foi à janela, nada queria dizer, mas disse, entre a obrigação e o costume, você devia ter me ligado. Olhava para um jardim que ainda era bonito, mas já se percebia a falta de uma mão cuidadosa. Aquela frase, você devia ter me ligado, já era uma frase perdida, se ele tivesse ligado ou não, não fazia mais a menor diferença. Ia seguindo com aquilo, a vida, a vida, a vida ia, um teatro, uma invenção que se encarna em dores cotidianas das quais ainda era incapaz de se desvencilhar. O sonho, ah, aquela história de viver os sonhos... Então se imaginou num grande teatro, a peça retratava a vida e a decadência de uma importante família, ela suavemente virou-se para ele, deu-lhe seus olhos, os mais verdadeiros que podia representar, amor é o que marejava em cada brilho fosco do olhar, e disse novamente sem dar importância às explicações, mas você devia ter ligado. Ao dizer-lhe assim a frase percebeu que tinha engolido o me. Ninguém haverá de perceber, disse para si mesma, e este pensamento deu-lhe no desempenho do papel um ar mais humano, denso, complexo. Ao mesmo tempo, para coroar a cena, imaginou como fundo musical eu sei que vou te amar, ao piano.

20 dezembro 2011

Uma onda vem com uma instantânea abundância de alegrias, pequenos intensos contentamentos, um flash de momentos que apresentam gentis, amáveis pedidos. Um carro segue pela estrada empoeirada, numa tarde que ia chover e não choveu, tarde temperada de um frescor no ar e uma amiga luz no céu. Pintou-se o tempo, num instante, num arco-iris de resquícios de coisas da vida. Que boa sensação, sensação de viver, sensação de que a beleza que se escondia, sorridente se apresenta agora nos eventos mais ordinários, numa estrada que faz suas curvas no coração, num carro que levanta as poeiras dos dias, uma estrada qualquer, um carro indo embora, feliz. Ali, nos campos por onde o carro passa, vai um cavalo solto em disparada. Um menino corre também, rindo, rindo, rindo, e quando o carro passa ele acena e continua correndo como se ele e o cavalo e o campo e a estrada e o carro constituíssem a dança, a dança que desdobra a dor, que explica o caminho da estrela. 

19 dezembro 2011

Era um nada que estava ali por detrás dos olhos, por entre as folgas do pulmão em cada respiro, um nada, como um grito depois do último eco, quando se olha as montanhas sozinho e nem se tem vontade de ir, nem de falar, nem de cantar, nem de assoviar, nem de sentar, nem de ficar de pé. Olha-se apenas, e alguma coisa estabelecida na alma impede até um pequeno volver do pescoço ou do globo ocular. O olhar cancela-se de sua inquieta dança entre aqui e acolá e fixo chora, seco, chora, sem piscar. Então se ouviu um chamado, um insistente chamado, o cão latindo, latindo como se visse ali um perigo. Era humano o perigo de tornar-se outro, nascia-se no silêncio.

09 dezembro 2011

dizer umas palavras. Ninguém prestava muita atenção, mas havia ali um desejo de dizer. O som, as luzes, as pessoas ocupavam todos os lugares. Queria dizer riacho com areias brancas e águas transparentes, mas não, não disse isso, apenas sorriu timidamente, e deu-lhe o bilhete. Na verdade me contaram depois que ali estava escrito: tenho muitas cismas na mente, e receios no coração, e um titubeio na voz... mas escrevo: te amo