Cansa-se, mas continua a pedalar, segue, levanta a cabeça e vê o nublado da tarde. A volta para casa sem dinheiro torna-se longa, não havia vendido senão uns poucos doces, nada, a festa logo se dissipou depois da missa por causa da chuva, afetou-se de uma tristeza, sem querer, mas não se entregou, recolheu o pouco dinheiro contado mais de uma vez, daria ao pai. A cada vez que somava as poucas notas queria diminuir no peito a distância que o oprimia. Agora, nos pedais da bicicleta, cansava-se de viver, mas não, não desistia, esgotado fazia ainda mais fortes as pernas para pedalar e subir a ladeira na curva da estrada sem descer da bicicleta. Para chegar em casa tinha uns oito quilômetros pela frente. Queria comprar novos sapatos, já se ia em tempo de namoros, estava de olho naquela menina, Mirian. Casaria-se com ela, sabia. Tão linda, mais doce do que linda, tranqüila e tímida. Linda afinal, pois que lindeza é a soma disso tudo e outras coisas, o olhar, o olhar com a cabeça levemente inclinada para frente, as mãos grossas do trabalho na lavoura e brancas como leite, a voz de segredos e de modinhas de amor. Mas ainda não tinha o dinheiro dos sapatos, nem pediria ao pai, tão pouco conseguira na festa, tinha que dar um jeito no único par que possuía, reforçar a sola, engrossar as trincas e rugas com cera preta e então polir, polir, polir com a velha flanela. Chegou ao topo da ladeira, olhou sem muita demora para a estrada triste e solitária que se espichava para trás, mirou adiante e pensou, 1954 vai ser um ano melhor.
30 dezembro 2011
21 dezembro 2011
Ela se levantou e foi à janela, nada queria dizer, mas disse, entre a obrigação e o costume, você devia ter me ligado. Olhava para um jardim que ainda era bonito, mas já se percebia a falta de uma mão cuidadosa. Aquela frase, você devia ter me ligado, já era uma frase perdida, se ele tivesse ligado ou não, não fazia mais a menor diferença. Ia seguindo com aquilo, a vida, a vida, a vida ia, um teatro, uma invenção que se encarna em dores cotidianas das quais ainda era incapaz de se desvencilhar. O sonho, ah, aquela história de viver os sonhos... Então se imaginou num grande teatro, a peça retratava a vida e a decadência de uma importante família, ela suavemente virou-se para ele, deu-lhe seus olhos, os mais verdadeiros que podia representar, amor é o que marejava em cada brilho fosco do olhar, e disse novamente sem dar importância às explicações, mas você devia ter ligado. Ao dizer-lhe assim a frase percebeu que tinha engolido o me. Ninguém haverá de perceber, disse para si mesma, e este pensamento deu-lhe no desempenho do papel um ar mais humano, denso, complexo. Ao mesmo tempo, para coroar a cena, imaginou como fundo musical eu sei que vou te amar, ao piano.
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Dauri Batisti
20 dezembro 2011
Uma onda vem com uma instantânea abundância de alegrias, pequenos intensos contentamentos, um flash de momentos que apresentam gentis, amáveis pedidos. Um carro segue pela estrada empoeirada, numa tarde que ia chover e não choveu, tarde temperada de um frescor no ar e uma amiga luz no céu. Pintou-se o tempo, num instante, num arco-iris de resquícios de coisas da vida. Que boa sensação, sensação de viver, sensação de que a beleza que se escondia, sorridente se apresenta agora nos eventos mais ordinários, numa estrada que faz suas curvas no coração, num carro que levanta as poeiras dos dias, uma estrada qualquer, um carro indo embora, feliz. Ali, nos campos por onde o carro passa, vai um cavalo solto em disparada. Um menino corre também, rindo, rindo, rindo, e quando o carro passa ele acena e continua correndo como se ele e o cavalo e o campo e a estrada e o carro constituíssem a dança, a dança que desdobra a dor, que explica o caminho da estrela.
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Dauri Batisti
19 dezembro 2011
Era um nada que estava ali por detrás dos olhos, por entre as folgas do pulmão em cada respiro, um nada, como um grito depois do último eco, quando se olha as montanhas sozinho e nem se tem vontade de ir, nem de falar, nem de cantar, nem de assoviar, nem de sentar, nem de ficar de pé. Olha-se apenas, e alguma coisa estabelecida na alma impede até um pequeno volver do pescoço ou do globo ocular. O olhar cancela-se de sua inquieta dança entre aqui e acolá e fixo chora, seco, chora, sem piscar. Então se ouviu um chamado, um insistente chamado, o cão latindo, latindo como se visse ali um perigo. Era humano o perigo de tornar-se outro, nascia-se no silêncio.
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Dauri Batisti
09 dezembro 2011
dizer umas palavras. Ninguém prestava muita atenção, mas havia ali um desejo de dizer. O som, as luzes, as pessoas ocupavam todos os lugares. Queria dizer riacho com areias brancas e águas transparentes, mas não, não disse isso, apenas sorriu timidamente, e deu-lhe o bilhete. Na verdade me contaram depois que ali estava escrito: tenho muitas cismas na mente, e receios no coração, e um titubeio na voz... mas escrevo: te amo
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Dauri Batisti
18 novembro 2011
luto, tristezas e uma certa paz
Quem desejar pode me acompanhar nesse exercício ( acho que exercício espiritual) em que vou me deixando falar sobre o luto, clicando aqui no Lados multiplicados.
Quem desejar pode me acompanhar nesse exercício ( acho que exercício espiritual) em que vou me deixando falar sobre o luto, clicando aqui no Lados multiplicados.
Desnorteadas tentativas - 3
Foi num outro dia que nem sei qual, dois ou três depois do nosso último encontro, que ele, meu pai, reapareceu. Ele, acredito, tivesse alguma intenção em me dar aquele tempo de solidão. Deu-me um tempo de dor de solidão não por ausência de vivos, mas pela ausência de mortos. Eles cessaram seus ruídos, perguntei-me acerca dos motivos e nada encontrei como resposta. Na verdade sofri de solidão rodeado de pessoas, destituído abruptamente dos ruídos como mensagens, deles sentia falta, da sutileza de suas palavras, pequenos movimentos no revés das coisas. É bom que se diga, contudo, antes que esta história, este conto ganhe outras conotações, que eles, os mortos, não vem falar dentro do meu coração, não falo de alocução interior, falo de movimentos e sons aleatórios do mundo que são tomados por eles como palavras para suas frases, língua que eu não entendo, mas que são modos de dizer coisas dos mundos. Eles falam, eu ouço e não entendo, invento sentidos, dou-me ao trabalho de traduzir barulhos em pequenos poemas que logo esqueço, pois que não os registro, mas o que importa é saber que algo acontece entre nós, somos presença uns para os outros. Bem, ele apareceu, é isso o que eu ia dizendo.
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Dauri Batisti
16 novembro 2011
Desnorteadas tentativas ( título provisório) - 2
E ali, no seu desaparecimento fiquei, e ouvi o que era possível ouvir, um ruído aqui, outro ali, enquanto as horas silenciosas e frias passavam lentas, levantei-me fechei a janela e fui para a cama, a porta levemente empurrada não fechou, ficou a um palmo do batente e por aquela abertura jorrava uma pequena e muda cachoeira de luz vinda do abajur acesso na sala, o sono não veio logo, os olhos fechados e apertados repetiam-se autonomamente na construção de cenários, rostos, palavras, desnorteadas tentativas de aliviar o peso do dia, ou modos de impor-lhe, mesmo sem querer, uma outra carga. E então, a tentativa de aquietar-se e dormir foi rompida, a porta ia e vinha pacientemente fazendo tinir a lingüeta da maçaneta no batente, mas sem força suficiente para fechá-la, favorecendo assim com seu ruído a construção de todo um mundo, que é de onde vem estes contos que te conto. Pensei se não seria ele que voltava, talvez lá os mortos não tivessem noites, nem cansaços, nem sono, nem necessidades de refazer-se para as lutas, e a porta ia e vinha com aquele movimento insistente de dizer o que eu nunca seria capaz de decifrar, sílabas incompreensíveis, formação repetida de uma única e breve palavra. Levantei, tomei uma sandália de borracha e ali coloquei, respeitava assim a vinda dele naquela cachoeira muda de pouca luz se ele quisesse voltar, e forçá-lo-ia a dizer na língua dos vivos o que ia me dizendo com aquele bater frágil de porta. Voltei para a cama e então foi a porta do banheiro que começou a falar com um singelo e sonoro e lento e macio e doce e incompreensível ruído. Então compreendi, ele me queria ajudar a dormir. Adormeci
E ali, no seu desaparecimento fiquei, e ouvi o que era possível ouvir, um ruído aqui, outro ali, enquanto as horas silenciosas e frias passavam lentas, levantei-me fechei a janela e fui para a cama, a porta levemente empurrada não fechou, ficou a um palmo do batente e por aquela abertura jorrava uma pequena e muda cachoeira de luz vinda do abajur acesso na sala, o sono não veio logo, os olhos fechados e apertados repetiam-se autonomamente na construção de cenários, rostos, palavras, desnorteadas tentativas de aliviar o peso do dia, ou modos de impor-lhe, mesmo sem querer, uma outra carga. E então, a tentativa de aquietar-se e dormir foi rompida, a porta ia e vinha pacientemente fazendo tinir a lingüeta da maçaneta no batente, mas sem força suficiente para fechá-la, favorecendo assim com seu ruído a construção de todo um mundo, que é de onde vem estes contos que te conto. Pensei se não seria ele que voltava, talvez lá os mortos não tivessem noites, nem cansaços, nem sono, nem necessidades de refazer-se para as lutas, e a porta ia e vinha com aquele movimento insistente de dizer o que eu nunca seria capaz de decifrar, sílabas incompreensíveis, formação repetida de uma única e breve palavra. Levantei, tomei uma sandália de borracha e ali coloquei, respeitava assim a vinda dele naquela cachoeira muda de pouca luz se ele quisesse voltar, e forçá-lo-ia a dizer na língua dos vivos o que ia me dizendo com aquele bater frágil de porta. Voltei para a cama e então foi a porta do banheiro que começou a falar com um singelo e sonoro e lento e macio e doce e incompreensível ruído. Então compreendi, ele me queria ajudar a dormir. Adormeci
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Dauri Batisti
14 novembro 2011
Desnorteadas tentativas - 1
O tempo é uma estrada pequena, ele foi dizendo sem desviar o olhar do vão da janela como se a janela fosse o nicho de um santo de devoção, tinha o olhar de quem já morrera, mas era vivo, estava tão vivo e eu tão apagado de cansaços e cenários nublados, como os mortos podem estar aqui?, morreu a mais de trinta anos, pensei, mas me consolei com sua presença, tanto tempo sem vê-lo, e ali estava ele, era bom vê-lo ao meu lado, ali, solidário, como se sentisse o que eu sentia, sua voz naquela frase era tão confortante, como quando um pai ensina um filho a andar de bicicleta, ele olhava pelo vão da mesma janela, e eu perguntava-me se nossos olhares se influenciavam de uma mesma luz, ele olhava lá fora, lá fora ele e eu enxergávamos, ou apenas mirávamos um ponto, aquele ponto bem no verde da colina em frente, o ponto que coincidia com a velha mangueira perdida no pasto, árvore boa estendedora de sombra amiga em que, em dias como este, o gado se achega assim de manso ao alcançar a tarde o meio do seu curso, algo imprecisamente em torno das belezas e tristezas das horas da tarde, ele dizia, olhando a árvore gasta por tantos olhares, o tempo é uma estrada curta que pensamos grande, e fiquei atravessado de espadas, um punhal de gumes finíssimos, sentíamos a mesma ausência, os dias se tinham ido tão rápido, mas era como se os dias passados se constituíssem num único dia, tão perto estava o adeus, a despedida, a ultima palavra balbuciada com brisas e suaves movimentos dos lábios. Quando tornei a olhar para dizer, pai!, já ele não estava ali, nem nunca estivera, algo em mim criara-lhe a forma, dera-lhe a palavra, o olhar, tudo era meu, era minha a janela que dava para o escuro da noite.
O tempo é uma estrada pequena, ele foi dizendo sem desviar o olhar do vão da janela como se a janela fosse o nicho de um santo de devoção, tinha o olhar de quem já morrera, mas era vivo, estava tão vivo e eu tão apagado de cansaços e cenários nublados, como os mortos podem estar aqui?, morreu a mais de trinta anos, pensei, mas me consolei com sua presença, tanto tempo sem vê-lo, e ali estava ele, era bom vê-lo ao meu lado, ali, solidário, como se sentisse o que eu sentia, sua voz naquela frase era tão confortante, como quando um pai ensina um filho a andar de bicicleta, ele olhava pelo vão da mesma janela, e eu perguntava-me se nossos olhares se influenciavam de uma mesma luz, ele olhava lá fora, lá fora ele e eu enxergávamos, ou apenas mirávamos um ponto, aquele ponto bem no verde da colina em frente, o ponto que coincidia com a velha mangueira perdida no pasto, árvore boa estendedora de sombra amiga em que, em dias como este, o gado se achega assim de manso ao alcançar a tarde o meio do seu curso, algo imprecisamente em torno das belezas e tristezas das horas da tarde, ele dizia, olhando a árvore gasta por tantos olhares, o tempo é uma estrada curta que pensamos grande, e fiquei atravessado de espadas, um punhal de gumes finíssimos, sentíamos a mesma ausência, os dias se tinham ido tão rápido, mas era como se os dias passados se constituíssem num único dia, tão perto estava o adeus, a despedida, a ultima palavra balbuciada com brisas e suaves movimentos dos lábios. Quando tornei a olhar para dizer, pai!, já ele não estava ali, nem nunca estivera, algo em mim criara-lhe a forma, dera-lhe a palavra, o olhar, tudo era meu, era minha a janela que dava para o escuro da noite.
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Dauri Batisti
11 novembro 2011
05 novembro 2011
Ao abraçar minha mãe
- arcano do céu desvendado em amor cotidiano -
senti na sua pele branca de mãe italiana,
vindo do interior do seu coração,
o bálsamo indescritivelmente bom
de salas com tetos altos, janelas amplas,
portas abertas, acolhida certa,
horta orvalhada, montanhas altivas...
... e lembrei,
forçado por movimentos agradáveis no peito,
do interior do Estado do Espírito Santo
de onde migramos nos anos setenta.
Vitória, ó cidade de Vitória!
Uma das mais lindas do Brasil.
Tu és agradável aos olhos como uma visão de mãe,
mas o interior, o interior do Espírito Santo,
ah, o interior...
... é Deus.
- arcano do céu desvendado em amor cotidiano -
senti na sua pele branca de mãe italiana,
vindo do interior do seu coração,
o bálsamo indescritivelmente bom
de salas com tetos altos, janelas amplas,
portas abertas, acolhida certa,
horta orvalhada, montanhas altivas...
... e lembrei,
forçado por movimentos agradáveis no peito,
do interior do Estado do Espírito Santo
de onde migramos nos anos setenta.
Vitória, ó cidade de Vitória!
Uma das mais lindas do Brasil.
Tu és agradável aos olhos como uma visão de mãe,
mas o interior, o interior do Espírito Santo,
ah, o interior...
... é Deus.
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Dauri Batisti
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