Inesperado sol
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O ar bom resvalado no superfície macia da baía vinha-lhe às narinas como uma confirmação dos caminhos que devia seguir, caminhos, hodós, 'odós, a mente povoava-se de traços cruzados, idéias de outros tempos, vinha-lhe à mente as aulas de grego no seminário, hodós, as letras gregas tão bonitas, gostava de desenhá-las em seus cadernos, inventava palavras simplesmente trocando do português as letras por correspondentes do alfabeto grego, 'odós, caminho, jornada, o caminho seria o do mar, deixar o sacerdócio, limite que se oferece, que se entrega, que se dá zombeteiro, como a loucura se avizinha do artista, como a morte se avizinha de quem vive, a cada um o limite se entrega de um jeito, sem escapatória, não, não, não seria o limite do sacerdócio o seu abandono, não, qual seria?, não sabia, rebatia-se a si mesmo, a decisão, decidira, vinha de um bom tempo de muitos pensamentos e agora ela chegava, deixar o sacerdócio, deixar e tomar o caminho do mar, ser pescador, velho sonho, velho desejo, quem sabe até comprar um barco de pesca, contratar uns homens, ganhar a vida com o próprio negócio, beira de praia, não faz mal que se deixe, se o caminho da gente vai pro mar, cantava em pensamento, o olhar cadenciava-se aqui e ali pela estrada pelo tilintar das chaves nos silêncios, muitos olhares, de cada um ali, estavam lado a lado, mas emergiam do mar das vozes caladas em olhares, as vozes de cada um condensavam-se em olhares, o padre olhou o portão da velha siderúrgica e já se abandonava de pensar sua decisão, cansado de escrever as mesmas frases nos cadernos volumosos dos pensamentos, pronto, estava decidido, a guarita abandonada, a caixa d'água parecia ainda mais alta, a água mais abundante escorrendo, que desperdício!, mas que bonito!, o ar bom soprava um aroma azul de satisfação, de liberdade, de vida sem dor, sentiu-se leve, sentiu-se bem, como em viagem que se quer muito fazer, como dia de folga no verão, respirou fundo, queria parar ali e ir andando devagar, dono de si mesmo, nômade nos rumos, mas Dona Estelita o aguardava, sabia disso, sabia que ela o esperaria, conhecia de anos aquela boa mulher, exerceria com amor aquela visita, seria a sua despedida do ministério, era grato a Deus por isto, ressuscitaria com ela, se aqueles forem de fato seus últimos respiros ressuscitaria com ela, marcaria os sinais sagrados com a mão bem untada sobre sua fronte, em cada mão, nas conchas aveludadas de suas mãos, em gestos lentos, demorados de carinho, diria as palavras com carinho, ficaria possesso de ternura, ganhara isso da vida como padre, enternecia-se com os pobres, os doentes, as crianças, por esta santa unção o Senhor venha em seu auxílio, ficaria com ela no escuro até que fosse possível, acenderia a vela, seguraria a vela na sua mão, a vela brilharia para os dois, pavio miúdo para escuridão grande mas pavio acesso, não permitiria que se apagasse, apagaria a vela depois em silêncio, cruzaria aquelas mãos de mãe, mãe mesmo e apesar de não ter gerado filho, bondosas mãos em pouso de ave sobre o peito estático, sobre árvore despedida de folhas, sobre o coração pleno, parado, realizado, ungiria-se ao mesmo tempo do óleo do amor na decisão, teria a alma leve, os pés colocados nos passos de um tempo diferente, para o que der e vier, passos resgatados das inúmeras possibilidades deixadas para trás, por onde andaria agora se não tivesse tomado o caminho do seminário aquele dia?, passos como coisas guardadas que se redescobre novas, não faz mal que se deixe, se o caminho da gente vai para o amor.