11 janeiro 2011

Inesperado sol

32

As pessoas estavam ali em número bem maior do que pudesse imaginar num baile tão apressadamente organizado; as notícias de fato corriam rápido, não podia vacilar e nem podia esquecer sua condição. Cumprimentou os que por ele passavam, dispensou as gentilezas exageradas posicionando-se entre a firmeza e a simpatia e dirigiu-se ao balcão. Encostou-se, pediu sua cerveja e ficou de guarda das feições e movimentos de todos. A senhora do bar parecia outra, tinha remoçado pela maquiagem e pelos cabelos bem cuidados e os olhos pareciam mais vívidos, mas ainda assim ela escondia, ou tentava, nos entrecantos da voz, dos gestos, uma inquietude. Seu marido era da estiva, ele mesmo o disse na apresentação breve, com olhar oblíquo, a postura vulnerável de algum modo, apesar de acintosamente forte. É que a presença do gerente impunha ao homem uma postura, um controle de si mesmo, sabe-se lá qual, que deixava à mostra suas profusas ramas na maneira de esfregar aquele pano no balcão, um vaivém nervoso, não nervoso propriamente, mas exagerado nos intentos de limpar aquela superfície que não carecia mais de limpeza, a dar sinais de longas e ramificadas raízes subterrâneas.

10 janeiro 2011

Inesperado sol

31

Bem que poderia ter um paletó para ir ao baile, não tinha, mas cairia-lhe adequadamente a jaqueta ainda nova de couro marron escuro que trouxera na fuga junto com algumas outras básicas peças de roupa. Chovia e a peça lhe seria a solução para não chegar em mangas de camisa. A librina tinha se transformado em chuva, não das fortes, mas constante, e a temperatura já era bem amena, quase fria. Olhou-se no espelho e a lembrança levou-o outra vez para a casa da chácara; fora educado nas elegâncias, por assim dizer, pelas meninas de dona Irene; elas, que bem conheciam a transformação do moleque em homem feito, entre risos e trejeitos destituídos de timidez, davam as dicas, nem sempre acertadas, do que poderia ou não agradar aos olhos femininos, estas coisas do que falar, o que valorizar, que cheiro usar. Refinou-se no próprio charme com elas. Na verdade, além do que aprendeu destas etiquetas, de como se vestir, teve delas também como herança uma parte de alma, tinha um quê de feminino no modo de ver o mundo, sem perder contudo sua fama, e talvez isso explicasse seu sucesso com as mulheres, aquele rio de virilidade sem ostentação com um veio sinuoso de delicadeza. Perguntava-se ali olhando-se nos olhos o porquê de estar assim nesses momentos com a lembrança tão aguçada para a chácara. Queria lembrar-se de sua Rosimara, recriminava-se, mas a recriminação perdia convicção, era um esforço, uma lição disinteressante, sem nenhuma chance de ser assimilada, enquanto as outras, estas da casa da chácara, vinham aos borbotões.

09 janeiro 2011

Inesperado sol

30

Aquela casa com seus silêncios ofereceu-se sem resistência em suas portas e recantos como assim se oferecia a casa da chácara nos limites da cidade onde se cruzavam muros e cercas, milharais e oficinas de marcenaria. Ali, logo depois da ultima casa da rua, depois dos últimos paralepípedos, um longo muro e um portão imponente bem trancado, lá dentro, pelas poucas frestas, se via, ao fundo de uma alameda ladeada por mangueiras antigas, uma casa linda, grande, de paredes amarelinhas e janelas azuis. Ali, ainda bem novo, com seus doze, mas suficientemente esperto e pronto para os negócios, sabia muito bem oferecer favores à dona Irene. Lembrava seu passado em sua distante cidade enquanto vasculhava a casa do gerente, procurando portas trancadas ou gavetas, sem descobrir nada. Dona Irene o tinha por moleque protegido desde quando, por esperteza, ele se infiltrara pela chácara para catar mangas, com cara de ingênuo, mas cujo propósito mesmo já bem antes definito era se avizinhar da intimidade daquele sítio onde decerto encontraria algo que lhe fosse do interesse. Tornou-se enfim moleque de confiança da dona da casa, levava e trazia recados para homens importantes na cidade, prestava-se com muita solicitude a fazer favores para as meninas de dona Irene, estava sempre pronto. Sempre depois das aulas se arranjava bem em desculpas para se desvincular dos outros meninos e sorrateiramente ir até a chácara. Passava voando pelas ruas com sua bicicleta, ninguém se dava conta dos seus movimentos e dos traçados que fazia pelas ruas, não repetindo rotineiramente o mesmo percurso e chegando como um anjo que do nada aparece e do nada some. Logo que se sentiu aceito, depois das broncas nas primeiras investidas sobre as mangueiras com pedradas, ou balanções em seus galhos, trepado a ponto de cair, ponto de observação mais apropriado a olhar pelas janelas do segundo pavimento, as mais misteriosas janelas, seus interesses libidinosos insistentemente vazavam em meios-sorrisos, olhares dúbios, meiguice tímida. Não resistiram, caíram-se de cuidados e mimos para com o menino, tornou-se homem. Tornou-se homem frequentando a casa e ao encontrar sua Rosimara se empenhou duramente, como um estoico, a fazer outros passos que não aqueles habituados com os rumos, muitos, que dariam na chácara.

08 janeiro 2011

Inesperado sol

29

Os dias então se sucederam mais rápidamente do que sua dor vinha permitindo desde o acidente e morte da esposa. Ao fim da tarde de sábado voltou do trabalho para a dita casa do gerente, librinava. Quanto mais caia-lhe a ingrata sensação de estar fazendo o que nunca faria, de meter-se em coisas alheias, mais persistente apesar de vagarosa se tornava sua vontade de trabalhar. Esta, a vontade de trabalhar, parecia suceder aquela, a vontade de fugir, fugir para um lugar bem longe, lá onde as lembranças, árvores sem frutos, não estenderiam suas sombras. Mas elas iam, iam, sombras lânguidas, mansas, sorrateiras, e chegavam sempre, infelizmente, marcas arroxeadas que surgem tarde, mas surgem, em carne magoada. Na hora do almoço já tinha determinado a uma das mulheres que cuidasse de umas peças de roupa que usaria à noite no baile que alguns, rapidamente, já haviam organizado e que aconteceria no salão do bar. Seria a personagem principal da festa e não poderia faltar, mas agora a librina que caía era um bom convite para o recolhimento e um sono pesado. O cansaço do trabalho dava-lhe este ganho indireto, mas valioso, dormir como uma pedra, sem sonhos, sem sobressaltos, sem cenas que reapareciam do nada em sua mente como se fossem reais de tão vívidas. Mas teria que ir ao baile, ainda poderia tomar um banho, relaxar por umas horas, sondar talvez portas e gavetas com aquelas chaves.
Inesperado sol

28

Os dias que se seguiram foram marcados por muito trabalho, não só do gerente, mas do comprador de ferro-velho e dos homens do bar. Foram vendidas as ferragens abandonadas pelas áreas livres do parque industrial, o desleixo tinha prevalecido naqueles que então conduziam os negócios por aquelas bandas, relaxo que se associou depois, no seguir dos anos, à força poderosa e rápida do abandono. Ferragens foram recolhidas desde o portão de entrada até a porta do escritório, a aparência do lugar ia se modificando a cada dia, o gramado cheio de mato e de carcaças de carros, peças de ferro e maquinários inutilizáveis por onde pastavam aquelas poucas cabeças de gado parecia agora mais plano e verde. Mesmo que o trabalho de quase uma semana tivesse já possibilitado uma nova feição para o lugar havia ainda muito ferro-velho espalhado pelas redondezas, aquele ar de tristeza, de nostalgia, ainda era forte, mas já outro espírito se infiltrava por ali. O preço combinado favorecia o comprador mas ainda mais o senhor gerente tinha lucros, recebia em dinheiro a cada dia e se mostrava seguro e determinado nas suas ordens. Os homens com suas diárias, o gerente era generoso, tornavam o bar no fim do dia um salão de festas com um vozerio animado e muitas gargalhadas, as esperanças se renovam facilmente. O tempo todo o senhor gerente estava por ali com os trabalhadores, conferindo o que se recolhia e, especialmente, o que se falava. Ocupava com destreza um lugar entre amigo e chefe, mantendo-se sempre a uma certa distância afetiva de todos, o que, imaginava, determinaria a visibilidade do seu amor pelo trabalho, o respeito por seus comandados e a segurança de sua autoridade.

07 janeiro 2011

Inesperado sol

27

Ficou ali por horas com aqueles papéis, só então lembrou do molho de chaves que recebera logo que chegara e, decerto, seria muito mais importante procurar portas e gavetas que se pudessem abrir com aquelas chaves do que folhear velhos livros, pastas, etc. Neste momento gritaram por ele da porta do prédio, era um dos homens com os quais tinha feito a reunião no bar, trazia possivelmente o comprador de ferro-velho, foi isto que concluiu ao avistar lá de cima do segundo andar um homem com marcas de quem lidava com ferrugens e asperezas, o que ficava evidente no olhar e num par de luvas grossas que trazia na mão direita. Reparou a paisagem, o cais no azul da manhã, um certo aperto no coração com o qual lutava uma luta sem elegância, sem regras, e titubeou levemente nas decisões que ia tomando. Fez sinal para que esperassem, logo desceria, mas rápido voltou à janela e pediu que subissem, achou melhor sentar-se na cadeira do gerente, impor uma certa distância, se proteger com aquela pesada mesa, impor a autoridade que o outro esperaria. A desordem da sala teria também um efeito bom sobre o homem, angariaria credibilidade tanto do comprador de ferro-velho quanto do que o trazia e que diria aos outros as notícias que logo se espalharia por toda a vila, precisava disso, de que o novo gerente estava de fato empenhado em colocar tudo de novo em funcionamento.

06 janeiro 2011

Inesperado sol

26

No escritório, enquanto manuseava pastas e pastas sem saber o que procurava, o contato com aquela senhora determinava-lhe idas e vindas, caminhos possíveis e outros entendimentos. Algumas pastas guardava nos armários de onde as tirava, outras jogava num canto, as que estavam mais corroídas pelo tempo e pelas brocas. Quem chegasse à porta e o visse ali envolvido com aquela papelada logo comprovaria seu real interesse em colocar em andamento com responsabilidade e muito empenho sua gerência, ficariam admirados, mas o que ele fazia era somente oferecer a si mesmo a idéia de que trabalhava, precisava disso. Ela nao lhe dera maiores informações exatamente por supor que ele já as tivesse recebido quando da aceitação da função. O fato de ser chamado o tempo todo e por todos de senhor gerente levou-o a conclusão de que não sabiam do tal gerente nada além de que um novo viria para administrar aquelas instalações. Não haveria mais de se preocupar em saber o nome do verdadeiro gerente, qualquer nome que ele usasse seria bem aceito, até o próprio, mas na atual situação melhor mesmo era continuar simplesmente como o senhor gerente.

05 janeiro 2011

Inesperado sol

25

Sem saber exatamente o que dizer além da resposta ao bom dia da senhora e já de imediato pensando que ela seria uma empregada, se bem que se ia muito avançada nos anos para dar conta de serviços domésticos, e nem tinha estado entre as outras que cuidaram da casa no dia anterior e com as quais cruzara quando chegara, ele postou-se de pé diante da mesa demonstrando tranquilidade, apesar de em seus espaços correrem cavalos assustados, aves batendo asas em voos imprevistos. Olhou para um lado e para o outro, procurava café, mais procurava um tempinho pra organizar os pensamentos, lembrou que não fugiria mais, que era o gerente, via que o fogão no canto da espaçosa cozinha estava frio, com umas panelas cobertas com um pano, a comida deixada pelas mulheres na véspera, que ele não tocou. De lógico era só ter pensado antes, que se não havia cheiro nenhum na cozinha que indicasse uma presença, cheiro de café, cheiro de pão, de frituras, nada ainda havia sido feito e aquela senhora não estava ali para servi-lo. Gostava de acordar antes do sol nascer, gostava de presenciar o dia se abrindo de manhã. Uma tênue luz entrava pelos vidros da janela. Não sabia onde estava, em que parede, o interruptor. Onde se acende as lâmpadas, perguntou, e a senhora levantou-se sem pressa, foi até a parede esquerda ao lado da porta por onde ele havia chegado e acendeu a lâmpada. Mas não haveria mais necessidade da lâmpada, havia luz suficiente no ambiente, luz macia, descansada, leve. O estalo do botão foi maior do que devia ser, como se o desuso tivesse aumentado a pressão do interruptor. Sentando-se novamente no mesmo local a velha senhora articulou-se em modos mais doces sem conseguir e dirigiu-lhe a palavra. Mas o que dizia soava-lhe estranho, como voz de cartomante, benzedeira, ou algo assim. Sente-se por favor. As palavras que vieram depois ele não ouviu. Por favor, repita o que a senhora disse. Não é mais necessario, ela respondeu, tenho isto e é ao senhor que devo entregar, cumpro minhas obrigações. Estendeu a mão e deu-lhe o papel envolto no lencinho xadrez.

03 janeiro 2011

Inesperado sol

24

A mulher pigarreou enquanto empurrava a porta dos fundos e que dava num pequeno hall onde ficavam umas caixas de legumes vazias, uns latões e coisas do tipo como se fosse uma casa de fazenda, e se ia por ali até a cozinha, onde ela, enxergando muito bem com os seus tatos e os costumes com aquelas partes da casa, se assentou. Esperaria ali com as duas mãos descansando sobre a mesa ao modo de rezar, sem rezar, guardando aquele pequeno papel dobrado, um papel de embrulho que ela cuidadosamente envolvera com um lenço de xadrez apagado, um tecido que teria sido outra coisa antes de lenço talvez. Quando ele, o suposto gerente chegou à cozinha, a luz do sol ia longe de se esparramar majestosa por todos os lugares e recantos daquele mundo, a noite largava ainda grandes e pesados fardos das suas nuvens sobre as coisas. Assustou-se o senhor suposto gerente. Assim acontecera. Matou a mulher pensando que era um ladrão no escuro quando ao ouvir um barulho, alto da noite, apoiando-se em coragem no revolver do qual se orgulhava e mostrava aos amigos, empunhou-o e foi sem acender luz nenhuma à cata do dito cujo que lhe invadira o domicílio. Assustou-se a mulher na cozinha, que se levantara, não se sentia bem, não sabia direito o que lhe fazia mal, estava enjoada, e engolia no escuro uns goles d'água bem gelada com certas tristezas e desencantos. A água bem gelada parecia diminuir a revolta do estômago. Levantou-se apavorada da mesa ao ver e reconhecer o marido com a arma na mão, a pobre e jovem mulher, ao contrário desta agora que se manteve sentada com seu lenço na mão a guardar aquele papel, uma espécie de documento, levantou-se deixando a cadeira cair, sem tempo pra dizer sou eu querido, o barulho da cadeira no chão foi maior pelos medos que invadiam a casa, o marido precipitou-se atirando e matando a esposa naquele escuro da vida nas penumbras da cozinha, nos segredos da casa. Agora ali a mulher, a velha e pequena senhora manteve-se quieta, quase uma pedra, não fosse um bom dia senhor gerente que ela em voz mansa, com um certo quê de mando, foi dizendo.

01 janeiro 2011

Inesperado sol

23


Na sua mente surgiu o sol, por antecipação, o sol do dia seguinte, aquele que ele decidia viver. Tinha clareza, estava certo. Voltou-se da janela e foi para a cama, deitou-se e um leve sorriso se esboçou na  face enquanto encontrava a posição certa no travesseiro. Movimentou também a boca como a acertar os sabores, a lingua e os dentes para o sono. Voou para a velho bar e observou novamente aquela mulher. Perdeu-se dela e o que viu foi sua esposa, seu sorriso, seu jeito entre o tímido, o ingênuo, a dissimulação, voltou-se para a mulher do bar, pensou nela com um certo sentimento, um agrado lhe vinha daqueles lábios, ou do olhar, ou do jeito de gesticular num resquício de belezas, de encantos. Matara a própria esposa, mas agora seria o tal gerente, afinal não mais havia jeito para a morte e para o passado. Contentava-se em ser melhor, consolava-se com a possibilidade de ser melhor, ter dias melhores. Mastigou o que não tinha na boca, articulou palavras sem síbalas, movimentos primais, flexionou mais os joelhos, acertou as mãos unidas por baixo do travesseiro. Havia um cheiro ali na fronha limpa, um cheiro de bambuzal ao sol. Um dia visitaria o túmulo dela, em dia de sol forte. Veio-lhe esta idéia assim. Adormeceu.