22 setembro 2008

O espelho, o grito, a máquina do tempo, o olhar...

Vamos ver... vou esquecer, ele diz sem convicção.
Sente falta de tudo, mesmo que tudo fosse uma mentira.
Carinho mentiroso só faz mal depois;
na hora também é bom.
Dói. Mas eu saio dessa.
Vamos ver... A última vez que a vi?
Bem... Foi em setembro. Chovia.
Ela se olhava num grande espelho na sala,
ajeitando os cabelos, retocando o batom.
Ela olhava pelo espelho, muda,
escutava como se estivesse atrasada.
Depois virou-se, e com o olhar apontou a porta.
Aquele olhar... foi um grito,
um grito que fez eco sem emitir nenhum som,
gritou um vai embora que grita agora
no filme que assiste.
De tão claro que vê o grito se espanta
quando percebe a lonjura dos anos
e aquele vai embora tão perto.
Carrega-o como máquina do tempo para voltar,
sempre, ao mesmo ponto.
...Silêncio.
Acabou sua hora, disse o analista.
Me vejo.

20 setembro 2008

A ilha, o avião, o conto sem graça, o olhar...

A ilha esconde,
por detrás da montanha de onde tudo se avista,
a pista de pouso esburacada
onde está o avião quebrado invadido
pelo azul de mais um dia sem hora.
Parece tarde. A página é virada.
Ele anda em círculos, no topo, com uma ferida
a sangrar na mão. Acena com uma bandeira.
A felicidade, uma promessa,
grita-lhe nos escuros do coração:
fecha os olhos, fecha os olhos,
é setembro, aguarda. Mas ele não espera,
ele olha. Olha em trezentos e sessenta graus.
O raio do olhar é seu ultimo poderio.
Nenhum avião, nenhum barco,
somente a vida latejando na mão
que umedece de vermelho-férreo a haste da bandeira.
O pedido de socorro tremula cores de sonhos.
O coração é um mar, um mar, mar.
Nada é original, o conto sem graça.
Amar é esperar mesmo sem constelações um sinal de luz, pensa.
O mar se torna só ruídos, assustador, o dia perde a cor,
providenciará lenha, fará outra fogueira.
Me vejo.

18 setembro 2008

As ruas, o asfalto, os meninos, o olhar...

Corre, o irmão grita,
corre, corre, e ele vai
como se a corrida na chuva
fosse esquentar dentro dele
uma ausência, uma parte fria, sempre.
Chove e as ruas tão íntimas
se iluminam de baixo para cima,
faíscas, faíscas. Que lindo!
A corrida mais longa que uma brincadeira
faz com que perceba a escuridão.
Se abriga num beco
bem junto ao irmão, colados, escondidos,
ofegantes, água e espanto
escorrendo pelo rosto. Meninos.
O irmão confere o dinheiro do dia.
Por que estamos fugindo?
Como resposta ouve tiros, gritaria,
eles estão aqui, eles estão aqui.
...

Vê o irmão correndo, chamando por ele,
O irmão corre, corre chamando por ele.
Tudo fica ainda mais escuro. Tem sono.
Quieta, a platéia assiste “Setembro”.
Me vejo.

17 setembro 2008

O desenho, a estação, o olhar...

A voz caiu cansada de dizer te amo.
Uma coisa quase morta,
um hematoma,
um incômodo
impedem-lhe de escrever,
de dizer desencanto, nem isso.
Usa o lápis para desenhar, traços agitados,
feitos às pressas na estação. O trem vai chegar.
Um gato tenta escapar da trama,
do lápis que reforça as linhas da rede. Que idéia!
O olhar pára no desenho, destaca a folha do bloco,
o lápis volta para o bolso, chega o trem. É setembro.
Em meio à confusão de quem vai, de quem vem,
um momento estranho, calmo. Ele não embarca,
fica parado, mala ao lado. A folha com o desenho
vai com o vento e o trem.
A voz vagarosamente se levanta no pulmão,
voltará para dizer outras vezes te amo.
Entre o sentimento poderoso e a decisão abandonada,
ele fica invisível, algo se apaga.
Me vejo.

15 setembro 2008

O leitor, o livro (o filme), a casa, o olhar...

Retira os óculos e descansa da leitura.
Levanta, anda pela sala,
pesa-lhe um sofrimento indistinto,
não sabe o que pensar,
não sabe o que fazer.
O ator em desempenho,
todo o sentimento,
tudo o que podia.
O rancor típico – retoma o livro –
de quem fez o melhor
e não foi reconhecido.
Por que é sempre assim?
Era de se imaginar que a importância do papel
pudesse lhe causar um prejuízo.
O coração aperta,
perde o compasso;
ele larga o livro, avança altivo,
vai para uma das janelas
da linda casa cheia do vento frio
que desfralda como bandeiras velhas
as cortinas brancas amareladas.
Olha ao longe no azul do dia,
procura sobre as colinas de setembro
e não vê nada.
Me vejo.

13 setembro 2008

Arrebente-se em sonhos (já em setembro)

Telhas de barro malcozido, mau assentadas,
luz pelas frestas formando anjos compridos,
muitos, de pequenos fios e coisinhas flutuantes.
Calmo o sol avança ignorando o desejo, os sonhos
que se foram embora. Já em setembro
tantos se foram, poesia que não vivi.

Outros sempre chegam, sem convite,
descarregando desejos que me eletrizam.
Olhar para o alto sem saber o que fazer exatamente,
mas com cada músculo pronto para saltar.
Telhas que deixam passar o que deviam reter:
estes raios compridos, insufladores, instigadores.
Em qualquer lugar e de várias formas
me dou com eles a sussurrar: arrebente-se em sonhos,
refaça-se em rebeldia a cada sol que se levanta.

Eu queria me amansar, mas não me disciplino,
o que me faria bem-aventurado não me faria feliz.
Deus mesmo é o culpado.

11 setembro 2008

Me espero água a noite passa

Palavras águas
me molham e de pouco
me alivio dessa alma
arteira que me inventa seco
diferente a cada frase
a cada lua mais sedento.
Tenho vontade de dormir
não consigo
as palavras águas são poucas
gotas. O que me vira são episódios
de aflição em capítulos longos
coisa sem nenhuma razão resseca.
Me espero água a noite passa
palavra que acaba não a aflição
não volto sigo na ânsia ressequido
avariado navio encalhado
em hora de maré que demora.
A janela muralha dorme fechada
mesmo com o sol levemente erguido
parede batida pela chuva
que ouço forte lá fora
escorre água bendita não morro.
Há uma fresta.

07 setembro 2008

Imigrante (caí no lugar passado, a literatura)

Talvez...
Talvez sejam as marcas do cemitério,
visitado tantas vezes ao lado do meu avô
que subindo ia contando a história
daqueles que viveram em tempos em que não vivi.
E, me parecia impossível que tivessem vivido antes de mim.
Decidi que queria voltar e acompanhá-los na aventura,
e dizer que surgiria um parente, menino ainda,
mas que gostava deles,
consolando-os pelo fim que no futuro viria.
Se bem que talvez eu gostasse mesmo
das fotos em preto e branco nos seus túmulos.

Eu era deles o desdobrar das células.
Eu era o futuro que só se deu depois do fim.
Um homem precisaria ver muitas gerações
talvez para se contentar e morrer
sem desespero. Esperando,
que é o que faz viver.

Isso acontecia sempre no dia de finados,
logo bem cedinho,
e este era o único dia em que a ida ao cemitério
não me causava sentimentos estranhos.
Depois voltávamos, esperávamos o almoço
e meu avô bebia vinho. Eu que não podia
bebia imagens. Elas se repetiam na mente,
túmulos e fotos preto e branco,
gente com cara simpática,
roupas e bigodes estranhos
mas que eram o suporte do meu corpo
e a estrutura da minha alma.

E quando eles partiram lá de longe,
do porto de Gênova em seus vapores imundos
iam mundo afora, esperando o que depois do mar?
Daria tudo pra fazer o mesmo trajeto ao lado deles
só para sentir e ver o mundo diferente
deixando tudo – que experiência!
E respirar o ar salgado do atlântico
e ser parido de novo na nova terra.
Nasci no lado de cá
e pude me contentar com as histórias.
Fiquei abarrotado delas.

Talvez por isso,
na sofreguidão de desvencilhar-me
das garras do (in)certo futuro
para poder viver o que tenho
– momentos, beber a vida como vinho bom -,
impregnado de contos que fui,
cai no lugar passado, a literatura.

Sou filho das palavras, dos contos
das histórias e, quem sabe,
ser assim é ser outro ser,
ou qualquer coisa que não morre
mas também não sabe viver.
Vive saltando entre os tempos e as eras
e o presente é somente o porto onde se ancora
para se ler e escrever.

05 setembro 2008

Manhã de segunda feira (página marcada)

No filme,
no sonho,
no quarto que clareia, te conheci outra,
desta mesma que todos os dias e noites tenho aqui.
Despertei.
Desejei
outro domingo
na manhã opressiva e azul de segunda-feira
quando displicentemente me deixaste nas mãos
mais um dos teus livros ao me chamar,
e foste para a cozinha passar o café,
acordar as crianças e abrir o dia de todos
com o teu sempre bom humor.
Sonhei,
Acordei,
ou li?
Talvez,
a página marcada deste livro
me possa responder e me faça ver
- sendo quem sou e vivendo o que tenho -
as belezas da vida que está aqui.

01 setembro 2008

Vida torta

Procurando caminhos em expansões escuras e frias
a estrela em seus mundos brilha mais ainda quando
o pássaro faminto pousa ali sobre a mesa ao alcance da mão.
A linha que existe, e não se explica,
entre os mundos daquela estrela e o pássaro,
se dobra formando um espírito que me atravessa
revelando mistérios insignificantes.
O olhar antes divagante em preocupações passa
e ocupa-se em contemplações do bem-te-vi.
De longe eu desenhava o pássaro pelo seu canto:
lindo, poético, perfeito.
De perto agora ele se mostra um vivente
com a perna torcida, quebrada um dia
e vagarosamente cicatrizada,
torta.