18 agosto 2010

Inesperado sol

19

Ao sair do banho voltou a pensar que o que vivia ali era só um descanço, permitia-se ser de novo aos olhos das pessoas um homem de bem, e aquele lugar exercia sobre ele um apelo de reconstrução. Vivia ali naquelas horas sonhos de que a vida pode ser como uma página lida de um livro jogado ao lado e nunca mais retomado. Um desejo de poeiras se precipitando sobre o que acontecera crescia em seus pensamentos, mais do que de poeiras, de aterros. Perdera a noção dos dias que se passaram desde o fato. Negava-se a encontrar um nome para o fato. Sentou-se na sala. A decoração e todos os móveis datavam dos anos sessenta. Nada fora mudado ali, mas tudo estava bem preservado e limpo. Sentia-se como se tivesse caído na infância, a casa da avó, dias felizes. Agora sua vida era curta. O passado não era mais a sua infância, a casa da avó, tudo tão distante. A vida curta se dava entre o fato inominável e aquele momento na casa do gerente. Voltar ao passado significava voltar àquele dia. Mas isto ele não queria. Voltou sua atenção para a sala, forçava as boas lembranças, mas a sala não era outra coisa senão aquela sala. Tentou retirar de cada objeto uma intimidade, mas eles se revelavam frios e estáticos, os abajures, a cristaleira, os aparadores, os cinzeiros, os quadros, os estofados. Mas as cortinas, as cortinas eram novas. Sim, descobrira uma coisa nova, as cortinas eram novas. Levantou-se.

10 agosto 2010

Inesperado sol

18

Do chuveiro caia bastante água, ainda bem, água fria, o dia vazava pela janela, se ia pelo ralo, escorria, água pelo corpo, o dia escorria da cabeça, por entre os cabelos, passando pelo rosto, pelo pescoço se perdendo longe pelo tronco, pelas pernas e pelos distantes pés, mais um dia, menos um dia. A casa do gerente estava limpa, não era nova com certeza, de umas quatro décadas atrás, mas estava limpa e arrumada numa combinação de austeridade e aconchego. Sentia-se uma visita que sonha com a hora de partir, mas gostava de estar ali, sozinho, protegido. Despedira a todos, os meninos que queriam ficar, as mulheres que logo disseram da comida na cozinha, caso ele quisesse. Fechou as portas, conferiu as janelas, desejou o banho. A reunião correra bem, dera as primeiras orientações e os homens se animaram. Não muitos, onze no total, marcados por aquela cor em que se temperam na pele os tons cinzas do sol, do alcool e da luta. Se sua situação ja era complicada, assumir aquele posto e aquela casa poderia adicionar multiplicando muitas outras complicações. A noite entrava pela janela do banheiro, caia na água cobrindo-o com um manto escorregadio, sentiu frio, arrepiou-se, um manto de morte cobrindo o corpo desnudo, se morre várias vezes e de vários modos. Fechou imediatamente o chuveiro e enrolou-se na toalha, ficou parado, completamente imóvel, sentindo a água calar-se na toalha, lembrou-se de casa, da esposa. Meu Deus, meu Deus, repetiu embalando-se apavorado, jogou a toalha ao chão, voltou ao chuveiro e deixou-se debaixo da água fria.